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Emissões de Carbono - Intervenção de Rui Namorado Rosa - Sessão sobre Energia
Terça, 22 Maio 2007


Sessão Pública «A política energética que o país precisa e o PCP propõe»

 

I

O Protocolo de Quioto (1997), que fixa limites às emissões de gases de efeito estufa (GEE) foi acordado na 3.ª "conferência das partes" (COP 3) à Convenção Quadro para as Alterações Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC, adoptada em New York, Maio de 1992); Os países "desenvolvidos" industrializados assumiram o compromisso de reduzir as suas emissões, incluindo os Estados Unidos. Na COP 7 em Marrakesh (em Novembro de 2001), foram definidas as normas operacionais de mecanismos de flexibilidade (segundo os quais um país que reduza as suas emissões pode negociar esta redução com outro país que não queira ou não possa reduzir as suas) e foi acordado, mesmo antecipando a entrada em vigor do Protocolo, iniciar o comércio de créditos de carbono e a aplicação de mecanismos de desenvolvimento limpo (que envolvem investimentos "limpos" por países industrializados em países "em desenvolvimento", em troca de créditos ou reduções certificadas de emissão). Com a ratificação da Rússia, em Novembro de 2004, o Protocolo atingiu o limiar de ratificação para entrar legalmente em vigor no prazo de 90 dias, o que aconteceu a 16 de Fevereiro de 2005, estando ratificado por 141 países.

O Protocolo de Quioto consagra o histórico de emissões atmosféricas, a pré-existente divisão mundial entre países "desenvolvidos" industrializados e países "em desenvolvimento", e toma a atmosfera como um património comum porém com diferenciados direitos de acesso a ela. Os mecanismos de flexibilidade introduzem o primado do mercado de carbono entre produtores e consumidores de bens e serviços para atingir o objectivo de controlar as emissões futuras, e com isso estabelece um novo sistema de transacções financeiras, concentradoras e especulativas, suportadas em supostos direitos de acesso à atmosfera, legalmente justificados à luz das emissões históricas.

Multiplicam-se manifestações de interesse por projectos oriundos de países "desenvolvidos", mais intensivos consumidores de energia, para investirem em projectos de MDL em países "em desenvolvimento", a que progressivamente cabe acolher indústrias básicas e transformadoras. A UNCCC com o Protocolo de Quioto surge assim como um motor internacional na criação de infra-estruturas energéticas e como facilitador de investimento directo estrangeiro (IDE) e de deslocalização de actividades industriais para os mais ricos países "em desenvolvimento" ou em "transição" (BRIC).

A União Europeia desempenhou especial protagonismo nas negociações conducentes à efectivação do UNCCC, com isso assumindo compromissos (e os seus estados membros) e colhendo benefícios perante terceiros. O desenvolvimento do processo mostra que, para além de objectivos de política externa, o Protocolo de Quioto vem alcançando objectivos de política interna, contribuindo para impor políticas comuns de sentido federalista. Para o efeito criou os seus próprios instrumentos e instituições - Programa Europeu para as Alterações Climáticas (ECCP), Comércio Europeu de Licenças de Emissão, Registo de Transacções Comunitárias (CTL), etc. e diversas directivas comunitárias. Vários bancos entraram em acção e abriram novas linhas de negócio. E surgiram numerosas empresas de consultadoria técnica e financeira através de continentes.

 

II

Existem vários mercados do carbono, compreendendo quer licenças de emissão quer créditos baseados em projectos, coexistentes e diferentes graus de conexão. Por isso, alguns analistas comparam os mercados de carbono mais a mercados de divisas do que mercados de commodities. O Protocolo de Quioto é o maior desses mercados e o esquema Europeu de transacções - EU ETS o principal dos seus subsidiários. Este esquema estimulou o comércio de licenças e a importação de reduções baseadas em projectos. Os principais compradores são agentes governamentais comprometidos com Quioto, agentes privados interessados no esquema Europeu, corporações japonesas antecipando um esquema de comércio nacional, corporações norte-americanas operando na Europa e no Japão ou antecipando a iniciativa regional de GEE (RGGI) no Nordeste dos EUA, empresas do sector energético reguladas pelo mercado de New South Wales na Austrália, empresas Norte-americanas empenhadas no Chicago Climate Exchange (CCX). Por outro lado, emergiu um segmento em expansão que explora a venda de reduções de emissões a empresas e a indivíduos que pretendem compensar as emissões por que são responsáveis ("pegadas ecológicas").

