Partido Comunista Portugu�s
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70º Aniversário da Revolta dos Marinheiros - Intervenção de José Casanova
Sexta, 08 Setembro 2006
josé casanovaNo 70º aniversário da Revolta dos Marinheiros, José Casanova falou dos «jovens marinheiros dos navios de guerra Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão, que ousaram enfrentar o regime fascista arriscando as suas vidas - e sabendo que as arriscavam; sabendo a força do inimigo contra o qual se batiam - e mesmo assim batendo-se; alguns deles, porventura, sabendo que iriam ser derrotados -  e, mesmo assim, lutando». O dirigente do PCP, e director do «Avante!», sublinhou ainda que «Nas circunstâncias em que ocorreu, a revolta não teve, nem poderia ter tido, êxito, e foi rapidamente sufocada e brutalmente reprimida. Doze marinheiros foram mortos no decorrer dos acontecimentos e 208 foram feitos prisioneiros. Destes, 82 foram condenados a penas de prisão que atingiram os 17, 19 e 20 anos; quatro foram para o Forte de Peniche, 44 para a Fortaleza de Angra do Heroísmo e 34 para o Tarrafal, fazendo parte da primeira leva de 152 presos que em 29 de Outubro inauguraram o Campo de Concentração, onde cinco marinheiros da revolta viriam a morrer – mais rigoroso será dizer: viriam a ser assassinados no Campo da Morte Lenta».

 

josé casanova

 

Estamos aqui a assinalar a passagem de mais um aniversário da Revolta dos Marinheiros. Com a exposição que, certamente, já tiveram oportunidade de ver, e com esta iniciativa. Fazemo-lo com enorme respeito e com grande admiração pelos jovens marinheiros dos navios de guerra Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão, que ousaram enfrentar o regime fascista arriscando as suas vidas - e sabendo que as arriscavam; sabendo a força do inimigo contra o qual se batiam - e mesmo assim batendo-se; alguns deles, porventura, sabendo que iriam ser derrotados -  e, mesmo assim, lutando.

A revolta ocorreu no dia 8 de Setembro de 1936 – faz hoje, precisamente setenta anos - num tempo em que o processo de fascização do Estado, dirigido por Salazar desde 1933, estava prestes a concretizar-se.

Para compreender as causas e o desfecho da Revolta dos Marinheiros, é indispensável ter presente a situação então vivida no mundo, no País e no Partido.

No plano internacional o fascismo avançava: Hitler, que tomara o poder em 1933, preparava a concretização do seu plano belicista e terrorista de domínio do mundo; Mussolini, no poder desde 1922 e aliado de Hitler desde a primeira hora, avançava na conquista da Abissínia; acentuavam-se e cresciam de dia para dia as movimentações contra o Governo de Frente Popular, em Espanha – o qual, juntamente com o Governo igualmente de Frente Popular, em França, constituíam sinais positivos e indiciadores da possibilidade de fazer frente, com êxito, ao fascismo..

A situação em Portugal, e a evolução nela verificada desde a mascarada que, em 19 de Março de 1933, fizera aprovar – com 99,5%  - a «Constituição Política da República», traduzia-se na instalação estudada, programada e sistematicamente executada do regime fascista – num processo cuja relembrança se impõe para percebermos a acção dos marinheiros que hoje aqui homenageamos.

Recordemos alguns dos passos dados por Salazar no caminho da implantação do regime fascista.

Em Agosto de 1933, Salazar cria a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – mais tarde PIDE, mais tarde DGS) que, integrada no Ministério do Interior era directamente controlada pelo próprio Salazar.

No mês seguinte, é publicado o Estatuto do Trabalho Nacional que, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, decretava a ilegalização dos sindicatos livres e a proibição das suas formas de luta.

Ainda no mês de Setembro, por iniciativa e com supervisão directa de Salazar, é criado o Secretariado da Propaganda Nacional, com o objectivo expresso de «reeducar o povo português de acordo com os princípios da Revolução Nacional». (meses antes havia sido lançada uma edição de 125 mil exemplares do livro «Salazar, o Homem e a Obra», constituído por uma série de entrevistas de António Ferro a Salazar e que viria a ser publicado na Alemanha, na Grã-Bretanha e na Itália, a expensas do governo fascista português).

Por essa altura o Partido Socialista decide a sua autodissolução.

