Partido Comunista Portugu�s
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Moção de censura ao Governo
Intervenção do Deputado António Filipe
Quarta, 26 Março 2003

Senhor Presidente, Senhores membros do Governo, Senhores Deputados,

Passada quase uma semana sobre o início da guerra contra o Iraque, a vida está a dar inteira razão a todos os que se lhe opunham.

A catástrofe humanitária começa a desenhar-se com uma cruel nitidez. O anunciado passeio militar até Bagdad, não obstante os colossais meios militares envolvidos, começa a revelar-se uma tragédia, com as baixas militares de ambos os lados e com as baixas civis iraquianas a aumentar exponencialmente em cada dia que passa. A anunciada recepção triunfal aos libertadores traduz-se afinal numa resistência tenaz aos invasores por parte do povo iraquiano. As tais armas de destruição maciça que estiveram alegadamente na origem desta guerra teimam em não aparecer, se esquecermos as que estão a ser usadas pelos invasores nos bombardeamentos que a toda a hora fustigam as cidades iraquianas e incidem sobre alvos tão militares como a televisão iraquiana, uma universidade com mais de setecentos anos, ou um autocarro com trabalhadores sírios que regressavam ao seu país. E ainda o Iraque não está conquistado, já estão assinados os negócios fabulosos com as empresas norte-americanas onde pontificam as mais altas figuras da administração Bush que, como abutres, se lançam sobre a presa, numa verdadeira operação de pilhagem e de recolha dos despojos de uma guerra que determinaram precisamente com o objectivo de ocupar militarmente e saquear o Iraque, indiferentes às mortes e aos sofrimentos que iriam causar a milhões de iraquianos.

Senhor Presidente,

As mentiras com que as Administrações Bush e Blair revestiram esta guerra, para a tornar aceitável aos olhos da opinião pública e da chamada comunidade internacional, começam a tornar-se cada vez mais evidentes.

A ideia de que as tropas americanas e britânicas seriam recebidas de braços abertos por um povo ansioso pela sua libertação foi já definitivamente deitada por terra. É que a liberdade e a democracia não se constroem à bomba. Não temos dúvidas de que o povo iraquiano está contra a ditadura de Saddam Hussein e anseia pela liberdade. Mas também é claro que este povo não reconhece a qualidade de libertador a um exército invasor que pretende reduzir o Iraque a um protectorado anglo-americano. Um povo que quer ser livre não aceita tais libertadores.

É também cada dia mais claro que esta guerra não será rápida nem cirúrgica. Pelo contrário. À euforia das primeiras horas, que davam a chegada a Bagdad como certa num prazo que expirou no sábado passado, e que davam importantes cidades iraquianas como controladas, sucederam-se as imagens dos soldados mortos e capturados e as notícias de dificuldades e de uma tenaz resistência. Ao triunfalismo de uma guerra feita por meios tecnológicos e com poucas baixas, seguem-se agora as notícias do cerco de Bassorá e de bombardeamentos cada vez mais brutais sobre as mais importantes cidades iraquianas.

As palavras inquietas do Secretário-geral da ONU e dos responsáveis das missões humanitárias não deixam margem para dúvidas quanto à catástrofe humanitária que está já a abater-se sobre essa cidade sitiada, com um milhão de habitantes, privados de água, electricidade e alimentos.

E já ninguém tem dúvidas sobre as consequências terríveis dos bombardeamentos com centenas de mísseis e milhares de bombas da mais alta potência sobre as populações iraquianas que ocorrem desde há vários dias e cuja intensificação se anuncia.

O que estamos a assistir é a um crime contra a humanidade de grandes proporções que tem responsáveis e que tem cúmplices.

Não basta dizer hipocritamente que contra a guerra somos todos, porque se todos fossemos contra a guerra, ela seguramente não teria sido desencadeada. Esta guerra foi, não só desejada, como friamente premeditada pelos falcões da Administração Bush e de uma Grã-Bretanha transformada em estado satélite dos Estados Unidos. E tem cúmplices, entre os governos que solicitamente os apoiam, directa ou indirectamente, e entre os quais, temos de incluir, com pesar, o Governo Português.

