Álvaro Cunhal, (1976) A Revolução Portuguesa o
Passado e o Futuro- Capítulo IV – págs. 221 a 235, 2ª Edição
(…)“A
CONSTITUIÇÃO, CONSAGRAÇÃO DAS VITÓRIAS DA REVOLUÇÃO
A elaboração,
aprovação, promulgação e entrada em vigor da Constituição representa uma
grande vitória das forças democráticas e progressistas e uma séria derrota das forças reaccionárias e conservadoras.
O maior mérito da
Constituição é traduzir, não apenas o resultado dos trabalhos da
Constituinte, mas o resultado da
luta do povo português e de todas as forças revolucionárias. No decurso dos
trabalhos da Constituinte, a Revolução levou a cabo transformações profundas. A realidade
portuguesa evoluiu. Foi já depois das eleições para a Constituinte que a
Reforma Agrária foi realizada,
modificando radicalmente a agricultura e as relações de produção em cerca de um quinto da superfície cultivável nacional.
A Constituinte
viveu ela própria a irregularidade do processo
revolucionário e teve de ter em conta as novas realidades que transformaram
completamente o quadro político, económico e social do País. A Constituição
acabou por ser a consagração das vitórias
da Revolução portuguesa e por reflectir
o estádio de desenvolvimento do processo revolucionário.
A Assembleia
Constituinte não decidiu nem definiu transformações
revolucionárias como a Reforma Agrária, as nacionalizações, o controle
operário. Mas teve a virtude
de reconhecê-las e consagrá-las.
Sem dúvida que na própria Constituição se
reflecte a composição política da Assembleia, as vacilações de alguns sectores
e o peso de elementos reaccionários e conservadores. Em vários casos, a par do
reconhecimento em termos gerais das grandes
conquistas revolucionárias, logo se deixam em aberto, para futuras leis
regulamentadoras, possibilidades de alteração, contestação e desvirtuamento.
Entretanto, no fundamental, graças à maioria de socialistas e comunistas existente na Constituinte e graças à luta das forças revolucionárias (populares e militares) que se fez sentir em toda a vida nacional (incluindo na Constituinte), a Constituição
acabou por reconhecer as conquistas
essenciais da Revolução e por, em termos gerais, institucionalizar as situações
de facto criadas pela luta revolucionária.
Tem-se acusado muito o Partido Comunista de
hoje apoiar a Constituição, mas ter lutado contra ela e contra a Constituinte. A verdade é outra. O
PCP lutou sim contra o
facto de que, em determinado período, a Constituinte fazia tudo menos trabalhar
na elaboração da Constituição. Ao mesmo tempo que se caminhava a passo de
caracol (e em longos períodos nem isso), na elaboração da Constituição, o PS, o PPD e o CDS pretenderam
anticonstitucionalmente e contra o Pacto com o MFA, que haviam assinado,
transformar a Assembleia Constituinte num órgão de soberania, contrapô-la ao
Governo e ao Conselho da Revolução, torná-la uma «alternativa» para os órgãos
que invocavam não uma legitimidade constitucional, mas uma legitimidade
revolucionária.
Para isso, foi criado um período «antes da
ordem do dia» que servia para desencadear violentos ataques à Revolução, ao
Governo, ao MFA, ao movimento popular. Para isso, Freitas do Amaral entendia
necessário «funcionar desde já a Assembleia Constituinte como Parlamento»
(7-8-1975). Para isso, no auge da crise político-militar, a Assembleia
Constituinte tomou medidas preparatórias da sua transferência para o Norte, com
o propósito evidente de cobrir com a «legitimidade democrática e
constitucional» um golpe armado vindo daquela zona do País.
Correu-se o risco de que a Assembleia
Constituinte, cuja única e exclusiva
tarefa definida na lei constitucional era elaborar a
Constituição, se tornasse um instrumento da instauração de um governo de
direita, justificando-o como emanação do único órgão de soberania designado por
sufrágio universal.
Foi contra uma eventual usurpação de poderes
que o PCP interveio com firmeza. Não contra a elaboração da Constituição.