Em Novembro, ainda de 1933, é criado o Tribunal Militar Especial, tendo como objectivo julgar «crimes contra a segurança do Estado». E, nesse mesmo mês, o Papa Pio XI institucionaliza a Acção Católica Portuguesa, numa afirmação de identificação e concordância explícitas da Igreja com o chamado Estado Novo.

O ano de 1934 inicia-se com a primeira grande movimentação da classe operária contra o regime fascista: em resposta à entrada em vigor do Estatuto do Trabalho Nacional, desenvolve-se, em 18 de Janeiro, uma greve de características insurreccionais, organizada pela CGT e pelo PCP que atingiu expressão relevante no Barreiro, no Seixal, em Silves e, sobretudo, na Marinha Grande, onde a acção insurreccional, encabeçada por militantes comunistas (nomeadamente José Gregório e António Guerra) assume proporções significativas e é violentamente reprimida.

Em Maio desse ano, realiza-se o primeiro congresso do partido único fascista, a União Nacional.

Em Julho, Salazar resolve as dissidências internas existentes: ilegaliza o «Movimento Nacional Sindicalista», prendendo e mandando para o exílio os seus principais dirigentes, tão fascistas como Salazar mas em conflito com ele.

Em Agosto, é criado o Conselho Corporativo, órgão superior da organização corporativa nacional, que é presidido por Salazar.

Em Dezembro realizam-se as primeiras «eleições» legislativas após o golpe militar de 28 de Maio. A União Nacional é o único partido a concorrer e, naturalmente, elege a totalidade dos deputados.

Durante todo o ano de 1934 a Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas desenvolve intensa actividade.

Em 1935, Salazar cria a FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho) – sob inspiração de organizações congéneres criadas por Mussolini e por Hitler – e cujo objectivo, para além das actividades de diversão, é «preparar política e ideologicamente os trabalhadores».

Em 10 de Setembro é derrotada uma tentativa de golpe de estado militar contra a ditadura.

Realiza-se, em Moscovo, o VII Congresso da Internacional Comunista que define como «objectivo central do movimento comunista e de todas as forças democráticas a luta contra o fascismo e a ameaça que fazia pesar sobre o mundo». 

Em 11 de Novembro o PCP sofre um rude golpe: o Secretariado do Partido – o seu único órgão central de direcção – cai nas garras da polícia política. Entre os presos encontra-se Bento Gonçalves, Secretário-geral do Partido, chegado no dia anterior de Moscovo onde, à frente de uma delegação do Partido, tinha participado no VII Congresso da IC. Cinco meses depois é criado um novo Secretariado.

E chegamos ao ano de 1936, ano da Revolta dos Marinheiros, razão da nossa presença nesta iniciativa.

Em 23 de Abril, o governo fascista cria o Campo de Concentração do Tarrafal.

Nesse mesmo mês, tem início um processo dito de «regeneração do sistema educativo português» que se prolongará até ao final do ano e no decorrer do qual são criadas a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina.

Em Maio, Salazar assume, em acumulação, o  Ministério da Guerra.

Em Julho, é definido o regime jurídico dos «Organismos de Coordenação Económica», assegurando o controlo da evolução da economia nacional, primeiro grande passo para a implementação do capitalismo monopolista de Estado na sua versão fascista.

Em 18 de Julho, em Espanha, um levantamento militar encabeçado por Franco dá início à guerra civil que, com o apoio dos governos fascistas da Itália, Alemanha e Portugal – e por efeito da traição das democracias ocidentais, nomeadamente do governo francês presidido pelo socialista Léon Blum - viria a conduzir à implantação também de um regime fascista.

Em 28 de Agosto a União Nacional organiza – na Praça de Touros do Campo Pequeno - o primeiro de uma série de comícios por todas as capitais de distrito, onde é reclamada a criação de uma «milícia nacionalista e anticomunista». Um mês depois é criada a Legião Portuguesa.

Em 8 de Setembro ocorre a Revolta dos Marinheiros.

Em 14 de Setembro, o governo de Salazar impõe aos funcionários públicos «a aceitação dos princípios da ditadura fascista, a rejeição dos ideais comunistas e o dever de denunciar todos os que professem doutrinas subversivas».

Em 23 de Setembro, Salazar suspende as relações diplomáticas com o governo republicano de Espanha e faz apoiar esta decisão por uma manifestação nacional, no Terreiro de Paço, organizada pela União Nacional, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Portuguesa Feminina, a FNAT, os Sindicatos Nacionais, as Casas do Povo.

