Intervenção de

Distribuição, fora das farmácias, de medicamentos que não necessitem de receita médica<br />Intervenção de Bernardino Soares

Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo, Não começarei esta intervenção por dizer o que esta proposta de lei é, mas, antes, por referir o que ela não é. E, antes de mais, esta proposta de lei não é uma resposta aos principais problemas da política de saúde do País. Na verdade, esta proposta de lei não responde a qualquer dos principais problemas da política de saúde nacional, apesar de ter sido a primeira medida anunciada pelo Primeiro-Ministro nesta área. Não responde, por exemplo, ao problema do acesso às cirurgias ou às consultas, não responde ao problema da falta de profissionais, não responde ao problema do aumento do custo de saúde, seja pela via das taxas moderadoras, dos medicamentos ou do recurso a consultas privadas, e não responde ao problema da desastrosa gestão economicista que vigorou nas nossas unidades de saúde durante os últimos três anos. Esta proposta não responde, portanto, a nenhum dos principais problemas da política de saúde. Contudo, se pensarmos na política do medicamento, temos de concluir que esta proposta também não responde a qualquer dos seus principais problemas. Não é uma resposta correctora do sistema do preço de referência, que tanto prejuízo tem causado a muitos utentes que vêem aumentar o preço dos medicamentos que consomem por decisão do médico, em consequência da aplicação de um regime estabelecido pelo governo anterior. Não é uma resposta que melhore as comparticipações relativas a certas doenças crónicas, que continuam a ser insuficientemente apoiadas, sobretudo tendo em conta as necessidades que os utentes têm a nível de medicamentos. Não é, por outro lado, uma proposta de dinamização das farmácias públicas nos hospitais e nos centros de saúde, factor que pensamos ser essencial para uma correcta política do medicamento no nosso país. Esta proposta não é, portanto, nada disto. Uma terceira coisa que esta proposta não é, ao contrário do que foi anunciado pelo Governo, é uma forma de enfrentar os lobbies. Esta não é uma proposta que enfrente os lobbies! Podemos dizer, como faz o Governo, que se propõe agora uma lei que enfrenta um determinado lobby, mas fá-lo, ao mesmo tempo, dando a um outro não menos poderoso lobby uma fatia de um mercado há muito cobiçado pelos grupos económicos dessa área. O Sr. Ministro sabe perfeitamente que uma velha aspiração das grandes superfícies sempre foi a de poderem comercializar medicamentos de venda livre, desejo que vêem agora concretizado por este Governo, sendo de salientar que já no final do governo anterior tinham visto concretizada uma outra antiga aspiração, a de poderem vender combustíveis. Este lobby das grandes superfícies tem ganho, portanto, em todos os «carrinhos», ou, melhor, em todos os governos! Há, depois, alguns problemas que em muitas intervenções são apontados como sendo o objectivo desta proposta e que, julgo, não ficam resolvidos. Há, por exemplo, a questão da acessibilidade, muitas vezes debatida. Os mais graves problemas de acessibilidade verificam-se nas localidades em que não há farmácias ou postos de farmácia e em que não há candidaturas ou sequer concursos para a atribuição de novos alvarás de farmácia. Estes problemas, verificados em zonas isoladas e em zonas bem próximas de grandes centros urbanos mas com poucas acessibilidades em termos de transporte, vão ser resolvidos por esta proposta? Não, não vão! Digo-o porque sabemos que, ou as regras são muito flexíveis e não garantem a segurança e a correcção da dispensa de medicamentos, que passam a poder ser vendidos em muitos sítios, ou as regras — como desejamos — são rigorosas e exigentes e, então, estes medicamentos apenas podem ser vendidos nas grandes superfícies. Ora, as grandes superfícies existem em sítios onde há uma boa rede de farmácias e não em sítios onde a rede de farmácias é carenciada. Estes últimos correspondem, em geral, a locais mais isolados e com menor população e aí, o Sr. Ministro certamente concordará, não há grandes superfícies, porque não há nisso interesse comercial. Depois, esta proposta também não resolve o problema dos horários. Podemos dizer que entre as 22 e as 24 horas, horário em que as grandes superfícies ainda estão abertas e em que já se paga a taxa de urgência nas farmácias, pode haver uma vantagem residual, visto que os utentes irão ao supermercado e não à farmácia, não pagando, assim, o valor de 1,5 € relativo à taxa de urgência. Temos de convir, contudo, que esta não é uma vantagem de tal modo significativa que justifique esta alteração legislativa. Há, depois, o problema do preço. O Governo anuncia, como os governos anunciam sempre de cada vez que preparam alguma medida no sentido da liberalização do mercado, baixas de preços. Bom, mas já vimos que nos combustíveis não foi assim, que na electricidade não foi assim e que em muitas outras matérias também não foi assim. Julgo que o Governo não está em condições de garantir hoje, aqui e agora, absolutamente, que vai haver baixas de preços. Diz o Sr. Ministro que a margem se obtém pela compra de muitos produtos e que as ofertas que