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Sobre o papel do Estado no sector energético - Intervenção de Fernando Sequeira-Sessão sobre Energia
Terça, 22 Maio 2007


A energia, é um factor de produção que vem assumindo, particularmente a partir de meados do século XX, um protagonismo crescente nas sociedades modernas., devido a uma procura exponencial, dominantemente relacionada, mas não só, com a satisfação das crescentes necessidades humanas, seja em termos da qualidade de vida, seja para responder ao crescimento demográfico.

 

São crescentes as necessidades de energia na produção industrial, nos transportes, nos serviços e no quotidiano das famílias, fazendo com que a procura de energias finais venha crescendo a ritmos acelerados, embora o seu peso no produto interno, devido a melhorias significativas nos rendimentos energéticos de múltiplos tipos de equipamentos e dispositivos, esteja, em muitos países, a decrescer.

 

A satisfação das necessidades energéticas é feita actualmente, através, fundamentalmente, da utilização das seguintes energias finais: combustíveis líquidos, gás natural e electricidade, obtidas dominantemente a partir dos combustíveis fósseis petróleo, gás natural e carvão e, em menor escala, de combustíveis nucleares e de energias renováveis.

Ao mesmo tempo que a procura continua a crescer, avizinham-se enormes ameaças e incertezas sobre a sustentabilidade do aprovisionamento, com destaque para a escassez crescente e mesmo o total esgotamento das reservas de petróleo, num horizonte de duas gerações, e, com o atraso de algumas décadas, também do gás natural.

 

Portugal possui em termos relativos, muito significativas potencialidades relativamente a algumas energias primárias, particularmente as renováveis - a hidroeléctrica, a solar, a eólica, a biomassa, as relacionadas com o mar e a geotérmica - aproveitadas ainda, com excepção da hidroeléctrica e da eólica, a uma escala muito reduzida, e que só uma política ao serviço dos trabalhadores, do povo e do país poderá potenciar de forma racional. Trata-se indiscutivelmente de um objectivo estratégico do nosso desenvolvimento.

 

A gestão da energia, seja no que respeita à procura de energias finais, seja no que concerne à sua oferta, assume um carácter profunda e crescentemente estratégico, sendo um dos mais importantes pilares da sustentabilidade das sociedades desenvolvidas como actualmente as conhecemos, carácter estratégico que se acentua face à perspectiva de crescentes desequilíbrios entre a oferta e a procura, e que, portanto, deveria e deverá obrigar a uma cada vez mais profunda intervenção dos Estados, no quadro do exercício das suas soberanias e independências, embora bem saibamos, quanto pesado e excessivo é nos dias de hoje, o protagonismo do grande capital neste domínio, seja a nível internacional, seja nacional.

Portugal está há quase duas décadas sem política energética. Em vez de tão importante instrumento, esta foi sendo, no fundamental, paulatinamente substituída por uma política de privatizações, pelo comando dos índices bolsistas sobre a gestão das empresas e pelas jogadas do grande capital nacional e internacional, utilizando tão importante sector para os seus negócios e objectivos particulares, sempre no quadro de uma brutal concentração e acumulação do capital.

 

Contudo, este paradigma neoliberal, é total e completamente incompatível com o desenvolvimento sustentado.

No plano nacional, a intervenção do Estado deve começar pela definição e execução clara de uma autêntica política energética ao serviço do povo e do país e portanto do desenvolvimento, o que significa, desde logo, a criação ou reanimação dos instrumentos e dos meios para a executar, como sejam a recriação do Gabinete do Plano Energético Nacional e da actualização deste, enquanto matriz de uma política energética, com orientações precisas e seguras sobre as políticas de oferta e de procura.

Neste quadro, a intervenção do Estado português, deve ser profunda e multifacetada, seja relativamente à modelação das políticas de procura, seja relativamente às  políticas de oferta, com vista a assegurar um desenvolvimento sustentável, com respeito pelo equilíbrio das contas externas e da envolvente ambiental.

É preciso tornar muito claro, que existe uma total incompatibilidade entre o carácter crescentemente estratégico da gestão da energia, ainda por cima no quadro das profundas ameaças já anteriormente referidas, e que, num horizonte de uma a duas décadas, as potencialidades da C&T só permitirão atenuar, e o carácter privado dos circuitos económicos ligados à energia - pesquisa, exploração, aprovisionamento, armazenagem, produção e comercialização.

 

 

Observemos seguidamente alguns aspectos da ausência, ou da incorrecta intervenção do Estado na gestão do sistema energético português, designadamente nas suas correlações com outros sectores e sistemas.