O PCP criticou severamente a Constituinte, não por
fazer a Constituição, mas, precisamente porque, esperando «melhores dias» para
a direita, a não fazia. Ao contrário do que dizem os acusadores do PCP, o PCP,
por intermédio dos seus deputados, deu uma contribuição muitíssimo importante
para a elaboração da lei fundamental do
País e particularmente para a elaboração e aprovação dos seus preceitos
fundamentais. Uma vez aprovada a Constituição,
o PCP, muitas vezes praticamente só, lutou vigorosamente para que fosse rapidamente promulgada e posta em vigor.
Os partidos
reaccionários opuseram-se tenazmente à elaboração e aprovação da Constituição,
tal como esta é. Tudo fizeram
para que a Constituição não consagrasse as conquistas da Revolução, que esses
partidos consideravam conjunturais e precárias. O CDS votou globalmente contra a Constituição. Com pequenas diferenças na
insistência do debate, na votação e em declarações de voto, o CDS e o
PPD fizeram numerosas propostas para eliminar ou restringir as conquistas
populares e votaram contra muitas das disposições fundamentais. Os artigos que
definem o socialismo como objectivo da democracia portuguesa, que consagram a
apropriação colectiva dos meios de produção, o direito à greve, o controle de gestão, as
nacionalizações e a sua garantia, as limitações aos poderes das regiões
autónomas, as incapacidades cívicas dos fascistas, ou tiveram votos contra ou
propostas de numerosas emendas que destruiriam o seu alcance.
Depois, não tendo podido impedir a
elaboração da Constituição tal como ficou, o PPD e o CDS desenvolveram a luta
contra ela em múltiplas direcções.
Em primeiro lugar, procuraram ainda que a própria
Constituição atribuísse competência
constitucional à Assembleia da
República a eleger.
O PPD e o CDS opuseram-se tenazmente ao
artigo 290 da Constituição, que admite a revisão constitucional apenas passados
4 anos e exclui da revisão «os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos»,
«os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das
associações sindicais», «o princípio da apropriação colectiva dos principais
meios de produção», «a eliminação dos monopólios e dos latifúndios», o sufrágio
universal e o sistema de representação proporcional, a participação das
organizações populares de base no exercício do poder local, etc. Apoiados por
alguns deputados do PS e por órgãos de imprensa afectos a este partido (Diário
de Notícias, A Capital e outros), o PPD e o CDS
propuseram na Assembleia que fossem inseridas na Constituição cláusulas
admitindo a revisão logo na primeira legislatura (nos primeiros quatro anos).
Beneficiando da situação antidemocrática
existente em vastas zonas do território, fiados na possibilidade de alcançarem
uma vitória eleitoral e uma maioria na Assembleia da República tinham
claramente a intenção de rever a Constituição, imediatamente após as eleições,
pondo em causa os seus preceitos fundamentais.
Em segundo lugar, fracassando o propósito de
alterar o conteúdo da Constituição e de forçar uma revisão a curto prazo, a
reacção procurou que a Constituição fosse
submetida a um referendo, com
a esperança de conseguir por essa forma a sua rejeição.
O PPD, na «Proposta de Revisão do Pacto»,
propunha um referendo «nos 15 dias imediatos ao decreto da aprovação da
Assembleia Constituinte» (30-12-1975).
Em terceiro lugar, fracassando também esse
propósito, as forças reaccionárias procuraram precipitar uma alteração na Presidência da República, com a
esperança de que um outro Presidente
não promulgasse a Constituição.
Com esse objectivo
folhas fascistas clandestinas, jornais reaccionários,
propaganda do CDS e do PPD, tarjetas do PC de P (m. 1.) e importantes sectores do PS moveram uma infame
campanha de calúnias contra o Presidente, general Costa Gomes, a
fim de provocar a sua demissão.
A coberto da intocável Justiça vimos juízes absolverem e elogiarem caluniadores
e difamadores. E a pretexto da liberdade de imprensa vimos partidos que se dizem democráticos elogiarem tal decisão.
Finalmente,
coordenando a acção subversiva com a acção legal, as forças
reaccionárias desenvolveram uma intensa actividade de conspiração, fazendo pairar na cena política
a ameaça de um golpe de força.
À medida que se aproximava o momento da aprovação final da Constituição, a reacção procurava
criar um clima de tensão, instabilidade
e desordem. Multiplicou as ameaças e as
chantagens. Jogou com a pressão do separatismo dos Açores e Madeira. Ela, que
tecera os maiores elogios à
Constituinte, como «emanação da vontade livre do povo», passou a considerá-la
dominada por «marxistas».