Entretanto, em vista do elevado potencial de captação ou multiplicação de capitais, foram constituídas a Asia Climate Exchange (ACX-Climex), uma importante plataforma de comércio de direitos e créditos que tem promovido leilões mais do que organizado contractos, e o Mercado Brasileiro do Carbono (MBRE), por iniciativa da Bolsa Brasileira de Mercados e Futuros (BM&F) e do governo. No que respeita aos principais "vendedores" do mercado do carbono, até meados de 2006, a Ásia através da China e da Índia assegurou a maior fatia de contractos baseados na implementação de projectos, seguida da América Latina através do Brasil e do México. A contribuição dos países "em transição" (na forma implementações conjuntas) foi muito modesta. A África mantém-se muito sub-representada no mercado do carbono. Existem projectos "voluntários" nos EUA e na Austrália com expressão.

 

No mercado Europeu existem seis plataformas de transacção que dão conta de metade do comércio de licenças (European Union Allowances - EUA); entre essas, a European Climate Exchange (ECX) em Londres assegura cerca de três quartos do mercado de transacções. Existe também um número crescente de correctores tradicionais e emergentes para actuarem no novo EU ETS. Grandes bancos de investimento, fundos e outras instituições tornaram-se nos principais actores nas plataformas de transacção de carbono. Se alguns bancos representam grandes e pequenos operadores industriais, outros actuam como correctores de fundos e especuladores. Correctores negoceiam por grosso contractos com e entre empresas do sector energético, e a retalho transacções à medida das necessidades de empresas diversas. A ECX estabeleceu entretanto relação com os fundos Europeu e Asiático de carbono e a ACE-Climex. Algumas plataformas do sector eléctrico, nomeadamente European Energy Exchange (EEX) na Alemanha e NordPool na Noruega, negoceiam agora também EUA.

Na sua primeira fase, de Janeiro de 2005 a Dezembro de 2007, o EU ETS regula as emissões de CO2 de grandes instalações industriais (sobretudo produções eléctrica e térmica, e também produtos minerais metálicos e não metálicos, e hidrocarbonetos) que representam cerca de 40% do total de emissões no espaço da EU. Essas emissões foram limitadas pelo tecto de 6.600 milhões de toneladas. O volume do comércio de EUA cresceu aceleradamente desde 2003, tendo atingido 322 milhões de toneladas em 2005, embora a movimentação de activos e a liquidez fossem relativamente modestas face ao volume de activos. Desde início, os principais protagonistas neste mercado foram as companhias do sector energético, pela experiência que detêm na transacção de electricidade e gás, e pelas oportunidades de negócio; mas, a partir de meados de 2005, bancos e fundos de investimento tomaram a iniciativa de procurar outras empresas interessadas e de actuar como gestores dos respectivos activos em carbono. Por outro lado, o tempo de criação dos instrumentos e instituições do novo mercado introduziu algum "atraso" na sua implementação, desde o nível nacional até ao comunitário, aderindo ao Registo de Transacções Comunitárias (CTL).

 

III

Segundo declaração do secretário de estado português, em fins de Novembro de 2006, Portugal criará um "fundo do carbono" no montante de € 354 milhões, um dos maiores já anunciados, a pretexto de adquirir créditos de carbono para satisfação das metas de Quioto, invocando ter sido antecipado um excesso de 3,73 milhões de toneladas anuais no período 2008-12 (segunda fase do EU CTS). À luz da meta comprometida segundo Quioto, o nível de emissões naquele período deveria estar limitado a 77 milhões de toneladas (CO2) por ano; o crescimento de emissões entretanto verificado, ao nível actual de 85 milhões anuais, conduziu a um conjunto de "medidas adicionais" de redução no PNAC e justificará a aquisição externa de créditos de emissão. Esse fundo do carbono será investido em projectos MDL em países "em desenvolvimento" e também em projectos de florestação em solos florestais e marginais, enquanto supostos sumidouros de carbono. O fundo de carbono será constituído por receitas tributárias e financiará projectos de que a influente indústria da celulose será a mais evidente executora como também beneficiária.

