É ponto assente que o direito ao trabalho é condição essencial para a
emancipação das mulheres. Uma mulher sem trabalho fica, em regra, numa situação
de grande fragilidade psicológica, social e familiar, sujeita a toda a
chantagem decorrente da sua situação de dependência, com consequências
frequentes na sua capacidade de intervenção cívica e política.
Daí ter optado por vos trazer aqui algumas reflexões resultantes de uma
pesquisa realizada no distrito de Aveiro, sobre o desemprego feminino,
integrada no Projecto do MDM "Empreender Novos Caminhos para a Igualdade", que
se desenvolveu em 2004 e 2005.[1]
Fizeram-se entrevistas a 469 mulheres desempregadas, nos centros de emprego de
Aveiro e S. João da Madeira, o que correspondia então a cerca de 3% do total de
desempregadas, segundo os dados de Dezembro de 2004, divulgados pela União de
Sindicatos de Aveiro. As mulheres foram entrevistadas aleatoriamente, o que
permitiu abarcar um extenso leque de sectores de actividade e de faixas etárias.
A referência a este estudo e aos seus resultados, ainda que tenha já decorrido
cerca de 3 anos, parece ter alguma importância, tanto mais que, se algo mudou
foi no sentido de aprofundar os problemas e constrangimentos então detectados.
O Distrito de Aveiro mantém-se, como em 2004, em 5º lugar no ranking dos
distritos com a taxa de desemprego mais elevada, mas as mulheres viram aumentar
a sua taxa de desemprego, em mais 3%, o que vem dar razão à tese de que elas
são sempre as maiores vítimas dos modelos de desenvolvimento deste capitalismo
selvagem e das políticas de direita que o governo do partido socialista tem
levado a cabo, com grande empenhamento e brilhantismo.
O maior número das desempregadas provinha do sector do calçado, da
metalurgia e do comércio A maior parcela de mulheres estava desempregada porque
a entidade patronal não renovou o seu contrato de trabalho e perto de 20% trabalhava
em empresas que encerraram. Apenas 80% das entrevistadas estava a receber
subsídio de desemprego.
Entre as inquiridas, os grupos mais significativos eram mulheres jovens
(40% da amostra), seguido daquelas com idades compreendidas entre os 41 e os 55
anos (25%), sendo este último o grupo mais fragilizado perante o mercado de
trabalho, com os níveis de escolaridade mais baixo e cujas expectativas de
reingresso no mercado de trabalho eram praticamente nulas.
Perto de 50% eram casadas ou viviam em uniões de facto e tinham filhos,
embora fosse significativo o grupo das que se integravam em núcleos familiares monoparentais
(cerca de 13%), grupo este que descreve a sua situação económica como muito
grave, embora no geral as inquiridas tenham referido estar a passar por
dificuldades económicas em consequência da sua situação de desemprego.
A maioria destas mulheres tem níveis de escolaridade muito baixos (1º e
2º ciclos da educação básica), no entanto o grupo das mulheres licenciadas não
deixa de ser significativo (15% na faixa etária dos 21 aos 25 anos e 12% na
faixa dos 26 aos 30 anos).
No que respeita à discriminação salarial, cerca de 33% das inquiridas refere
que não recebia salário igual ao dos homens, embora desempenhasse trabalho
igual, o que é revelador da insistência do patronato do distrito em práticas
salariais discriminatórias em função do sexo. Também é interessante reflectir
sobre o facto de quase 30% das inquiridas referir que trabalhava em empresas
que só empregava mulheres, o que evidencia uma outra forma de discriminação, através
da divisão sexual do trabalho.
Só 36,6 % das entrevistadas era sindicalizada e apenas 22% manifestara
como motivação prioritária para a sua procura de emprego a sua valorização
pessoal. É notório que o grupo de entrevistadas apresenta baixos níveis de
participação sindical e cívica, indicador de baixo poder reivindicativo e de
consciência de classe.
Mas se é verdade, e os indicadores do estudo apontam para isso, que no
distrito de Aveiro, as mulheres são as mais vulneráveis, as primeiras a ser
despedidas, a sofrerem especialmente constantes violações dos seus direitos enquanto
trabalhadoras e enquanto mulheres, a assistirem à desvalorização sistemática do
papel social do seu trabalho, também é verdade que através das grandes lutas
que se têm desenvolvido, nos últimos anos, temos assistido a um aumento visível
e destacado da sua participação.
Ao longo das entrevistas fomos recolhendo depoimentos de grande valor
sociológico, que procurámos traduzir na construção de uma história de vida, que
pretende retratar a vivência da situação de desemprego de uma mulher de 40
anos, operária desde menina e agora despedida de uma multinacional do calçado,
onde trabalhou durante 20 anos.
É um retrato real de alguém que poucas expectativas tem na sua
reinserção no mercado de trabalho mas guarda consigo a nostalgia daquele outro
mundo que já não é o seu mas onde, apesar das vicissitudes, foi quase feliz "... recordo com saudade o cheiro do couro, o
ruído dos maquinismos, as conversas da pausa, os risos, os ditos, as histórias
da nossa vida, até o ar abrutalhado do encarregado, de olho posto nas nossas
brincadeiras." "(...) entre o bom e o mau da vida, lá estava o meu trabalho, o
saber que aquele era o meu outro lar, onde me sentia feliz. Pegava na obra,
metia na máquina e o meu espírito desanuviava. Aquilo era o meu mundo e nesse
mundo era eu que traçava o meu destino".