Incapaz de provocar uma alteração global da situação politica, a reacção procurou distanciar a
promulgação da Constituição da sua
aprovação, a fim de, antes de
promulgada, tentar ainda por qualquer forma provocar a substituição do Presidente da República.
É significativo da
tensão que se viveu o facto de o Presidente da República ter ido à
Assembleia Constituinte quando da aprovação da Constituição, em 2 de Abril de
1976, para ali mesmo,
imediatamente a promulgar.
Foi uma decisão da
mais alta importância, com a qual o Presidente Costa Gomes prestou um notável
serviço à democracia e ao País.
A Constituição, no
essencial, é democrática, é progressista
e institui um regime ao qual são
inerentes, nos termos da própria Constituição,
as grandes transformações e realizações revolucionárias do povo português
depois do 25 de Abril.
A Constituição reflecte a libertação da ditadura e a condenação do
fascismo. O preâmbulo (assim como passagens dos art.os 273, nº2, 212,
etc.) presta homenagem ao 25 de Abril e ao MFA, que
«coroando a larga resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista».
A Constituição proíbe as organizações de ideologia fascista (artº
46, nº 2), determina a perda do mandato dos deputados por participação
em tais organizações (artº 163),
reconhece saneamentos e incapacidades cívicas a fascistas com particulares responsabilidades (artº 308).
A Constituição
consagra as liberdades democráticas, e desenvolve-as amplamente, estabelecendo o princípio da não discriminação. «Ninguém pode ser privilegiado - diz o art.º 13, nº 2 - beneficiado, prejudicado, privado de qualquer
direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas,
instrução, situação
económica ou condição social.»
A Constituição
estabelece a
irreversibilidade da eliminação dos
monopólios e dos latifúndios [artº 290, f)].
Estabelece que «todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de
Abril de 1974 são conquistas irreversíveis
das classes trabalhadoras» (artº
83,nº1).
E no que respeita às pequenas e médias empresas «indirectamente nacionalizadas»,
fora dos sectores básicos da economia, só poderão ser integradas no sector
privado se os trabalhadores não optarem
pelo regime de autogestão ou de cooperativa (artº 83, nº2).
A Constituição
consagra como uma «incumbência prioritária» do Estado a realização da Reforma Agrária [art.º 81, h)]. Determina «a expropriação dos latifúndios, e das grandes explorações capitalistas» com a «transferência da
posse útil da terra e dos meios de
produção» para aqueles que a trabalham
[art.º 97, h)], admitindo a formação,
nas propriedades expropriadas, tanto
de cooperativas como de «outras
unidades de exploração
colectiva» (art.º 97, n.°2). E define a
Reforma Agrária como «instrumento fundamental para a construção de uma sociedade socialista» (art.º 96).
A Constituição consagra o controle operário e os direitos dos trabalhadores
alcançados desde o 25 de Abril e anuncia outros
sob forma de princípios programáticos: o direito ao trabalho (artº 51, nº1), o dever de trabalhar (artº 51, nº2), a liberdade de escolha de profissão (artº 51, nº3), o pleno
emprego e a assistência aos desempregados [artº 52, a)], os despedimentos sem
justa causa [artº 52, b)], o princípio de salário igual para trabalho
igual [artº 53, a)], o direito a férias periódicas pagas [art. 53, b)], a actualização do salário mínimo nacional [artº 54, a)], a «criação de um serviço nacional de
saúde universal, geral e gratuito»
(artº 64), os direitos dos jovens, dos
deficientes e dos velhos (art.os 70, 71, 72), o direito à educação
e à cultura (art. os 73 e segs.).
Se, no que
respeita à liberdade
sindical, a maioria na Assembleia Constituinte teve como
objectivo revogar a lei da
unicidade, abrindo caminho à intervenção dirigista e regulamentadora do Estado
nos sindicatos existentes e à criação de sindicatos promovidos e controlados
pelos partidos e pelo próprio patronato, não deixa de ser reconhecido o direito de organização sindical (artº 57) e o direito à greve (artº
59) acompanhado da proibição
do lock-out (art° 60).