Em Portugal, o Plano Nacional para as Alterações Climáticas foi adoptado pela RCM 119/2004 (PNAC 2004) e fixa políticas e medidas sobre todos os sectores de actividade, para o controlo de emissões de GEE

O comércio europeu de licenças de emissão (CELE), regulado pela Directiva 2003/87/CE, transposta pelo Decreto-Lei 233/2004, foi o primeiro instrumento do mercado intracomunitário de emissões de GEE. O CELE entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2005, abrangendo todas as instalações com potência térmica nominal superior a 20 MW. Por outro lado, os mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL) e de implementação conjunta (IM) do Protocolo de Quioto são susceptíveis de gerar créditos convertíveis em licenças de emissão, nos termos estabelecidos pela Directiva 2004/101/CE.

Para que empresas instaladas em Portugal pudessem participar no CELE, seria necessário criar e atribuir-lhes licenças de emissão. A RCM 53/2005 fixou o Plano Nacional de Atribuição de Licenças de Emissão (PNALE), compreendendo métodos e critérios de atribuição, pelo estado, de licenças de emissão às instalações, o teto de atribuições, e o elenco de instalações a que seriam atribuídas gratuitamente tais licenças. A mesma RCM criou o Fundo Português do Carbono (FPC) que permitirá ao estado obter créditos de emissão mediante o financiamento de projectos no âmbito dos "mecanismos de flexibilidade" previstos no Protocolo de Quioto, e cria o instrumento "taxa de carbono", que teria como objectivo reorientar as escolhas dos consumidores e produtores, promover o esforço e equilíbrio entre os sectores abrangidos pelo PNALE, e obviamente contribuir para financiar o referido FPC.

O Despacho conjunto 686-E/2005 aprovou a lista de instalações participantes no comércio de emissões e procedeu à atribuição inicial de licenças de emissão (gratuitas) entre elas - 244 títulos de emissão alguns dos quais em montantes de vários milhões de toneladas de CO2, num total da ordem de 35 milhões/ano no período 2005-2007.

A RCM 33/2006 veio reforçar as competências da Comissão para as Alterações Climáticas (CAC), a qual é designada autoridade nacional para os mecanismos de flexibilidade do Protocolo de Quioto. Comete-lhe, em particular, promover acções em nome do estado Português no âmbito dos respectivos mecanismos de flexibilidade, traduzidos no comércio internacional de licenças de emissão, na implementação conjunta (IC) e no mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), a nível nacional, comunitário e internacional, tendo em vista o cumprimento dos compromissos decorrentes daquele Protocolo. Esta Comissão será pois uma agência financeira com amplas competências e que em princípio terá o FPC ao seu dispor.

O Decreto-Lei 71/2006 vem criar formalmente e regular o Fundo Português de Carbono (FPC) e fixa-lhe as seguintes linhas de acção: Obtenção de créditos de emissão de gases com efeito de estufa, a preços competitivos, através do investimento directo em mecanismos de flexibilidade do Protocolo de Quioto: Comércio de Licenças de Emissão, projectos de implementação conjunta e projectos de mecanismos de desenvolvimento limpo; Obtenção de créditos de emissão de gases com efeito de estufa através do investimento em fundos geridos por terceiros ou outros instrumentos do mercado de carbono; Apoio a projectos, em Portugal, que conduzam a uma redução de emissões de gases com efeito de estufa, nomeadamente nas áreas da eficiência energética, energias renováveis, sumidouros de carbono, captação e sequestro de CO2; Promoção da participação de entidades públicas e privadas nos mecanismos de flexibilidade do Protocolo de Quioto. Do OE de 2006 recebera já uma dotação inicial (simbólica) de M€ 6. O FPC será financiado: por meio da lei do Orçamento do Estado; pelo produto das taxas, contribuições ou impostos que lhe sejam afectos; por rendimentos provenientes de aplicações financeiras; pelo produto de doações, legados, alienação ou cedência temporária de bens ou direitos do seu património, e outras receitas que lhe sejam atribuídas por lei ou negócio jurídico.

