1997 será ano de "grandes decisões". Começou com promessas (ou
ameaças) e tudo se dispõe para que elas se cumpram. Particularmente no que respeita
à chamada "construção europeia" toma-se por inevitável que não se
passe o ano sem a definição de umas coisas (uns trocos...) que têm tido definição
adiada.
Antes de mais, a "selecção" dos Estados-membros
que irão estar no primeiro grupo da 3a. fase da UEM ou, dito
doutra maneira, quais serão os "fundadores" (!) da
moeda única. Também se espera, e para a primeira metade do ano,
o termo anunciado da Conferência Intergovernamental que tem a
tarefa de avaliar e continuar (salvo seja!) Maastricht, e que
teria sido acordada de uma espécie de torpor no final de 1996,
com o "motor franco-alemão" a dar uma aceleradela.
Mas estas, se parecem grandes decisões, justificarão as
aspas de que as ornamentei e a desvalorização de se dirigirem a
uns trocos entre parênteses e reticências. Na verdade, as
decisões em carteira serão, por um lado, meros passos num
projecto e estratégia do capital financeiro transnacional e, por
outro lado, não podem ignorar, antes terão de ter em conta - e
têm! - a luta social que existe e se reforça, a luta de classes
que se reconhece mas que se procura, por todos os meios, esconder
e, se possível, exorcizar.
No entanto, a ornamentação das aspas e a desvalorização do
que entre parênteses se pôs não quer dizer que as tais
"grandes decisões" sobre umas coisas (uns trocos...)
que têm andado adiadas não têm importância. Têm-na, e maior
ela se verá quanto melhor se é capaz de dizer o que atrás foi
dito pois não se trata de um projecto definido e
único nem de uma estratégia clara e única do
capitalismo.
Uma encruzilhada de projectos e de estratégias
Está-se, isso sim, perante uma encruzilhada de projectos e
estratégias, em razão de dificuldades e contradições internas
do sistema (diria inter e intra-imperialistas porque não estou
para escolher muito as palavras) e, também, das dificuldades em
impor as decisões que melhor aprouvera ao modo de produção nas
actuais condições. Assim é porque, insisto, as classes
existem, a luta continua e a democracia, mesmo a formal, tem
exigências que nem os mais cegos podem deixar de ver... e de
confrontar com esses constrangimentos das opiniões públicas,
dos cidadãos, das eleições e das ratificações.
Face à encruzilhada, as decisões a tomar estão
condicionadas pela relação de forças interna e pela relação
de forças entre-classes. E os semáforos têm várias
alternativas, desde as três cores - lembro: o verde, o amarelo,
o vermelho - até às setas que só permitem avançar em frente
ou à direita ou à esquerda, além das intermitências...
Esta é uma questão quase diria prévia e da maior relevância pois contraria
a obsessão do único. Da moeda única, do banco central único, da única alternativa,
do único caminho, do pensamento único. Há alternativas e estão na nossa (dos
povos) mão. Lembro, a propósito, um cartaz da campanha da opinião pública para
a segurança e cooperação europeias, de 1972: A Europa na mão dos povos.
A selecção dos "in" na moeda única
Para alguns, o que acaba de ser escrito (e lido) pode parecer
anacrónico até porque, para esses, a única coisa em causa
será saber quais os países que irão inaugurar a moeda única,
esse euro mitificado. Ora esta questão não só não é única
como tem contornos, na sua origem e evolução, curiosos ou até
caricatos.
Ao princípio era o ecu e todos seriam "in" no euro
ou como se viesse a chamar. Assim o pressagiavam os indicadores e
a convergência nominal que, em Maastricht, se punha em papel de
tratado. Por isso, mas não só, não houve o cuidado de
considerar a situação de muitos poderem ser os excluídos por
não cumprimento dos critérios arbitrariamente fixados.
Entretanto, se Maastricht pôs, as leis e as desregras do
capitalismo dispuseram. E a meio do percurso, dos prazos para tal
convergência nominal, estava-se em desconvergência. Em vez de
todos se aproximarem das metas, só o Luxemburgo se mantinha
cumprindo-as enquanto os outros Estados-membros tresmalhavam. O
que é o contrário de convergentes, mesmo nominalmente.
Procurou-se, então, arrepiar caminho e os governos foram
chamados "à pedra europeia" que parece ter
substituído a que já foi filosofal. Começou a marcha forçada
para a moeda única, com os critérios nominativos, sobretudo o
do défice orçamental, a serem referências inflexíveis e
justificando-se os sacrifícios exigidos à economia real (e aos
trabalhadores, claro!) em nome de desígnios nacionais e de
outras grandiloquências.
Mas, se os sacrifícios foram muitos e grandes - veja-se a
recessão, o desemprego, a exclusão social que arrastaram -,
não bastou. Nas vésperas das "grandes decisões", ou
seja, na passagem de 96 para 97, o minúsculo Luxemburgo continua
isolado no cumprimento do que levaria uns Estados a poderem ser
"in" ficando os outros "out", se o rigor
técnico-económico tivesse tradução política.
Dada a situação, tudo sai do âmbito técnico e há que
tomar decisão política flexibilizando o que inflexível foi.
Mas tal decisão não é fácil. Os "alemães" e os
"banqueiros", ou os "banqueiros" sobretudo
"alemães", exigem maior rigor e a política monetária
completamente independente dos políticos, defendendo que só
assim o euro será tão boa moeda para a "Europa"
quanto o marco o é para a Alemanha, pelo que se deve começar
com um grupo pequeno e coeso; outros, como os
"franceses" e os "políticos", ou os
"políticos" sobretudo "franceses", acham que
melhor seria que houvesse algum controlo político sobre bancos e
"banqueiros", e julgam-se melhor posicionados fazendo a
ponte entre o marco e satélites e as outras moedas
"fundadoras" da moeda única, pelo que propugnam por um
grupo quanto maior melhor.