A Constituição
consagra as Comissões de Trabalhadores como instrumentos de defesa dos seus
interesses, para a «intervenção democrática na vida das
empresas» e sua «mobilização para
o processo revolucionário de construção
do poder democrático dos trabalhadores» (artº 55, nº1). Apesar de ter entrado
em matéria regulamentar que não
é própria da Lei fundamental do País, fixando processos de funcionamento e
de voto, a Constituição consagra amplos direitos das Comissões, incluindo «exercer o controle
de gestão nas empresas», «intervir na reorganização das
unidades produtivas» e «participar na elaboração da legislação do trabalho»
artº 56, a), b), c) e d)].
As organizações
populares (comissões e assembleias de moradores) são reconhecidas, embora a
Constituição também tenha intervindo em matéria regulamentar (artº 264
e segs.).
A Constituição consagra o processo da
descolonização e a luta libertadora dos povos outrora submetidos ao colonialismo português,
reconhecendo «o direito dos povos à
insurreição contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o
colonialismo e o imperialismo» (artº 7).
A Constituição
consagra, como inerente à democracia
portuguesa, o caminho do socialismo.
O preâmbulo afirma como objectivo e «decisão
do povo português» «abrir caminho para uma sociedade socialista». O artº 1 define a República Portuguesa como
«empenhada na sua transformação
na sociedade sem classes». «Abolir a exploração e a opressão do homem pelo
homem» é indicado como uma das «tarefas fundamentais do Estado» [artº 9, c)].
O regime
definido na Constituição é indicado
como «fase de transição
para o socialismo» (artº 89).
O «desenvolvimento das relações de produção
socialistas» é indicado como base da «organização económico-social da República Portuguesa» e
como dever do Estado [art.os 80 e 81, n)]. A apropriação colectiva
dos meios de produção é referida em vários artigos (art os 10, 50,
etc.).
O próprio conteúdo da Constituição explica a
energia e o desespero da luta que contra ela moveram e movem as forças
reaccionárias.
A entrada em vigor
da Constituição tomou-se da máxima importância para desanimar e
desmobilizar as forças reaccionárias,
para entravar a conspiração
contra-revolucionária, para dar uma
motivação política, legal e constitucional às forças armadas na sua inserção na vida política nacional
como garantes das liberdades, das conquistas da Revolução, da democracia.
É de interesse notar como partidos
reaccionários, que haviam mobilizado todas as suas forças para impedir a
elaboração, aprovação, promulgação e entrada em vigor da Constituição, deram
uma volta de 180 graus logo que perderam a partida.
A reacção mostrou-se uma vez mais com duas
faces: a da conspiração e a do «respeito pela legalidade». Ao mesmo tempo que
alguns continuam o combate aberto contra a Constituição, porque, como diz A Rua, «não nos interessa gerir o
existente, interessa-nos modificar e alterar» (29-7-1976), outros que lutaram
contra ela abertamente e lutarão sub-repticiamente dizem agora que a
Constituição «é a lei do País e como tal a respeitamos» (Freitas do Amaral no
II Congresso do CDS, 23/25-7-1976).
A verdade é que só a respeitarão se a isso
forem obrigados. É necessário obrigá-los.
O respeito pela Constituição tomou-se um
factor de consolidação e de útil e necessária estabilização do regime
democrático.
O respeito pela Constituição tomou-se um
ponto essencial do comportamento político de vastos sectores, tanto civis como
militares. Além da lei fundamental, a Constituição tomou-se, numa situação
politica muito instável, uma plataforma para a reunificação das forças da
democracia e do progresso social.
2. OS
NOVOS ÓRGÃOS DO PODER
A importância da Constituição no processo
democrático não reside apenas nas liberdades, direitos e transformações económicas
e sociais que consagra na perspectiva socialista, mas também no sistema
original dos órgãos do poder que
estabelece.
Também no que respeita aos órgãos do poder,
a Constituição, mantendo o papel das forças armadas, dentro do espírito do
MFA, do espírito do 25 de Abril, corresponde a uma realidade específica da
Revolução portuguesa: a intervenção no processo das duas componentes (popular e
militar) e a necessidade da manutenção da linha de continuidade do MFA como
garante da democracia.
A consagração na Constituição do papel do
MFA e das forças armadas do 25 de Abril ao nível dos órgãos de soberania representa
uma importante vitória das forças da democracia e do progresso social contra as
forças da reacção e do conservantismo.