O Decreto-Lei 104/2006 historia o processo de implementação de políticas, medidas e instrumentos a que o País se comprometeu com a adesão ao processo de Quioto, e vem actualizar o PNAC 2004, por reconhecer as suas insuficiências bem como as do PNALE I, na realização das metas de Quioto. O PNAC 2006 regista um alargamento do esforço de cumprimento do Protocolo de Quioto através de medidas domésticas nos sectores não abrangidos pelo CELE (grandes instalações), designadamente nos transportes e no sector residencial, destacando-se: a revisão do regulamento de gestão dos consumos de energia (melhorias de eficiência), uma revisão tributária orientada para redução ou substituição de consumos (imposto automóvel e carga fiscal sobre combustíveis em todos os sctores), um maior destaque às autoridades metropolitanas de transportes de Lisboa e Porto, as auto-estradas do mar (transferência de parte do tráfego rodoviário internacional para a via marítima). Por outro lado, preconiza um aumento do recurso aos mecanismos de flexibilização criados pelo Protocolo de Quioto.

Para este efeito, consagra a inscrição de uma dotação nas propostas de lei do Orçamento do Estado relativas aos anos de 2007 a 2012, para financiar o Fundo Português de Carbono (criado através do Decreto-Lei n.º 71/2006), em montante adequado para assegurar o investimento em mecanismos de flexibilidade do Protocolo de Quioto, mas sem prejuízo dos objectivos definidos no Programa de Estabilidade e Crescimento, num total superior a M€ 300. O balanço líquido de emissões previstas para 2010 atinge 84 MtCO2, acima da "quantidade atribuída" de 77Mt. A supressão deste défice é cometida em parte à redução de emissões atribuídas a instalações abrangidas pelo CELE (que assim deverão recorrer ao mercado do carbono ou introduzir medidas técnicas) e em parte ao recurso a mecanismos de flexibilidade de Quioto, nomeadamente aquisição de unidades de quantidade atribuídas a outras partes do Protocolo (comércio internacional de emissões), ou de unidades de redução de emissão ou reduções certificadas de emissão (disponibilizadas respectivamente através de projectos relativos aos mecanismos de implementação conjunta e de desenvolvimento limpo).

No cumprimento das metas de Quioto, o governo induz a substituição de combustíveis, quer por medidas de racionalidade quer por medidas oportunistas, quer no interesse comum quer no interesse de grandes operadores. O gás natural é favorecido face ao carvão na produção termoeléctrica, porque o custo de investimento é mais abaixo e permite uma amortização mais rápida, embora a utilização do gás seja aí menos nobre (em termos de eficiência energética global) que a sua utilização directa em instalações da industria transformadora ou no sector edificado e mesmo nos transportes rodoviários.

Também a pretexto das metas de Quioto, o governo acarinha a introdução de biocombustíveis, não em contexto rural e para o auto-provisionamento, mas sim no âmbito do grande negócio agro-industrial, assim ameaçando os melhores solos para culturas extensivas e irrigadas, no país e em países em desenvolvimento, por aí se candidatando a colher também os proveitos dos "mecanismos de desenvolvimento limpo".

A vertente financeira do PNAC vai acentuando-se progressivamente. Apoiando-se nas directivas Europeias, através do PNALE o governo distribuiu às grandes indústrias activos financeiros (sob a forma de licenças de emissão) em quantidades sobre-abundantes. A captação de receitas tributárias para o FPC alarga-se e intensifica-se. É conferida orientação prioritária para os mecanismos de flexibilização do Protocolo de Quioto e à CAC são conferidos natureza e centralidade financeira.

O sector energético adquire características essencialmente financeiras, centrando-se no controlo de empresas operadoras, com forte migração e mistura de capital de várias nacionalidades, e tecnologias subcontratadas quase inteiramente importadas. O país não tem parte activa na política energética, não há incorporação significativa de conhecimento e industrial nacionais, o povo é simplesmente relegado para a condição de contribuinte e consumidor. O Plano Tecnológico - se existe - certamente não passa por aqui.