Inicio
Intervenções e Artigos
Posições Políticas sobre IVG
PCP na AR sobre IVG
Tempos de Antena do PCP
Fotos da Campanha
Apelo do Comité Central do PCP
Questões Legais sobre Referendo
 Folheto IVG -2ª Fase
Folheto em PDF
Depoimentos em video



Início arrow PCP na AR sobre IVG
Estabelece protecção adequada às famílias em união de facto - Intervenção de Odete Santos
Estabelece protecção adequada às famílias em união de facto - Intervenção de Odete Santos
Quarta, 25 Junho 1997

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

Por iniciativa primeiro do Grupo Parlamentar os Verdes, e depois do P.C.P., é possível fazer hoje um debate alargado sobre a família.

A família tal como é encarada no artigo 36º da Constituição da República, baseada ou não no casamento.

A nossa lei fundamental não ignorou a realidade sociológica e recusou-se a consagrar apenas a família como realidade jurídica, nascida do Direito Civil que muito a custo se foi despindo do moralismo napoleónico, que aparece ainda que já muito timidamente depois da reforma de 1.977, no actual Código Civil.

De facto, não podia a Constituição da República, porque é uma Constituição nascida de Abril, reduzir o conceito de família ao agregado familiar resultante do casamento. A Constituição optou por consagrar um conceito amplo de família, por forma a que o legislador fosse adaptando a lei à evolução da realidade.

Fechar os olhos a essa realidade em nome de um pseudo moralismo, seria em certos casos, como diz Carbonnier, recusar a protecção da lei a alguns, privilegiando os mais fortes e mesmo os mais escrupulosos.

Não pode hoje recusar-se a importância crescente dos direitos do homem e da mulher, como indivíduos, da participação da participação das mulheres na produção, a importância da evolução do estatuto da mulher, na transformação da realidade familiar. Na individualização na família dos direitos dos seus membros.

Falar-se hoje em família como um ente com personalidade, com valores próprios a defender e a transmitir, para além de denotar um teimoso apego a ideologias bonapartistas, mais não é do que caminhar ao arrepio da evolução social. Desconhecendo que com a globalização da economia, com o endeusamento do mercado, com as novas formas de exploração através da desregulamentação do tempo de trabalho, a família nuclear em desagregação sofre novos impactos , exigindo ao legislador que acompanhe as transformações.

Não há dúvida nenhuma de que uma dessas transformações se saldou na aceitação social das uniões de facto a que se passou depois da hostilidade, vazada nas leis, que sobretudo se abateu sobre as crianças que transportaram o estigma da ilegitimidade, e foram discriminadas por via disso.

O P.C.P. há muito que tem tentado dar respostas às questões que se colocam ao direito, perante uma realidade familiar similar à que se constitui com base no casamento. E a que alguns, como Mary Ann Glendon, chamam a sua instituição sombra.

Em 1.985, aquando do debate da lei das rendas, o P.C.P. apresentou propostas no âmbito da transmissão do arrendamento.

Em 1.988, mais exactamente no dia 7 de Junho de 1.988, o P.C.P. apresentou o Projecto de Lei 259/V, concedendo direitos às pessoas vivendo em união de facto na área da Segurança Social.

Na passada legislatura, e depois do Despacho Regulamentar 1/94 com que se puniu as uniões de facto, através da exigência de sentença judicial para acesso ás prestações da segurança social ( entendendo alguns Tribunais superiores que se torna necessário propor duas acções ) o P.C.P. apresentou o Projecto de lei 457/VI. Que para além do mais ampliava o conceito de união de facto para acesso àquelas prestações, de uma forma inovatória. Que mantemos no Projecto hoje em discussão, não só para a área da segurança social, como para as áreas da habitação e do trabalho.

É que, não desistindo o Estado, tanto como deve, da intromissão na privacidade dos casais, o que se nota na manutenção de alguma rigidez nas causas válidas de dissolução do casamento, é o Estado quem incentiva desta forma o aparecimento da comunhão de vida estável entre duas pessoas, ligadas a outras por vínculo matrimonial.

Sendo tais situações aceites socialmente porque o são, a ilicitude das mesmas acolhida pelo direito civil , que assim ultrapassa a própria sociedade no julgamento moral, não pode determinar na área dos direitos sociais que a união de facto se confine à situação já hoje consagrada no artigo 2.020º do Código Civil.