Foi longa – e, mesmo assim, incompletíssima - a enunciação das medidas que consumaram a fascização do Estado português, medidas de carácter político, económico, social, ideológico, complementadas com a criação de um poderoso aparelho repressivo que tinha como alvo principal o PCP.

Era essa a situação no País ao tempo da Revolta dos Marinheiros, dirigida pela Organização Revolucionária da Armada (ORA).

A ORA, que agrupava as diversas células comunistas da Armada, fora criada em 1932 – um ano depois do nascimento do Avante! e, tal como o órgão central do PCP, na decorrência da reorganização de 1929. Implantou-se rapidamente na Armada, particularmente entre os marinheiros. Com efeito, através de uma intervenção intensa – em que conjugava a luta pela defesa dos interesses sócio-profissionais dos marinheiros com um amplo trabalho de esclarecimento político e ideológico sobre a natureza do fascismo e a necessidade de o combater - a ORA cedo ganhou uma ampla e forte influência na Armada. Álvaro Cunhal, numa intervenção proferida em Almada, em 1998, em «homenagem aos marinheiros tarrafalistas», diz que «no (navio) Afonso de Albuquerque a influência (da ORA) era tal que se lia e comentava colectivamente com a tripulação o jornal clandestino ‘O Marinheiro Vermelho’, ‘órgão das células do PCP na marinha de guerra’, que se editava há anos» e do qual chegaram a ser distribuídos 1500 exemplares. No plano partidário, a ORA era a mais forte organização contando com 20 por cento do total dos militantes do Partido, na altura.

Esta intensa actividade antifascista preocupava o governo de Salazar, que leva por diante um conjunto de medidas visando desarticular e liquidar a Organização Revolucionária da Armada: transferências de marinheiros, expulsões da Armada, prisões de dezenas de marinheiros, entre eles toda a direcção da ORA. A noção dos perigos desta ofensiva, aliada à convicção profunda da possibilidade de «aplicação de um golpe ao fascismo» e uma multiplicidade de outros factores, alimentaram e fortaleceram, nos jovens marinheiros comunistas, a ideia de avançar para uma «acção militar».

A direcção do Partido, em contactos com os camaradas da ORA, procurou dissuadi-los. Sobre um desses contactos, fala-nos o camarada Álvaro Cunhal, na intervenção atrás referida: «Os camaradas da ORA, confirmando o que haviam tratado com outros camaradas da Direcção do Partido expuseram a situação. No movimento democrático fervilhavam, por influência das vitórias antifascistas em França e na Espanha, ideias de um golpe armado para derrubar o fascismo. Os camaradas consideravam estar em condições de desempenhar em tal caso importantíssimo papel tomando conta do Afonso de Albuquerque e de outros navios de guerra. Viam por isso com impaciência estar o governo a tomar medidas que ameaçavam seriamente a ORA, Encaravam mesmo a possibilidade de, na parada da Marinha de Guerra que costumava realizar-se em Cascais e à qual Salazar e membros do governo assistiam a bordo do Afonso de Albuquerque, tomarem conta do navio e prenderem Salazar, os ministros e acompanhantes». Álvaro Cunhal, que sublinha a firme determinação dos camaradas de levarem por diante esses objectivos, alerta para que «tal operação inserida numa revolta de outras unidades militares poderia ser determinante. Mas, sendo isolada, apresentava-se cheia de justificadas dúvidas».

Mesmo assim, os jovens marinheiros comunistas decidiram avançar. Não para a operação que a propaganda fascista divulgou de levar os barcos a juntar-se às forças armadas da República Espanhola contra os fascistas. Mas para uma acção cujo objectivo era «levar os navios para o mar e dar um ultimato ao governo com objectivos referentes à defesa dos seus direitos e ao termo das perseguições e prisões. Caso o ultimato não fosse atendido, aparecera a ideia de irem a Angra do Heroísmo, libertarem os presos que se encontravam na fortaleza entre os quais Bento Gonçalves) e rumarem para um porto onde pudessem ser acolhidos».

Os acontecimentos confirmaram a justeza da apreciação, da análise e das advertências da Direcção do Partido. Da mesma forma que confirmaram a impaciência e o voluntarismo dos jovens marinheiros antifascistas.

Contudo nenhuma destas confirmações apaga ou obscurece a determinação, a coragem, a entrega total dos revoltosos à luta contra a opressão e o terror fascistas. Nada apaga ou obscurece a sua disponibilidade para darem as suas vidas na luta pela mais bela de todas as causas: a causa da liberdade. da justiça, da fraternidade, da solidariedade, da libertação de todas as formas de opressão e de exploração.