Em tomo da definição das características do
regime democrático a instaurar no imediato e dos seus órgãos de soberania, a
reacção conduziu incessantemente um cerrado combate com vistas a afastar
definitivamente do poder os capitães do 25 de Abril.
Quando fascistas, reaccionários e conservadores gritavam em coro que era necessário que os militares voltassem para
os quartéis, o objectivo não era
naturalmente mandar os militares para os quartéis, mas substituir a intervenção dos capitães do 25 de Abril na vida
política pela intervenção de generais
reaccionários, ao lado dos
partidos da direita, contra o movimento operário e popular, contra a Revolução e as suas conquistas. Por muito espantoso que pareça, toda a batalha contra a inserção das
forças armadas nas estruturas da
nova democracia a instaurar com a Constituição foi conduzida pela reacção sob o signo da «democracia».
É sintomático que quanto mais à
direita estavam as forças
políticas mais brandiam argumentos «democráticos» contra os órgãos do poder político-militares do MFA.
Os pasquins fascistas (como O Sol e o Templário)
em nome de princípios
«democráticos» atacaram os militares do 25 de Abril e o próprio 25 de Abril nos termos mais violentos e
ofensivos. O CDS e o PPD (assim como o PPM, o PDC e outros) argumentaram com a
«soberania popular», a emanação popular
do poder, a «vontade do povo», «a autoridade do povo», a legitimidade democrática
provenientes do sufrágio universal, contestando o MFA e a legitimidade dum órgão político-militar de soberania.
Aquilo que a
reacção não conseguiu com sucessivas tentativas de golpes de força (Palma
Carlos, 28 de Setembro, 11 de Março) procurou consegui-lo ganhando uma maioria na Assembleia
Constituinte para aí elaborar uma Constituição que eliminasse definitivamente dos órgãos do poder o MFA,
os capitães do 25 de Abril.
Entretanto, com a derrota do putsch de 11
Março, o MFA esteve em condições de impedir que, beneficiando da situação
antidemocrática existente em vastas zonas, a reacção e as forças conservadoras pudessem vir a elaborar uma
Constituição que pusesse em causa a própria vitória do 25 de Abril.
Essa a origem do primeiro Pacto entre os partidos políticos e
o MFA, assinado em 11-4-1975.
Trata-se de «uma plataforma política pública com os partidos empenhados no cumprimento dos Princípios do Programa
do MFA e na consolidação e alargamento das conquistas democráticas já alcançadas» («Plataforma de Acordo Constitucional com os partidos
políticos», A. 4). Coloca-se como objectivo «a continuação da revolução
política, económica e social iniciada em 25 de Abril de 1974, dentro do
pluralismo político e da via socializante».
A
Plataforma, cujos termos deveria «integrar a futura Constituição Politica a
elaborar e aprovar pela Assembleia Constituinte», estabelecia designadamente:
a) que a Assembleia Constituinte teria como «missão exclusiva» «elaborar e
aprovar a Constituição»; b) que só ao Presidente da República caberia
proceder a eventuais alterações à composição do Governo Provisório; c) que
os partidos signatários se comprometiam a «não pôr em causa a institucionalização
do MFA» nos termos acordados na Plataforma.
No que
respeita à estrutura do poder, a Plataforma estabelecia como órgãos de
soberania o Presidente da República, o Conselho da Revolução, a Assembleia do
MFA, a Assembleia Legislativa, o Governo e os Tribunais (D. 1). Dois traços
característicos eram os amplos poderes do Conselho da Revolução e o sistema
bicamaral com as duas Assembleias: Legislativa e do MFA.
A
Plataforma indicava que «durante todo o período de transição, o poder militar
manter-se-á independente do poder civil» (E. 3) e que a Constituição deveria
«consagrar os princípios do Programa do MFA, as conquistas legitimamente
obtidas ao longo do processo, bem como os desenvolvimentos ao Programa impostos
pela dinâmica revolucionária, que, aberta e invariavelmente, empenhou o País na
via original para um socialismo português» (E.2).
