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De novo a dívida externa - Carlos Carvalhas, Comité Central
Sábado, 24 Novembro 2007
 
Carlos Carvalhas

 

«Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o senhor e o servo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta».

Esta afirmação, que tem toda a actualidade, foi produzida não por um marxista mas por Henri Lagardaire, dominicano e deputado na Constituinte Francesa de 1848.

Na verdade, para o forte, para o rico, para o senhor o que lhe interessa é não haver entraves, não haver regulamentos, não haver lei para que possa impor a sua força e exercer o seu domínio a seu bel-prazer. A única lei que lhe interessa é a lei do mais forte.

É nesse sentido que se pronunciam os defensores do livre-cambismo e da abertura dos mercados e que se manifestam as pressões, para cada vez maior desregulamentação, flexibilização e privatização das empresas estratégicas e serviços. No nosso país e recorrendo a um aforismo popular podemos dizer que são as pressões da panela de ferro no embate com a panela de barro.

Este é o pensamento neoliberal teorizado entre outros por Friedman e os boys de Chicago, na sua síntese: «é preciso libertar o mercado de todo o entrave para voltamos a ter "a idade do ouro" que conheceram as nações como os EUA e a Inglaterra no século XIX»! «As sociedades contemporâneas não sofrem dum excesso mas de falta de capitalismo».

Que esta filosofia serve aos grandes e que impulsionou a construção europeia é uma evidência.

Por isso nunca a concentração da riqueza foi tamanha.

E é esta teoria que tem servido de guia aos países dominantes na União Europeia e que em Portugal tem orientado as políticas do bloco central, PSD/PS com ou sem CDS.

Estas políticas, no quadro da adesão e da apreciação do Euro, da abertura total do mercado, das privatizações e da destruição do aparelho produtivo são responsáveis pelo agravamento dos agudos problemas estruturais da economia portuguesa, reflectidas nos défices externos.

Na verdade fala-se muito do défice orçamental e sacrifica-se o crescimento económico para o combater, mas fala-se muito pouco no gravíssimo défice externo - balança corrente e de capital - que espelha a debilidade do nosso aparelho produtivo. Este continuado e elevado défice, sobretudo nos últimos dez anos, tem vindo a ser coberto com o recurso à dívida externa. Para se ter uma ideia do agravamento atente-se que em 1996 o endividamento externo líquido representava apenas 10% do PIB. Hoje representa 81,3%. E independentemente dos números há que reter a sua aceleração.

 

Endividamento externo em % do PIB

Mil milhões de euros

 

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

10,4

18,5

25,7

31,5

39,6

47,4

56,3

64,8

70,4

79,4

81,3

 

Fonte: Banco de Portugal, INE e Direcção Geral do Orçamento

 

Na nossa última Conferência Económica tínhamos pela frente uma elevadíssima dívida externa, um garrote da economia portuguesa como então lhe chamámos. Hoje estamos confrontados com a mesma situação, e se não temos a pressão das divisas temos a agravante de que não dispomos dos instrumentos da política monetária e cambial restando-nos a política orçamental e mesmo esta limitada pelo espartilho do Pacto de Estabilidade.

Face a este gravíssimo quadro quero sublinhar as seguintes observações.

Esta dívida vai ser paga com a produção e a saída de capitais, está muito dependente do crescimento da economia e das exportações e/ou com a entrega de activos (empresas, acções, etc.).

Ela agrava substancialmente a dependência do país com o exterior, é uma restrição ao desenvolvimento e, dado o seu volume, qualquer subida das taxas de juro traduz-se em montantes substanciais a sair do país.

O persistente défice externo que está na origem da dívida não foi uma consequência de necessidades de investimento em bens transaccionáveis. Isto é não foi uma consequência de investimento dirigido para a substituição de importações ou para a produção de bens exportáveis, o que ajudaria no futuro a combater o défice e a saldar a dívida.

Aqueles que atribuem o desequilíbrio das contas externas ao excesso de despesa verificada nos últimos dez anos ficam apenas pela superfície das coisas.

Passam por cima da abertura do nosso mercado interno; das privatizações das empresas básicas e estratégicas e do seu progressivo domínio pelo capital estrangeiro; da destruição do aparelho produtivo e da implementação de grandes cadeias de distribuição internacionais levando cada vez mais à substituição da produção nacional pela estrangeira. É por isso que qualquer aumento de despesa interna tem como consequência uma pressão sobre as importações. Esquecem também a quebra da competitividade das nossas exportações pela apreciação do euro. Apagam o facto de que à excepção do sector da pasta de papel, dos cimentos, da cortiça e pouco mais, as nossas exportações são feitas sobretudo por pequenas e médias empresas e que os grandes grupos nacionais há muito deixaram de investir nas actividades produtivas. Preferem as altas taxas de rentabilidade das actividades imobiliárias, financeiras, de intermediação e especulativas.

É por isso que os lucros da banca e dos grandes grupos sobem exponencialmente e o país definha e empobrece. Fomos ultrapassados pela Grécia, depois pela República Checa, depois por Malta e agora até pela Estónia.

Última observação: aqueles que se deslumbram com o novo Quadro Comunitário de Apoio (QREN) e nos dizem que vamos receber 10 milhões em média por dia, há que lembrar-lhes que sendo uma verba importante é uma muito insuficiente compensação pela abertura do nosso mercado e domínio do estrangeiro. Vão entrar 10 milhões de euros por dia, mas só de Janeiro a Agosto saíram de lucros do investimento estrangeiro 7 milhões por dia e para pagar o endividamento externo líquido 51 milhões de euros dia! É obra!

Hoje confrontados com o problema da dívida, os seus responsáveis levantam desde logo a questão real da produtividade e da competitividade, esta agravada pela valorização do euro e recorrem à habitual mistificação ideológica em torno destes conceitos procurando, como se diz no Texto da nossa Conferência «uma sequência lógica - salário - produtividade - competitividade, como se houvesse uma sequência simples, relação causa/efeito, na esfera tão complexa da produção económica, olhando para o salário como um mero custo microeconómico».

Para aumentar a produtividade e através dela a competitividade as respostas destes não vão para a melhoria de organização, para a melhoria da qualidade dos produtos, para a modernização tecnológica mas quase sempre para o estafado eufemismo da "moderação salarial". Outros são mais explícitos.

Um economista do MIT, Olivier Blanchard, preconizou uma diminuição de 20% nos salários e Fernando Ulrich, chegou a defender os 15%, num país com os níveis de rendimento e de pobreza conhecidos!

Seria interessante que todos estes revelassem os seus rendimentos e respectivos patrimónios.

O combate à dívida externa exige uma outra política, uma política de desenvolvimento que defenda a nossa produção, que valorize o trabalho e os salários, que combata a financeirização da economia, que melhore o nosso perfil de especialização e dê resposta aos défices agro-alimentar, energético e tecnológico. E exige  também uma postura do Banco de Portugal e do governo de firmeza e não de subserviência em relação ao Banco Central Europeu e à sua política de estrangulamento das economias mais débeis em nome da apreciação do Euro.

Mas a grande medida para o combate aos défices camaradas, está no desenvolvimento da luta de massas para que se derrote esta política, quer tenha a bandeira do PS, quer tenha a bandeira do PSD, e se imponha uma nova orientação ao serviço do povo e de Portugal.