Partido Comunista Portugu�s
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Intervenção de Edgar Silva, deputado na Ass. Leg. da Região da Madeira e membro do CC do PCP
Madeira: uma história do triunfo das desigualdades. Linhas da ruptura para uma (nova) história da Justiça Social
Terça, 20 Abril 2010


    “Quem conheça o nosso sistema de pensões, o mercado de trabalho, o sistema de salários e o carácter precário de algumas actividades por conta de outrem, saberá que, com estes tipos de sistemas, é forçoso que haja pobreza”
(A. Bruto da Costa, Exclusões Sociais, pg. 44)


Na Madeira, quanto à extensão e profundidade da pobreza é impossível não reconhecer, no presente, o impacto directo dos seguintes factores:
1- A estrutura salarial mais baixa do que a média do País;
2- O rendimento dos agregados familiares mais baixo do que a média nacional, de acordo com o estudo do Instituto Nacional de Estatística, “Inquérito às Despesas das Famílias”;
3- No sistema de pensões, a média das pensões e reformas tem a mais baixa média global do País;
4- O Índice de Poder de Compra na Região está abaixo da média nacional.

A Madeira escreveu desde o seu povoamento uma história do triunfo das desigualdades. Em cada um dos ciclos económicos, e quanto mais cresceu a riqueza, mais se intensificou a exploração, e ficou mais funda a injustiça social. A dinâmica económica dependeu sempre da desigualdade, para realizar o trabalho braçal, e como garantia das baixas remunerações, contando com a força da carga ideológica, da cultura da aceitação, com a sua visão mítica sobre a “ilha-paraíso”, como forma de impedir as mobilizações sociais e assegurar o funcionamento tranquilo da sociedade.


À Madeira chegaram, no século XV, os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, para o arranque económico do arquipélago. “A Madeira foi buscar a mão-de-obra necessária para plantar os canaviais. Primeiro foram os escravos brancos das Canárias e de Marrocos, depois os negros das partes da Guiné e Angola”1.


    Com o “ouro branco” configurou-se e fortaleceu-se a classe mercantil. O tráfego açucareiro promoveu a opulência do açúcar. Enquanto se afirmou a opulenta classe mercantil, alargou-se o mercado negreiro e o número de escravos.
    Depois da primitiva exploração dos cereais, no “ciclo do trigo” e a partir das últimas décadas do séc. XV até meados do séc. XVII, a pequena nobreza fundiária-mercantil madeirense dedicou-se quase exclusivamente à monocultura do açúcar. No “ciclo do açúcar” intensificou-se a exploração, cresceu a riqueza e a desigualdade social.


    Desde meados do séc. XVII e até às últimas décadas do séc. XIX, o punhado de morgados e senhorios madeirenses, donos das terras e por isso dirigentes da produção, passaram a interessar-se, predominantemente, pela cultura e exportação do vinho. Depois do “ciclo do vinho”, a partir do séc. XIX, a burguesia madeirense, já proprietária e em ascensão como consequência da abolição em 1863 dos morgadios, fomentou novamente a produção e a exportação do açúcar, progressivamente substituída pela cultura e exportação da banana, enquanto a Madeira se ia transformando em estância turística.


Assim, antes e depois do 25 de Abril, forma-se e consolida-se o “ciclo do Turismo”. Com a Autonomia, através da continuada articulação entre o poder político e o poder económico, concretizada quer através das contrapartidas vantajosas do favorecimento indirecto, quer pelo directo financiamento público, pela via dos fundos comunitários ou pelo subsídio regional, o poder político jardinista desdobrou-se em benesses aos seus empresários, através de fórmulas mais sofisticadas e diversificadas, como acontece com as “concessões”, com as “parcerias público-privadas” ou os “protocolos de contratação de serviços”…
Os principais interesses económicos e financeiros da Região determinam a execução das políticas, requerem a repartição de mercados, definem, na prática, a gestão territorial e orientam o uso do solo, exercem a condução das políticas orçamental e fiscal, orientam a produção legislativa destinada a consagrar opções e medidas favoráveis aos seus mais directos interesses.
Outra característica do Jardinismo é o grau de concentração dos rendimentos e a extraordinária correlação entre os mais ricos e os mais pobres.