De qualquer maneira, não está em causa, nestas soluções
alternativas, perder o domínio dos "ou". dos não
"fundadores". Para isso se cria o SME 2, com o ecu,
cabaz de moedas em que todas entram, a ser substituído, como
ancora do mecanismo de taxas de câmbio, pelo euro, formado
apenas a partir de algumas. Pelo que tudo ficará sob controlo...
do banco central, embora esse controlo possa ser total ou com
alguns limites... políticos.
Mas será uma fatalidade? Não haverá alternativas? Estarão todos os Estados-membros
dependentes dos resultados de uma "escaramuça" prévia (e das que se
seguirão) entre Paris e Bona (ou Frankfurt).
A "cooperação reforçada" na CIG
É aqui que aparece a "cooperação reforçada" ou a
flexibilidade (há palavras com má sorte!). Primeiro em Outubro,
depois em Dezembro antecedendo o Conselho Europeu de Dublin, o
"motor franco-alemão" avançou com a sugestão (!) de
se formalizar, na CIG, essa chamada "cooperação
reforçada" para que o aprofundamento da UE deixe de poder
ser travado por obstrução de um ou de uns Estados-membros.
Esse foi, em Dublin, o grande tema político. Sê-lo-á até
ao fim da CIG. Isto é, deverá a intergovernamental conferência
propor, para superior assinatura e posterior ratificação, que o
Tratado inclua o princípio de que a UE se pode aprofundar por
decisão de alguns ultrapassando reservas e obstáculos de
outros?
Depois de anos atirando com o odioso para as costas largas do
Reino Unido, esse odioso serve de alibi para a
institucionalização da "cooperação reforçada". Que
existe, na prática, como o demonstra o "motor
franco-alemão", e até exemplos concretos como Schengen,
mas assim passaria a ser comunitária e não intergovernamental
por estar no(s) tratado(s). De certo modo, será a
intergovernamentalidade a suicidar-se ou, no mínimo, um tiro no
pé pois assim se abre a autoestrada para a supranacionalidade
federativa em que os Estados terão de aceitar decisões e rumos
mesmo que contra eles estejam.
O facto é que, posto em marcha o "motor
franco-alemão", a reacção dos governos de vários
Estados-(menos)membros foi a de, aceite o princípio sem a menor
discussão, discutir as formulações do princípio aceite. E
não faltam propostas (a primeira foi portuguesa!) a modos de
"já que tem de ser, tentemos minorar os estragos!".
Será, de novo, uma fatalidade? Não haverá alternativas? Ou só os governos britânico
e dinamarquês (e outros escandinavos) por motivações e razões diferentes?
Estes democratas...
Muitos indícios e exemplos se podiam arrolar. Como o do
Tribunal de Justiça que tem vindo a fazer prevalecer os
"interesses comunitários" nos recursos interpostos por
Estados para anulação de decisões da Comissão e do Conselho a
que teriam ficado obrigados (caso de privatização nas
telecomunicações e o do acordo com a Índia, este por parte de
Portugal).
Há um, muito recente, que ilustra o espírito democrático de
alguns "europeístas", dos que andam sempre com os
direitos humanos e o Estado de direito na boca. Ele aí vai: o
Conselho Europeu de Dublin avançou para o SME 2. Mas o Conselho
Europeu não é instituição comunitária, é cimeira
inter-governamental e, por isso, houve deputados (melhor: a
comissão dos assuntos económicos e monetários) que, mais veloz
que o próprio "motor franco-alemão", pediram um
parecer dos serviços jurídicos do PE sobre os acordos relativos
ao mecanismo de taxas de câmbio, se eles não deveriam ser
considerados actos de direito comunitário. O serviço jurídico
respondeu... juridicamente: trata-se de cooperação entre
Estados-membros, não são actos de direito comunitário.
Pois a reacção foi, para não exagerar, brutal e o parecer
foi devolvido. Para ser reformulado, com o recado aos
funcionários do serviço jurídico de que devem encontrar uma
forma de dar o parecer (jurídico!) que a decisão é já
comunitária e não inter-governamental.
São assim estes "democratas"...
Claro que há graduações, mas a democracia sofre tratos de
polé quando os políticos, condicionados pelo direito e pelo
poder dos cidadãos, não recuam perante artimanhas e golpes.
Desde a propaganda travestida de informação (veja-se a campanha
pró-euro) até aos pareceres jurídicos encomendados e às
estatísticas e contabilidades "ajeitadas".
Por aqui também os temos, os de trazer cá por casa. Cheios
de pias intenções e de desígnios nacionais à revelia dos
nacionais propriamente ditos, de carne e osso, mais osso que
carne. O problema de todos estes "democratas" é a
democracia, mesmo a só formal, ter regras que passam pela
avaliação e juízo dos cidadãos, e é, sobretudo, a luta
social, que extravasa das instituições porque e quando estas
não reflectem o mais profundo da realidade.
Tudo depende de nós! Porque vivemos em democracia, ainda
que mais formal que real. E, sobre a tal marcha forçada para o
euro, apetece dizer que não somos a velhinha da anedota e que,
se não quisermos atravessar a rua, não há escuteiro que
consiga fazer a sua BA (boa acção) diária à nossa custa.
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