O PS
viria a dizer mais tarde que «fora obrigado a subscrever um documento de cujas
linhas essenciais discordava profundamente» (Jaime Gama, Portugal Socialista,
28-1-1976). E o CDS, mostrando bem a pouca confiança que se pode ter nas
suas declarações e na sua assinatura, viria também a declarar que assinara o
Pacto «coagido». Tal como agora diz querer respeitar a Constituição e poderá
amanhã vir a dizer que fez essa declaração igualmente «coagido». Tal como
apoiou um candidato à Presidência e poderá vir a dizer que o fez «coagido». Os
partidos políticos não têm porém o direito de agir «coagidos», porque dizer-se
que se age «coagido» é uma forma de enganar e de conspirar.
O CDS não assinou coagido porque ninguém foi coagido. O que fez, como
aliás o PPD e de certa forma o PS, foi enganar o MFA, enganar os militares do
25 de Abril, assumindo ante eles um compromisso com a reserva mental de o não
cumprir e de tudo fazer para impedir a sua aplicação.
Por
isso, assinado o Pacto, realizadas as eleições, os partidos da direita e o PS
não mostram grande empenho em elaborar a Constituição enquanto a correlação de
forças lhes fosse manifestamente desfavorável, com o objectivo de virem a
elaborá-la libertados já do Pacto com o MFA.
A Assembleia Constituinte, cuja «missão exclusiva»
era a elaboração da Constituição,
esqueceu essa função e procurou intervir, como se fosse um órgão de soberania,
na modificação da correlação de forças e da situação política a favor da
direita, designadamente da direita militar.
Precisamente
o capítulo da Constituição relativo aos órgãos do poder foi deixado para o fim
com a esperança de entretanto vir a ser anulado o Pacto.
Na medida
em que se deram mudanças favoráveis à direita na situação político-militar
(cisão no MFA, pronunciamento de Tancos, desaparecimento da Assembleia do MFA,
derrota da Esquerda militar, conquista de posições pela direita), as forças reaccionárias
intensificaram a sua ofensiva, gritando que o Pacto com o MFA não tinha mais
razão de ser, que o MFA deixara de existir, que não havia mais razões para
consagrar na Constituição órgãos político-militares, designadamente o Conselho
da Revolução.
Do CDS,
Freitas do Amara! insistia em que, «se esses oficiais querem ser políticos [...]
devem passar à reserva» (6-9-1975), ou devem colocar-se «quanto antes à margem
do processo político» (17-12-1975). Do PPD, Sá Carneiro dizia ao Tempo que
«tem de deixar-se o Pacto Constitucional […] o Conselho da Revolução [...] e o
poder militar» (3 1-8-1975). Graça Moura punha abertamente a questão de «acabar
com o Conselho da Revolução» e «colocar o poder militar na dependência estreita
do poder civil» (5-9-1975). Ainda Sá Carneiro insistia que «as Forças
Armadas não têm legitimidade nem competência para governar» (25-9-1975) e Nuno
R. dos Santos chamava ao Pacto «uma autêntica chantagem política», reclamando
a sua «total e completa anulação» (Dezembro de 1975). Quando o CR propôs um novo
Pacto com a continuidade do Conselho da Revolução, o PPD gritou que isso seria
«uma autêntica ditadura militar de fachada liberalizante» (Sá Carneiro, O Dia,
23-1-1976).
Da parte
do PS, J. Campinos protestou contra «uma tutela militar» e afirmava que «a
dinâmica militar (sic) levará
à reconstrução de verdadeiras (?!) Forças Armadas que ultrapassarão o MFA»
(Dezembro de 1975). Cardia afirmava não ver «compatibilidade entre democracia
política e poder militar» e estar disposto a bater-se «pela não consagração
constitucional do Pacto» (1-12-1975). Raul Rego, proclamava que «criar
na Constituição qualquer órgão de soberania não escolhido directa ou
indirectamente pelo povo e consagrar uma ditadura de classe ou profissão»
(3-12-1975). A Luta conduziu uma verdadeira campanha contra o MFA e contra
a continuação da intervenção dos militares do 25 de Abril na vida política. «Os
militares devem regressar imediatamente aos quartéis», proclamava (20-12-1975).
O PCP,
apesar de todas as modificações verificadas nas estruturas superiores
militares e político-militares, apesar de terem sido afastados numerosos
oficiais progressistas, apesar de se acentuarem as discriminações
anticomunistas nas forças armadas, continuou a considerar que o
desaparecimento do Conselho da Revolução e o «regresso dos militares aos
quartéis» significaria a porta aberta para a rápida conquista do poder pelas
forças da direita e a liquidação das conquistas revolucionárias do povo
português. O que conduziria à ditadura não seria (conforme pretendiam os
partidos reaccionários) a permanência do Conselho da Revolução com o espírito
do 25 de Abril, mas o desaparecimento do Conselho da Revolução.