Não se diga que é dever de Portugal apoiar esta guerra porque os Estados Unidos e a Grã-Bretanha são nossos aliados, quando a França, a Alemanha ou a Canadá, que sempre foram aliados tradicionais e leais dos Estados Unidos e membros da NATO, não abdicam de ter uma posição digna de oposição a esta guerra, sem com isso deixarem de ser aliados.

A questão é que resulta desta guerra que há dois tipos de aliados dos Estados Unidos: Os que sendo aliados, têm coluna vertebral e não abdicam da sua dignidade e de se conduzirem de acordo com a moral e o Direito, e os que, por serem aliados, aceitam com subserviência e seguidismo tudo o que os Estados Unidos lhes queiram impor. Os governos da França, da Alemanha e do Canadá estão entre os primeiros, os governos da Grã-Bretanha, da Espanha e de Portugal, estão desgraçadamente entre os segundos.

Os reais objectivos desta guerra estão bem à vista quando começam a ser conhecidos os contratos já feitos com empresas americanas para a reconstrução daquilo que se sabe de antemão que vai ser destruído e para a exploração do saque que vai resultar desta guerra. Como já se previa, as beneficiárias da chacina do povo iraquiano vão ser as empresas americanas onde pontificam as mais altas figuras da Administração Bush. Previa-se que assim fosse. Agora, sabe-se de ciência certa e de contratos assinados, que assim será.

Já muito foi dito sobre a ilegalidade e a ilegitimidade desta guerra em face do Direito Internacional. Esse facto é tão irrefutável que nem oferece discussão. A Administração americana limita-se a dizer, com a arrogância imperial que a caracteriza, que as Nações Unidas não assumiram as suas responsabilidades. Em Portugal, os já chamados “ventríloquos” de Bush, limitam-se a dizer que os americanos são nossos aliados e além disso são democratas. Não importa que esses democratas adoptem medidas que de democráticas nada têm, como manter pessoas presas em Guantanamo sem qualquer culpa formada e sem quaisquer direitos de defesa, como criar tribunais de excepção em que o Estado de Direito fique à porta, como impor práticas censórias, como está a acontecer com as músicas banidas das rádios britânicas. E nem sequer importa que esses democratas cometam crimes contra a humanidade, como bombardear populações indefesas, desde que o façam em nome da democracia.

O que distingue a democracia de uma qualquer ditadura não é o título, mas a prática. Um Estado democrático, para ser respeitado como tal, não pode deixar de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, não pode deixar de considerar que o Direito Internacional implica direito e deveres para todos os Estados e não representa apenas direitos para si e deveres para os outros. Um Estado democrático, para ser respeitado como tal, não pode praticar crimes contra a Humanidade em nome da democracia.

Não é aceitável que o Governo de Portugal, um país que se libertou de uma ditadura de quase meio século, que, com um consenso nacional absoluto, se notabilizou na comunidade internacional pela defesa intransigente que do Direito Internacional e do papel insubstituível das Nações Unidas na questão de Timor, apareça agora atrelado ao belicismo de uma Administração onde pontificam os círculos mais fanáticos da extrema-direita americana.

Costuma dizer-se de uma guerra, que se sabe quando começa, mas nunca se sabe quando acaba. Ainda estamos longe de avaliar a dimensão da catástrofe humanitária que pode ter lugar se esta guerra não for travada. Não sabemos ainda quantos milhares de mortos custará esta guerra. E não sabemos ainda até onde esta guerra pode alastrar e quais serão as suas consequências para todo o mundo.

Mas confiamos que esta guerra pode ser travada, porque nenhuma guerra foi tão condenada pela consciência universal como esta está a ser. Por todo o mundo, é enorme o clamor da opinião pública contra esta guerra. O isolamento dos Governos apoiantes desta guerra em face da opinião quase generalizada dos cidadãos que deviam representar é de uma evidência gritante.

O Governo Português, os Deputados da maioria que o apoia, e os editorialistas que procuram desesperadamente justificar esta guerra, não podem ignorar o seu isolamento perante a opinião pública. O esforço desesperado que alguns têm feito para manipular as consciências e camuflar as reais razões desta guerra, depara com a inteligência dos cidadãos e revela-se inglório. O Governo pode sair ileso nesta Câmara, mas não pode fugir à censura do povo português que, na sua esmagadora maioria, se pronuncia claramente contra esta guerra.