Desta breve resenha sobre iniciativas anteriores do P.C.P. se tira a conclusão de que esta questão não é para nós uma questão de moda.

Os problemas jurídicos colocados pelas uniões de facto existem, foram mesmo debatidos no âmbito do Conselho da Europa.

Os dados demográficos conhecidos indicam uma progressão do número de famílias em união de facto.

A pergunta que se coloca é se o direito pode ser alheio a esta realidade.

Foi interessante verificar nas posições já defendidas pela Direita, que se falou muito no respeito pela liberdade daqueles que não quiseram aceitar as regras jurídicas da família baseada no casamento, para justificar a recusa de um quadro legal integrado sobre as uniões de facto.

A verdade é que essa é uma nova forma de assumir a afirmação de Napoleão Bonaparte sobre a união de facto : Les concubins se passent de la loi. La loi se désinteresse d´eux.

O que está na base dessas posições é ainda a hostilidade, não representada socialmente, a uma forma de constituir família sem ritual obrigatório, sem papel passado. Uma hostilidade a uma forma de família que julgam ameaçar o casamento.

Sem qualquer razão.

A verdade é que casamento e união de facto foram deixando de se opor sociologicamente à medida que o Estado ia abdicando da intromissão na privacidade dos casais.

Com efeito, a união de facto foi muitas vezes a contestação do estatuto subalterno que às mulheres era reservado na família matrimonial.

Foi a contestação das proibições e impedimentos à dissolução do vínculo matrimonial. Foi e ainda o é.

Representou para muitos, nomeadamente para as mulheres, a garantia da igualdade dos sexos, e o acentuar da importância do direito à felicidade por parte dos dois sexos.

As uniões de facto surgiram mesmo em Portugal, no âmbito do regime da Concordata, por imposição resultante da proibição de dissolução dos casamentos católicos.

Mas esta oposição foi-se esbatendo à medida que a conquista de direitos, nomeadamente a conquista da igualdade dos sexos, determinou necessariamente profundas alterações no Direito da Família, e mesmo no Direito Penal.

O Estatuto dos elementos da família, mais libertos no casamento da sombra tutelar do Estado na vigilância dos bons costumes, tornou-se semelhante nas duas realidades.

Um dos motivos que levava alguns à opção pela família constituída informalmente, deixou , assim, de existir em boa medida.

Na caminhada, inelutável, dadas as transformações sociais, para uma maior liberalização na dissolução do vínculo matrimonial, os contornos da união de facto e do casamento poderão esbater-se ainda mais. Sem que se possa prever que a união de facto se torne residual, já que a privatização do casamento se por um lado assegura a liberdade, também assegura a igualdade de estatutos sociais das duas realidades.

Agindo então, homens e mulheres em plena liberdade na sua opção pela forma de constituir família.

E é essa plena liberdade que os Estados devem assegurar, pois não poderão ilicitamente, impor esta ou aquela realização de um direito de personalidade, o direito de viver em conjunto.

Colocados perante as questões suscitadas pelas uniões de facto, recusamos o paradoxo resultante da actual legislação ( que acentue-se, pôs fim a muitas sanções indirectas contra as uniões de facto), recusamos o paradoxo que consiste em não ter qualquer interesse para o direito, tratar-se de uma família baseada no casamento ou não, e já assumir importância tal situação na área do direito privado.

É nesta área com efeito, que se sentem as maiores resistências, assumindo-se o direito civil como defensor de uma suposta moralidade.

Será que as uniões de facto recusam o direito? Será que ao Direito, neste caso ao Direito Privado, poderão ser indiferentes as uniões de facto?

A verdade é que a situação existente noutros países, onde a jurisprudência assumiu papel importante, vem denotando um recuo nos preconceitos morais contra as uniões de facto.

Em Portugal a omissão do legislador ordinário na área do direito à habitação, na área das relações patrimoniais entre os cônjuges, na área das suas relações pessoais, na área do direito sucessório, constituem ainda discriminações relativamente às famílias em união de facto, especialmente sentidas nas situações de ruptura.

Resta muitas vezes à pessoa financeiramente mais fraca, o recurso às acções com base no enriquecimento sem justa causa.

Seguramente que é difícil e complexo criar um quadro jurídico completo, dadas as variadas situações que conduzem às uniões de facto.