De acordo com o Eurostat, o nosso País é aquele que apresenta a maior desigualdade entre pobres e ricos. Na Madeira, verifica-se uma ainda mais funda desigualdade social. A clivagem social é aqui muito mais agravada do que a média de Portugal. Se no que respeita aos rendimentos Portugal apresenta o pior coeficiente da União Europeia (8,2), quando a média europeia é bem inferior (4,9), mais escabroso é o coeficiente desta Região Autónoma (13,5). É, portanto, na Madeira que se regista mais a desigual distribuição da riqueza e onde os mais ricos mais concentram os rendimentos.
    A Madeira é um dos lugares demonstrativos de que como é mais exacto, sempre que se considere o problema da pobreza, indissociavelmente falar das desigualdades sociais. Aliás, é um dos exemplos de como a pobreza existe sem exclusão social. Como afirma A. Bruto da Costa, pode haver pobreza sem exclusão social, como acontecia aos pobres no “Ancien Regime”, em que os servos eram pobres, mas encontravam-se integrados na rede de relações de grupo ou de comunidade. E algo de semelhante se passa hoje em tantos dos lugares em que “pobreza e exclusão social são realidades distintas e que nem sempre coexistem”2.


    A Madeira é onde os habitantes são proporcionalmente os mais pobres de Portugal. “No entanto, é surpreendente constatar que a proporção de habitantes da Madeira que se considera pobre, o que denominamos pobreza subjectiva, é a mais baixa de todo o Portugal”3. Quer isto dizer que a pobreza está integrada no sistema social e constitui uma forma de viver e um destino mais ou menos aceite pelo peso das obrigações. “A pobreza parece normal. Não escandaliza”4. A pobreza surge como um elemento constitutivo do sistema social. As pessoas habituaram-se, acostumaram-se à desigualdade social.
A resignação perante tamanha desigualdade social não é possível sem a formação de uma ética e uma cultura que tolerem e legitimem este estado de coisas. A aceitação da pobreza ao lado da riqueza, a aceitação da “normal”, “natural” separação de classes, da consolidação dos privilégios e desigualdade social é inseparável da cultura da aceitação de um modelo social.
    O maior empecilho à mudança radica aqui, numa das causas principais da própria desigualdade social: a cultura da aceitação ou da resignação.


    A partir da chamada “descoberta da Madeira”, e desde logo na primeira fase do povoamento do arquipélago, configurou-se a representação mítica da “Madeira – Paraíso”. Essa imagem é ainda hoje veiculada através da expressão “cantinho do céu”. Ser ou estar no “cantinho do céu”, referindo-se à Madeira, é imagem figurativa, como signo, traço presente na formação da memória colectiva, enquanto dispositivo que participa da constituição, armazenamento, síntese e transmissão da consciência do povo, da consciência de si mesmo.


    A imagem figurativa “Madeira – Paraíso” transporta ao longo dos tempos uma forte componente ideológica que conserva e assegura uma cristalizada estrutura social. Decorre, em parte dessa visão, uma postura política e social de resignação diante dos acontecimentos, a sujeição ao poder da Natureza, a acomodação às situações adversas, o justificar dos conflitos e antagonismos presentes na sociedade, a legitimação do mando e da submissão.
    O que fazer?
    Se é verdade que os problemas da pobreza e da desigualdade social requerem políticas alternativas que alterem as raízes estruturais e transformem os nexos causais, é também indispensável vencer a herança cultural da submissão. Romper com a concepção de Homem e História que impede a emancipação política e o interferir nos rumos do processo histórico, fazem parte de uma longa e complexa batalha ideológica a empreender.

    A aprendizagem de que aos homens é possível determinar outro rumo à História, de que pelo nosso agir podemos pensar rumos diferentes para a sociedade, essa outra experimentação da construção histórica faz-se através de lutas concretas, na difícil conquista dos direitos. Acreditar, assim, na História enquanto movimento, em que o Homem seja sujeito da História, é parte preponderante para a possibilidade de uma (outra) história da justiça social.
    Neste contexto, cada uma das experiências das iniciativas de lutas bem concretas por objectivos de justiça social, cada uma das lutas pela conquista de direitos tem significado e alcance relevantes.
    A generalidade das pequenas lutas não objectivam, nem representam a viragem estrutural na sociedade como um todo. Mas, cada uma dessas pequenas lutas, cada um desses percursos, por mais localizados que sejam, estimulam e projectam para a importância da luta como condição para transformar a realidade concreta, para transformar a vida.

1) A. Bruto da COSTA, Exclusões Sociais, pg. 10.

2) Serge PAUGAM, As formas elementares da Pobreza (Paris 2005), pg. 107.