A reacção
tinha porém feito um juízo demasiado sumário da situação. O que, depois das
cisões, conflitos e depurações restava do MFA foi suficiente para colocar os
partidos reaccionários e conservadores na necessidade de (antes da elaboração
final da Constituição) negociar um novo Pacto, que acabou por ser assinado em
26 de Fevereiro de 1976.
O
fundamental neste novo Pacto, que os partidos políticos se comprometeram a
respeitar na elaboração da Constituição (contra os planos, os propósitos e os
desejos das forças reaccionárias), foi a continuidade do Conselho da Revolução,
a institucionalização do regime democrático e o papel das forças armadas como
garantes da nova Constituição.
O segundo
Pacto (comparando com o primeiro) corresponde, é certo, tanto a modificações
reais da situação político-militar como a cedências perante a pressão da
direita. Desapareceu a Assembleia do MFA (em correspondência com a sua anterior
liquidação de facto), estabeleceu-se a eleição directa do Presidente da
República (que pelo primeiro Pacto deveria ser eleito pela Assembleia Legislativa
e Assembleia do MFA em conjunto), eliminaram-se as normas programáticas
progressistas, diminuiu a intervenção do MFA e do Conselho da Revolução na
actividade governativa e legislativa.
Mesmo
assim, o Pacto representa uma séria derrota das forças reaccionárias e
conservadoras.
Em
resultado do Pacto, a estrutura dos órgãos do poder no regime democrático
definido na Constituição tem ainda as fundas marcas do processo específico da
Revolução portuguesa, designadamente da aliança Povo-MFA.
Em
relação às Forças Armadas, a Constituição atribuiu-lhes a «missão
histórica de garantir as condições que permitam a transição pacífica e
pluralista da sociedade portuguesa para a democracia e o socialismo» (artº 273,
nº4).
Em
relação ao MFA, não só reconhece o seu papel libertador no 25 de Abril
como lhe atribui o papel de «garante das conquistas democráticas e do processo
revolucionário» e a sua participação «no exercício da soberania» (artº 4) em
aliança com os partidos e organizações democráticas (artº 10, nº1).
Quanto ao
Conselho da Revolução, como órgão de soberania, ficou sendo «garante do
regular funcionamento das instituições democráticas» (artº 142).
Os
partidos burgueses falam hoje do novo «regime parlamentar», do «novo
parlamentarismo», apesar de saberem que tais afirmações não correspondem à realidade
politica e constitucional. Em Portugal há um Parlamento, mas não um regime
parlamentar. O que esses partidos pretendem com tais afirmações é fazer diminuir
e contestar o Conselho da Revolução e o próprio Presidente da República que,
no actual regime, para o período de quatro anos, são órgãos de soberania com as
mais importantes funções. O Conselho da Revolução é um organismo consultivo do
Presidente da República, e como «garante do cumprimento da Constituição» pode
vetar as leis do Governo ou da Assembleia da República, tendo essa decisão
«força obrigatória geral» [artº 146, c) e 281], isto é, o preceito considerado
inconstitucional não pode ser aplicado em nenhum outro caso.
Tanto os
partidos reaccionários como os dirigentes da direita do PS estão descontentes
com estes aspectos da Constituição, precisamente porque o espírito do 25 de
Abril e a acção dos militares do 25 Abril é um sério obstáculo aos seus planos
de liquidarem as conquistas da Revolução e de conduzirem à recuperação do
poder do grande capital.
Muitos
dos que contestam que o Conselho da Revolução intervenha declarando a
inconstitucionalidade de leis são os mesmos que se esforçaram para que as
forças armadas interviessem para destruir a própria Constituição.
E
sintomático que precisamente um senhor do CDS, Francisco Lucas Pires, falando
ao jornal fascista Liberdade, tenha considerado a competência do
Conselho da Revolução para julgar da constitucionalidade das leis, mais do que
«militarização», uma «revolução permanente» (2-6-1976). Se o CDS assim fala
contra o Conselho da Revolução é naturalmente porque pensa que este não serve
as forças reaccionárias.