À medida que o tempo corria, Celeste ia-se apercebendo da exploração e
das discriminações que ela e as outras companheiras estavam sujeitas e dispôs-se
a assumir o papel de delegada sindical, eleita por unanimidade, no plenário de
trabalhadores, refere ela com grande orgulho. "(...) a partir desse momento, abriu-se uma nova janela na minha vida.
Aprendi tantas coisas! A falar em público, a discutir com as chefias, a não ter
medo porque sabia que tinha razão." Mas eis que chega o pesadelo do
despedimento colectivo encapotado de rescisão por mútuo acordo. Celeste resistiu:
"Eu fui a última a sair. Todos os dias me
mudavam de posto de trabalho, até me deixarem sem nada para fazer, dias a fio.
Sentia-me humilhada."
"Recordo o meu último dia
de trabalho como o mais triste da minha vida. Era como se uma parte muito
importante da minha vida morresse naquele dia. Nem conseguia falar. Estava a
dar os últimos passos de um caminho que percorri todos os dias durante 20 anos.
Até ao último minuto esperei por um milagre. Não fui capaz de me despedir das
minhas companheiras. Sentia-me vazia."
Estes pequenos, mas dramáticos excertos da vida desta trabalhadora, que
não é ficção, são uma amostra da desumanidade com que um sistema concebido para
usar as pessoas a seu bel-prazer e conveniência trata e explora trabalhadoras
enquanto elas servem os seus interesses económicos e se descarta delas,
implacavelmente, como objectos sem utilidade, desde que isso satisfaça os seus
objectivos.
E é este o quadro difícil que estamos a viver, de uma economia sem
controle, motivada unicamente pela acumulação de cada vez mais lucros e
capitais, e que resulta numa distribuição de riqueza cada vez mais desigual,
onde as mulheres são sem dúvida as mais fragilizadas dos fragilizados.
Não há discurso do poder, por mais elaborado que seja, que disfarce
esta terrível realidade, muito menos as pseudo-medidas do governo PS aquando
deste "Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos". À conta disto, já
se realizaram umas conferências, com gente bem-falante, uns almoços e uns
jantares em hotéis de luxo e se produziram umas quantas medidas avulsas que se
resumem a uma mão cheia de coisa nenhuma.
As medidas recentemente anunciadas pelo Governo, de apoio às grávidas a
partir do 3º mês, e o apoio a partir do segundo filho, para as famílias mais
carenciadas, só por si não vão trazer nenhuns efeitos nem para o aumento da
natalidade, nem para uma vida melhor para as mulheres. Tanto mais que o Governo
pretende rever o Código do Trabalho o que, pelo que tem vindo a público, irá no
sentido de fazer crescer a insegurança no emprego, ao mesmo tempo que o
patronato pretende a liberalização dos despedimentos, maiores cargas horárias,
menos descanso para os trabalhadores e trabalhadoras, criando ainda mais
constrangimentos na conciliação da sua vida familiar e pessoal com a vida
profissional.
A tomada de medidas em matéria de promoção de natalidade não pode
desligar-se do necessário enquadramento sócio-económico das famílias
portuguesas. O baixo nível salarial, a precariedade laboral, o elevado nível de
desemprego, a inexistência de uma rede pública de creches e infantários, a
preços adequados e acessíveis à generalidade das famílias portuguesas, são
condicionantes fundamentais na decisão da maternidade e paternidade.
Por outro lado, o desrespeito pelos direitos de maternidade e
paternidade por parte das entidades patronais continua a ser alarmante,
exigindo uma muito maior intervenção da inspecção, que resulte numa punição exemplar
sobre quem infrinja a lei.
A garantia do
reforço da protecção da maternidade e paternidade passa ainda pelo
aperfeiçoamento da legislação em vigor, nomeadamente, com a garantia do
pagamento do subsídio de maternidade a 100% às mulheres que optem pela licença
por maternidade pelo período de 150 dias, o pagamento do subsídio por riscos
específicos a trabalhadoras grávidas, puérperas e lactantes a 100% (e não a 65%
como actualmente sucede), e pelo aprofundamento dos direitos actualmente
existentes, rejeitando a ideia do trabalho a tempo parcial como única solução para
a trabalhadora que decide ser mãe, alargando os direitos de mães e pais
trabalhadores com filhos pequenos, reforçando os mecanismos de proibição de
discriminação da mulher grávida quer no acesso ao emprego, quer na sua
manutenção e combatendo activamente a discriminação salarial.
Não é, pois, com medidas de pura cosmética que o governo do PS se livra
de representar, na história da nossa democracia, o papel do maior fomentador
das desigualdades, da instabilidade social e do desrespeito pelos direitos constitucionalmente
instituídos, aliás, com alguns sinais de subversão dos principais fundamentos
do regime democrático.
É urgente a mudança de modelo de desenvolvimento, que assente numa
política que respeite os seres humanos, reconheça o papel fundamental de quem
trabalha e eleja o combate às discriminações em função do sexo como elemento
imprescindível para o sucesso económico e social.
Este caminho não se trilha com o governo PS/Sócrates, que mais cedo do
que tarde temos de derrotar. Este governo não é saudável, é insalubre, é
causador de epidemia e põe em risco a saúde pública.
Termino com o último lamento da Celeste: "Dizem que o país está triste. E está mesmo triste, tão triste quanto
eu, que perdi o gosto pelo riso naquele dia final da minha vida de trabalho!
Está triste quanto eu que não encontro rumo para a vida!".
Temos que devolver o gosto pelo riso às Celestes deste país.
[1] O Desemprego Feminino Retratos e
Narrativas, Agosto de 2005
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