Artigo de Vitor Dias

«Desconfiança total»

Não, não vimos falar dos sete meses de demora na entrega do relatório de autópsia de Hugo Paulino de que se queixa o seu pai.

Não, não vimos falar da inesquecível declaração de autoridades militares portuguesas de que têm "confiança total" na NATO.

Não, não vimos falar de todos quantos, como o Governo, têm responsabilidades públicas e oficiais no esclarecimento da questão dos riscos que o urânio empobrecido representa para os soldados portugueses no Kosovo e que, entretanto, devem julgar que não temos acesso a tudo quanto de devastador, detalhado e inquietante se está escrevendo e publicando na Itália ou em Espanha sobre o problema. E que inclui não poucas queixas de militares quanto à sonegação de informação por parte dos norte-americanos e não poucas confissões de ministros que acabam por pôr em evidência que no "sistema NATO" eles são um verbo de encher que não sabe da missa a metade

Não, hoje vimos sim falar da imperiosa, prioritária e crucial necessidade de proteger a saúde e a vida dos militares portugueses que nunca deviam ter ido para o Kosovo e donde, por justa decisão política, deviam regressar urgentemente, como o PCP reclamou explicitamente na última Festa do "Avante!".

Mas, por causa dos cínicos e dos falsos distraídos, vimos sobretudo lembrar que as bombas com urânio empobrecido foram usadas na Guerra do Golfo, na Bósnia em 94-95 e só depois no Kosovo, com efeitos de há muito conhecidos sendo de recordar que até no "Expresso" de 6.3.99, numa reportagem sobre o Iraque, uma foto dramática tinha como legenda que "o urânio e o plutónio das bombas fizeram aumentar três a quatro vezes o número de crianças com leucemia e nascidas com malformações".

Vimos sobretudo lembrar que seria de um egoísmo a toda a prova se, justa e compreensivelmente preocupados com os nossos compatriotas, nos esquecêssemos das populações civis vítimas em larga e maior escala das contaminações mas, ao que parece, sem direito a grandes destaques noticiosos. Talvez porque a NATO entenda que ter escapado à morte directamente causada pelos bombardeamentos não dá a ninguém o direito de se julgar livre de morrer por efeito indirecto dessas bombas.

E, por fim, vimos lembrar que, por detrás do caso das consequências do "urânio empobrecido", o que espreita são sobretudo as cumplicidades de uma política externa mimeticamente seguida quer pelo PSD quer pelo PS e das quais a honra e a dignidade nacionais saem muito mais do que empobrecidas.

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