Nas circunstâncias em que ocorreu, a revolta não teve, nem poderia ter tido, êxito, e foi rapidamente sufocada e brutalmente reprimida. Doze marinheiros foram mortos no decorrer dos acontecimentos e 208 foram feitos prisioneiros. Destes, 82 foram condenados a penas de prisão que atingiram os 17, 19 e 20 anos; quatro foram para o Forte de Peniche, 44 para a Fortaleza de Angra do Heroísmo e 34 para o Tarrafal, fazendo parte da primeira leva de 152 presos que em 29 de Outubro inauguraram o Campo de Concentração, onde cinco marinheiros da revolta viriam a morrer – mais rigoroso será dizer: viriam a ser assassinados no Campo da Morte Lenta.

É compreensível a atitude da Direcção do Partido, sublinhando as consequências prováveis (pode dizer-se: inevitáveis) da acção revolucionária propugnada pelos jovens marinheiros comunistas, enquanto acção isolada, desinserida da luta de massas e confrontada com um inimigo poderoso e tremendamente repressivo. Tão compreensível como a imediata solidariedade do Partido para com os jovens marinheiros derrotados e vítimas da mais brutal repressão.

Da mesma forma, é compreensível a impaciência dos jovens marinheiros comunistas que sentiam o fascismo a avançar e que se sentiam eles próprios, e a sua organização, alvos de particular perseguição fascista – porque eram uma organização de comunistas e porque eram uma organização existente no seio da Armada portuguesa.

O resultado foi o que foi. No entanto, não foi em vão a acção dos marinheiros de 1936. Ela mostrou que, ao contrário do que proclamava o então presidente do Conselho, havia quem resistisse ao fascismo; que, ao contrário do que proclamava o então ministro da Guerra, a resistência antifascista se fazia no interior das próprias forças armadas, assumindo, mesmo, um carácter insurreccional; que uma derrota só o é totalmente se não sabemos tirar dela os ensinamentos adequados. Ela confirmou, ainda, muitos ensinamentos históricos: que, numa luta com os objectivos ambiciosos da que travamos, as derrotas são inevitáveis e que a derrota seria baixar os braços e desistir de lutar; que, em todos os momentos e situações – e seja qual for o resultado de uma determinada luta – como escreveu um grande poeta brasileiro: «muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás».

Como não foram em vão muitas outras acções com objectivos semelhantes e com destinos semelhantes ao longo da história.

Sobre esta matéria e a propósito da Comuna de Paris, escreveu Marx: «A história mundial seria muito fácil de fazer se a luta fosse empreendida apenas sob a condição de possibilidades infalivelmente favoráveis». E o mesmo Marx – que considerou a acção revolucionária dos operários de Paris prematura e desencadeada numa situação extremamente desfavorável – logo que a «revolução proletária rebentou apoiou-a com todo o ardor revolucionário».

Também na luta que hoje travamos contra a política de direita e por uma política que sirva os interesses dos trabalhadores, do povo e do País, essa questão nos é colocada todos os dias. Se nos limitássemos a ir por diante apenas com as lutas previsivelmente vitoriosas, condenar-nos-íamos a não ganhar nenhuma luta. Porque, se é verdade que muitas das lutas que travamos não se traduzem em vitórias, não é menos verdade que sem a luta nenhuma vitória seria alcançada. E neste saldo de êxitos e inêxitos na nossa luta é bom termos presentes as palavras do camarada Jerónimo de Sousa em entrevista ao Militante: « As derrotas não nos desanimam. As vitórias não nos descansam». Que o mesmo é dizer: a luta continua.

A Revolta dos Marinheiros constituiu um acto de resistência ao fascismo que ficará impressivamente assinalado na história da luta do povo português e dos comunistas portugueses contra o regime brutal que durante quase meio século mergulhou o nosso País na opressão e no terror. O exemplo de coragem e de dignidade dos valentes marinheiros da ORA – de que hoje temos a alegria de ter aqui connosco os camaradas José Barata e Joaquim Teixeira, militantes comunistas, marinheiros da revolta e tarrafalistas – o exemplo de coragem dos valentes marinheiros da ORA, permanece para nós, comunistas de hoje, como uma referência maior para a luta que continuamos e que as gerações que nos sucederem continuarão. Até à vitória final.