O sistema
de poder da nova democracia, pelo período mínimo de quatro anos, é pois um
sistema complexo, de poder partilhado entre cinco órgãos de soberania:
Presidente da República, Conselho da Revolução, Assembleia da República,
Governo e Tribunais.
A
Assembleia da República resulta do sufrágio universal, mas os seus poderes em
relação ao governo são bastante menores do que no geral dos regimes
parlamentares. O governo está muito protegido em relação à Assembleia, mas tem
de responder também perante o Presidente da República. O Presidente é eleito
por sufrágio universal, mas tem junto de si o Conselho da Revolução, cuja consulta
é obrigatória em casos importantes. O Conselho da Revolução não tem funções
legislativas, mas pode julgar da inconstitucionalidade das leis.
Neste
complexo sistema, que reflecte as consequências e a evolução do próprio
processo revolucionário, há inevitavelmente contradições, e a base para
eventuais conflitos. Mas nas condições existentes, desde que nas forças armadas
se conserve o espírito do 25 de Abril, ele oferece mais condições para a defesa
e o prosseguimento da democracia do que um regime parlamentar funcionando num
país onde em vastas zonas do território ainda não foram verdadeiramente
instauradas as liberdades democráticas e onde não são respeitados e
assegurados os direitos dos cidadãos.
Com a
entrada em vigor da Constituição, a formação dos novos órgãos do poder
tornou-se uma das questões básicas da nova democracia.
Assente
no papel revolucionário determinante e nas responsabilidades do MFA na
Revolução portuguesa, o Conselho da Revolução funda a sua legitimidade no
próprio processo revolucionário, e é nessa base que a Constituição o reconhece
como órgão de soberania. O novo regime pressupõe tanto o desenvolver normal da
vida democrática como a estabilidade do próprio Conselho da Revolução durante
os próximos quatro anos.
Daí a
intensa campanha, já depois da entrada em vigor da Constituição, para a revisão
da composição do Conselho, insistindo, tanto o jornal socialista A Luta (20-4-1976)
como o jornal reaccionário Tempo (17-6-1976), na «eleição» do Conselho.
As forças
reaccionárias e a direcção da direita do PS insistem na necessidade de
subordinar o mais prontamente possível o poder civil e numa revisão antecipada
da Constituição.
As
decisões tomadas pelo Conselho da Revolução já depois das eleições para a
Presidência da República, definindo certas normas relativas à sua composição e
funcionamento, deram novo golpe aos desígnios das forças reaccionárias e
conservadoras.
De facto,
em 11-8-1976, o Conselho da Revolução decidiu que nos quatro anos previstos
até à eventual revisão constitucional os representantes dos vários ramos só em
caso de «morte, renúncia ou impedimento permanente» deixarão de pertencer ao
Conselho. Esta decisão, que se impunha por si mesma, estava de certa forma
implícita no Pacto e é uma garantia de estabilidade.
Estas
decisões não agradaram àqueles que já viam o MFA e o seu espírito
definitivamente enterrados. Sousa Tavares, em A Capital (25-8-1976),
chama a esta decisão «facto espantoso», «aberração», «bebedeira do poder».
Acusa os membros do Conselho da Revolução de se julgarem «sujeitos de direito
divino». Esquecendo que, sem a acção do MFA, não haveria sequer governo PS, diz que «a intervenção militar na política
será quase sempre contrária à democracia». Esquecendo fascismo, reacção e
golpes, afirma sumariamente que «a história da revolução portuguesa desde o 25
de Abril até hoje resumiu-se quase à luta nacional pela democracia contra o
poder militar (?) e contra o poder apoiado em militares (?!)». E evidente que este senhor o que pretende é
que seja outro o poder militar e que esse poder militar esteja ao
serviço da reacção.
Entretanto,
o Conselho da Revolução não cedeu dos seus poderes constitucionais e
consolidou-se como órgão do poder, a par do Presidente da República e da
Assembleia da República, eleitos por sufrágio universal, e do governo formado
por incumbência do Presidente e tendo de responder simultaneamente perante
este e perante a Assembleia.
O
resultado das eleições e a formação desse governo abrem uma nova fase no
processo revolucionário, que o povo português está interessado seja de
consolidação do que já foi alcançado e de estabilização do regime democrático.”
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