Os que se opõem a tal regulamentação argumentam que a mesma tira toda a flexibilidade ao fenómeno, e que para tal manifestação de liberdade não deve haver limitações.

Mas, tal como se disse no âmbito do Colóquio organizado pelo Conselho da Europa " toda a manifestação de liberdade encontra limitações. Na união de facto, a relação de facto mantém-se livremente mas não sem responsabilidade. Não é permitido abandonar ao capricho e ao livre arbítrio individual, à irresponsabilidade, a sorte daqueles que não escolheram o casamento" Porque o direito de viver informalmente é bem diferente do direito de viver fora das leis. O primeiro é legítimo, o segundo é inadmissível, como se diz no Relatório final do referido colóquio.

Aliás, no projecto de Lei que apresentámos, tivemos em consideração as conclusões desse relatório:

  1. Recusar qualquer registo para as uniões de facto porque isso representaria a imposição de um estado civil contrário ao artigo 23º do Pacto Internacional das Nações Unidas relativo aos direitos civis, sociais e culturais
  2. Aplicar os mesmos princípios do casamento de cada vez que o sistema jurídico parte do pressuposto de uma vida em comum, o que acontece, nomeadamente na área do direito fiscal, do direito a indemnizações por responsabilidade extracontratual, caso, por exemplo, dos acidentes de viação, na área da segurança social, na área das obrigações alimentares, da contribuição para as despesas domésticas, na área laboral
  3. No respeito pelos princípios fundamentais da liberdade e da igualdade, aproximar o regime de bens do da comunhão de adquiridos, que o Relatório considerava dever ser favorecido a fim de evitar a exploração da actividade de cooperação entre as partes, também sob a forma de trabalho doméstico.

 

Não fomos tão ambiciosos relativamente às relações patrominiiiais. O que o nosso Projecto de Lei estabelece, na falta de celebração de convenção notarial, como acontece no Canadá, por exemplo, ou de convenção na Conservatória do Registo Civil, relativamente ao regime de bens, é uma presunção ilídivel de que os bens adquiridos durante a coabitação são comuns, exceptuados aqueles que não entram na comunhão de adquiridos.

Quarto e último ponto do relatório:

Estabelecimento da solidariedade de responsabilidade relativamente a obrigações contraídas no interesse da vida em comum.

Também no nosso Projecto nos preocupámos com as relações entre as pessoas vivendo em união de facto com terceiros credores, matéria que deve ser objecto de qualquer diploma para preservar os interesses destes.

Por último, e em sede de direito sucessório, propomos que no caso de não existirem descendentes do autor da sucessão, o sobrevivo de uma união de facto com pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, herde como se fosse cônjuge. A comunhão de vida que deu origem a profundas alterações no direito sucessório justifica a proposta.

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

Não é raro que pessoas em união de facto reclamem direitos, contrariando a aparência de que quiseram abrir mão desses direitos.

O Direito não pode deixar de regular os problemas jurídicos suscitados pela união de facto, que a jurisprudência muito raramente resolve.

No entanto, mesmo da parte de alguns que admitem o estabelecimento de algumas regras que salvaguardem os direitos dos mais fracos, do ponto de vista financeiro ou psicológico ( ainda na maioria dos casos as mulheres) mesmo da parte desses ouvimos a proposta de soluções no âmbito do direito civil, que representam, consciente ou inconscientemente, preconceitos relativamente à liberdade sexual, corolário da liberdade exercida através da opção pela união de facto.

A esta atitude preconceituosa correspondem propostas como a assimilação das uniões de facto a situações contratualizadas. E a recusa de aproximação no âmbito das relações patrimoniais, à situação gerada pelo casamento.

São preconceitos que a própria opinião pública rejeita. Prova de que o direito civil, naquilo em que ainda assimila uma pseudo moralidade com ilicitude, tem de ceder. Por não corresponder `representação social.

Tal como se deram passos importantes na Reforma do Código Civil de 1.977, outras alterações se lhe seguirão.

Necessárias na salvaguarda da liberdade individual na escolha da maneira de viver, como necessárias foram as alterações ao divórcio na mesma salvaguarda daquela liberdade.

Disse

 

 

 

Jornal «Avante!»
«O Militante»
Edições «Avante!»
Comunic, a rádio do PCP na Internet