Exemplos avulsos, mas que ilustram de forma categórica as políticas seguidas pelo PS e o PSD, há mais de 20 anos, nestas esferas e que são paradigmáticos sobre a incorrecta intervenção do Estado, no domínio da procura de energia. São eles:

 

            - o da evolução do preço dos transportes públicos

            - o da utilização do potencial de energia solar

            - o da política do transporte rodoviário

 

Observemos o primeiro exemplo: O actual governo, na senda dos anteriores, tem um discurso, em que aparentemente privilegia o transporte colectivo face ao transporte individual, mas tem uma prática política que contraria completamente tal propósito, ao indexar, de forma  sistemática, o preço dos transportes colectivos, ao do preço dos combustíveis.

Generalizando esta orientação, chega ao ponto de aplicar os mesmos critérios aos transportes públicos de tracção eléctrica.

Trata-se de uma política suicida, pois que conduz as pessoas a não optarem pelo transporte público. Se, ao contrário,  mantivessem, ou mesmo baixassem os preços dos diversos modos de transporte público, porventura com o pagamento de indemnizações compensatórias às transportadoras, a procura destes aumentaria inevitavelmente, e o país teria imensos benefícios, designadamente na balança energética, no tempo não perdido em transportes, ambientais e nas responsabilidades internacionais relativamente a Quioto.

 

 

Relativamente ao segundo exemplo, ou seja, o da instalação do solar térmico em edifícios novos, ampliados ou reconstruídos, sendo Portugal o país europeu com mais horas de Sol por ano, e sendo os consumos domésticos com aquecimento de águas e ambiente muito elevados, a promoção efectiva, desta tecnologia simples e estabilizada, permitiria poupar uma parte muito significativa dos actuais consumos de gás natural e electricidade. Para tanto, bastava que projectos e intenções bem antigas, já tivessem sido de há muito concretizadas.

Novamente na área dos transportes, a opção pelo transporte rodoviário de passageiros e mercadorias, em desfavor do transporte sobre carris electricamente accionado, constitui uma opção profundamente incorrecta, opção em que os governos tem uma dupla responsabilidade, a saber: por um lado, devido à total privatização do sector dos transportes rodoviários de passageiros e por outro, devido às políticas de investimento público que privilegiam a rodovia sobre os carris- veja-se a triste evolução dos caminhos-de-ferro, claramente o grande transporte de futuro para as pequenas e médias distâncias, a enorme lentidão com que avança a claramente estratégica expansão do metropolitano de Lisboa e o quase nulo investimento em eléctricos em cidades médias do país. 

É fácil de ver, só por estes três exemplos, como do lado da procura de energias, a responsabilidade dos governos é imensa e o Estado deveria ter um muito maior protagonismo.

 

Do lado da oferta, a questão mais preocupante, foi e é, o processo de privatizações, através do qual, foi retirado ao Estado a posse e a gestão de importantes activos estratégicos em empresas energéticas, bem assim como, as políticas empresariais privadas seguidas em sequência, políticas quase sempre lesivas do interesse nacional, impossibilitando a consecução de qualquer política energética e transformando o aprovisionamento energético, num enorme negócio do grande capital.

Por todas estas razões, o processo de privatizações na área energética, iniciado em Junho de 1992, com a privatização de 25 % da Galp, e que neste momento está a ter os seus desenvolvimentos finais, com a alienação das últimas participações que o Estado ainda detém nas empresas do sector, é um processo que atinge profundamente os interesses nacionais, seja em termos de segurança, seja em termos da competitividade da economia, particularmente do vasto tecido das micro e pequenas empresas, seja do desenvolvimento sustentável, seja finalmente em termos do exercício da soberania, mesmo entendido no quadro da integração na EU, pois que os egoístas interesses de curto prazo do grande capital privado e da pressão bolsista que lhe está associada, chocam-se permanentemente com os interesses colectivos, particularmente na perspectiva das gerações vindouras.
Isto é, podemos afirmar sem margens para dúvida, que com a vertente da oferta do sector energético nas mãos do grande capital, não poderá haver desenvolvimento sustentável, pois que o Estado perde a sua capacidade de actuação, tendo a Administração, designadamente a Autoridade Energética - ERSE - de facto um papel marginal e insignificante na gestão do sistema energético.

De uma outra maneira, podemos dizer que a política energética nacional foi e é a política de privatizações, instrumento fundamental do grande capital no processo de reconstituição monopolista.

 

Vejamos em breves traços, alguns dos crimes mais recentes.

Na produção, transporte, distribuição e comercialização de energia eléctrica, após as primeiras fases do processo de privatização da EDP iniciadas há mais de dez anos, é suspensa a construção de grandes centrais hidroeléctricas ( sendo o potencial ainda por aproveitar em termos de potência, de cerca de 2500/3000 MW, o que constitui um valor ainda muito elevado ) construção que potenciaria o próprio parque eólico que está a ser instalado.