muitas indústrias farmacêuticas fazem às farmácias vão passar a reverter para os utentes quando estes medicamentos puderem ser vendidos noutras unidades comerciais que não as farmácias. Mas isso está por provar, Sr. Ministro, porque também sabemos que as grandes superfícies cartelizam muitos preços em produtos fundamentais, pelo que nada nos garante que isso não vá acontecer nos medicamentos. Ora, nem o Sr. Ministro nem qualquer outro ministro de qualquer governo está em condições de garantir que isso não venha a acontecer no caso dos medicamentos tal como acontece em relação a outros produtos. Além disso, esta proposta de lei tem um problema, porque não esclarece o que é que significará em termos de aumento do consumo por aumento da oferta. Diz-se, em termos de saúde — o Sr. Ministro já o disse muitas vezes —, que o aumento da oferta induz o aumento da procura. Não creio que esta regra se aplique a esta situação em concreto, portanto julgo que o Sr. Ministro não está em condições de garantir que este aumento da oferta não se traduzirá num aumento da procura. Dirá o Sr. Ministro: «Bom, mas a procura será a que for necessária para os utentes, para os consumidores ». Mas será assim, quando vamos ter, com certeza, uma estratégia comercial agressiva para a venda destes produtos? Uma estratégia comercial que quer vender, legitimamente (é esse o seu objectivo), e que procurará induzir a compra de determinados produtos?! Não vou ao extremo de afirmar, Sr. Ministro, que vamos passar a ter, na banca dos chouriços e dos queijos da serra comprimidos para o colesterol. Mas certamente que as técnicas do marketing e das vendas comerciais encontrarão as formas adequadas para vender mais medicamentos de forma a que haja um aumento da procura e do consumo nesta matéria. Por conseguinte, Sr. Ministro, sabemos que não há — até agora o Governo não apresentou — estudo algum que garanta que não vai haver efeito negativo na saúde pública resultante deste aumento de disponibilização e consumo de medicamentos. O próprio Sr. Ministro reconheceu na sua intervenção que as regras para a dispensa de medicamentos são diferentes das que existem para as farmácias. Trata-se da questão, que já foi posta pelo PSD, de poderem ser vendidos medicamentos por farmacêuticos, técnicos de farmácia ou sob sua supervisão. Ora, isto faz toda a diferença! Isto quer dizer que não vão existir as mesmas condições que existem nas farmácias, o que consideramos negativo. Esta situação não está isenta de riscos. Diz o Sr. Ministro que a situação actual também não está isenta de riscos. É verdade! É rigorosamente verdade! Mas pergunto: então, se estamos perante uma situação que não está isenta de riscos, que vantagem temos em aumentar esses riscos, alargando-a a outras situações? Esta é a pergunta que ficou por responder! Não valeria mais a pena procurar diminuir os riscos que hoje existem em vez de os alargar a outras áreas? Depois, há uma questão que resiste: o Sr. Ministro e o Governo poderão dizer-nos que se sentia no País a necessidade desta medida, que esta era uma reivindicação das populações, que era um desígnio indispensável para alterar um problema grave neste sector, mas julgo que não! Termino, Sr. Ministro, dizendo que não rejeitamos a medida em abstracto. Não temos qualquer preconceito que nos leve a dizer que só se podem vender medicamentos nas farmácias. Penso que esse não deve ser um princípio basilar. Admitimos, evidentemente, outras opções e, por isso, admitimos também esta opção. Mas era preciso que, não sendo necessária, não sendo exigível de imediato, fosse apresentada com muito maior sustentação, ou seja, que não fosse apresentada baseada numa suposta defesa do consumidor quando se trata, afinal, de um alargamento do mercado, de uma transferência de mercado, em que não está ainda assegurada, na nossa opinião, a questão da saúde pública nem os riscos, que, de facto, aumentam com esta nova medida. Serei breve, Sr. Presidente. Sr. Secretário de Estado da Saúde, Sabe perfeitamente que não podemos aceitar que diga que o PCP não está preocupado com a despesa das famílias com medicamentos. Não se trata disso! Aliás, sabe também perfeitamente que fomos nós que propusemos nesta Casa— aliás, na altura, com o apoio do Partido Socialista, que votou a favor — a introdução de uma cláusula que permitisse que os utentes não fossem prejudicados com o sistema de «preço de referência», que foi lançado pelo governo de direita de então. Espero que o Partido Socialista se mantenha coerente com esta posição que então assumiu! Mas, o que o Sr. Secretário de Estado tinha de provar — e foi isso que desafiei o Governo a fazer, mas o Governo não o fez! — era como é que o Governo garante que esta nova medida vai fazer baixar os preços. Julgo que ninguém está em condições de garantir isso. O que quis salientar foi que o Governo anuncia uma baixa de preços que não está em condições de garantir, porque não é possível dar este tipo de garantias, pois isso dependerá do funcionamento do mercado neste sector. É, pois, isso que quero salientar, não aceitando a afirmação que o Sr. Secretário de Estado fez, que sabe não corresponder à verdade!

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