Só há alguns muito poucos meses, é que, quer o governo do PS, quer alguns partidos da direita, redescobriram o enorme potencial hidroeléctrico do país e a necessidade de relançar a construção de grandes hidroeléctricas, mas não só, depois de serem objectivamente responsáveis por tal não aproveitamento. Seria interessante sabermos as razões que estão por detrás de tal mudança.

 Ao mesmo tempo, o nosso Partido, sem perturbações estratégicas, sempre defendeu e continua a defender tal orientação.

O caso do aproveitamento integrado do Alqueva é paradigmático.

Ao mesmo tempo que é fomentada pelos governos do PS e do PSD/CDS, a construção de múltiplas centrais térmicas de ciclo combinado a gás natural, para  a EDP e outros grupos económicos, com reflexos negativos  profundos, seja a nível ambiental, seja do acentuar do desequilíbrio da balança de mercadorias/energética, seja sobretudo aumentando a nossa dependência face ao exterior.

Ao mesmo tempo, no que concerne aos aproveitamentos eólicos, inicialmente previstos para a pequena produção independente, estes transformaram-se numa frente de negócios do grande capital, designadamente da área financeira, dadas as  tarifas pagas pelo KWh eólico, que só se justificavam na fase de arranque desta tecnologia, e não numa fase de maturidade como aquela que já foi alcançada.

Semelhante situação, é a que se está a viver com o nível elevadíssimo da produção de electricidade em regime de co-geração, subvertendo o princípio inicial de aproveitar as potencialidades energéticas de diversas indústrias de processo que precisam de gerar calor, o qual regime é transformado numa desmesurada produção de electricidade por via térmica, dado o KWh pago pela REN ser quase 1,5 vezes o KWh do regime vinculado.

 

A questão do brutal aumento das tarifas eléctricas, tem  completamente a ver com todos estes factos - ausência de política energética, acentuar da produção térmica, os preços pagos pela co-geração e pela produção eólica e, finalmente, os lucros fabulosos e economicamente inaceitáveis da EDP, mas não só, tudo factos decorrentes do processo de privatização.

 

Relativamente à refinação de petróleo, as incertezas, que de vez em quando aparecem, seja sobre o futuro da refinaria de Matosinhos, seja sobre o abandono da presença na área de exploração, assim como a estranha orientação de efectuar diversificações para fora do núcleo estratégico de negócios - por exemplo produção de electricidade - são algumas das consequências do processo de privatização. No ano passado, a escandalosa distribuição de dividendos, num valor superior a quase mil e duzentos milhões de euros, valor desviado da esfera produtiva, superior a 1/7 do valor total do investimento das linhas de comboio de alta velocidade, o que constitui um verdadeiro escândalo nacional, é também uma óbvia consequência do processo de privatização da Galpenergia.

 

Constituindo, quanto a nós, os maiores perigos das privatizações na área energética, a subversão de uma política energética coerente, devido, no fundamental, ao desenvolvimento de negócios contrários ao desenvolvimento nacional sustentável, convirá não esquecer que as novas relações financeiras estabelecidas entre o Estado e as empresas privatizadas, passam também a ser outro, aspecto profundamente prejudicial para o país, pela as razões seguintes, a saber: por um lado, os enormes dividendos que deixam de entrar nos cofres do Fazenda Pública, por outro, os impostos que diminuem e indirectamente pela incapacidade do Estado de gerir as tarifas de electricidade, independentemente das fórmulas tecnicamente intocáveis, que possam existir para o seu cálculo.

 

Um outro aspecto que não podemos deixar cair, é o do carácter de serviço público destas empresas, o qual, paulatinamente vai desaparecendo.

Por todas estas razões, devem ser urgentemente interrompidos os processos de privatização em curso nas empresas estratégicas do sector ligadas à produção de energias finais , e criadas todas as condições para que o Estado possa reassumir uma posição determinante nas maiores empresas do sector, designadamente na EDP, na REN e na Galp Energia.

 

Concluindo, diremos que só com uma forte e efectiva presença do Estado no sector energético- enquanto definidor de políticas, enquanto regulador e fiscalizador e enquanto detentor e gestor de activos empresariais, seja do lado da oferta, seja da procura- é possível atenuar e resolver a contradição profunda entre a nossa enorme e insustentável dependência energética e o aproveitamento dos grandes e diversificados recursos energéticos endógenos.

Para isso é necessário outro rumo e uma nova política ao serviço do povo e do país.