Intervenção de

Debate sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez<br />Intervenção de Bernardino Soares

Senhor Presidente, Senhores Deputados, No debate que fazemos hoje há uma realidade concreta e três posições perante ela. A realidade é a do aborto clandestino, da violência sobre as mulheres que ele constitui, do grave problema de saúde pública que provoca, das investigações, inquirições, humilhações, julgamentos e condenações que se repetiram nos últimos anos. É a realidade de uma lei que não tem qualquer papel na prevenção do recurso ao aborto, antes sendo uma norma desligada da realidade e que consagra determinadas concepções em relação à questão, reservando para as restantes a penalização. Temos depois três posições face a esta realidade incontornável.A da direita que se opõe à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, a dos que defendem o caminho de um referendo sobre a matéria e a dos que, como o PCP, entendem dever a Assembleia da República assumir as suas competências legislativas e promover de imediato a despenalização.A direita, fingindo comiseração com a situação das mulheres, continua a querer que elas continuem a ser sujeitas à penalização. Antes escudavam-se na inexistência de julgamentos e condenações; agora continuam a ignorar de forma insensível o drama de tantas mulheres. Na verdade a direita que defende a manutenção desta lei não está preocupada com o recurso ao aborto. Apenas se preocupa em combater a alteração da lei, mesmo que isso signifique não reduzir em nenhuma medida, muito pelo contrário, o recurso ao aborto, mantendo-o na clandestinidade confortável para as suas consciências e hipocrisias, mas persecutória e criminosa para com as mulheres portuguesas.Esta é a direita que, estando em maioria na última legislatura, impediu qualquer alteração na situação da interrupção voluntária da gravidez, então subordinada aos interesses partidários estabelecidos no conhecido acordo pós eleitoral entre PSD e CDS-PP, sendo certo que quanto ao PSD, como demonstrámos no debate de Março de 2004, não havia nenhum compromisso eleitoral que justificasse este bloqueio.Claro que sempre que se fala de despenalização da interrupção voluntária da gravidez, a direita retoma o discurso pouco sincero da necessidade da educação sexual e do planeamento familiar, para logo o esquecer no dia seguinte, como aliás fez com a resolução que aprovou em Março de 2004, com que pretendeu disfarçar a sua posição contrária a qualquer alteração de fundo na legislação.Alguns defendem agora que a lei actual serve perfeitamente. A realidade está aí para o desmentir e nenhuma similitude formal com a lei espanhola ou outra pode servir para esconder que a prática da aplicação da lei faz com que a despenalização seja indispensável para pôr fim ao tratamento das mulheres como criminosas.Aliás manda a verdade que se relembre que o PCP, no momento certamente histórico da aprovação da primeira lei de despenalização, logo alertou para a sua insuficiência dizendo na sua declaração de voto “Quanto ao diploma que torna lícita a interrupção voluntária da gravidez (legalizando-a em certos casos e condições), está muito longe de ser a solução adequada para dar resposta à dramática situação vivida pelas mulheres portuguesas. De todos os sistemas consagrados nas diversas legislações, este é o mais restritivo. De todas as situações em que o aborto deve encontrar justificação legal, esta lei só contempla um reduzido número de situações especiais e continua a considerar crime a interrupção voluntária da gravidez por razões sociais, económicas e pessoais:”A vida veio provar que tínhamos razão.Senhor Presidente, Senhores Deputados,Existe hoje nesta câmara uma maioria de partidos e de deputados claramente favorável à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Essa é uma realidade inequívoca saída das últimas eleições legislativasPor isso consideramos errada uma solução, como a que propõem o PS e o Bloco de Esquerda, de recurso ao referendo. Ela significa continuara a dar à direita o poder de bloquear os indispensáveis avanços nesta matéria, mesmo agora que está finalmente em minoria. Não pomos em dúvida que partidos, PS e BE, que agora propõem o referendo, têm uma opção de defesa da despenalização da IVG. Mas esta opção pelo referendo responsabiliza-os pelo que acontecer no futuro nesta matéria.Há hoje condições políticas para resolver este problema como nunca houve ao nível dos vários órgãos intervenientes e que não sabemos se se manterão no futuro. Desperdiçá-las agora é comprometer o futuro.Nem se diga que terá de se realizar um referendo por ter havido um outro. A justificação apresentada pelo PS de que o faz por “escrúpulo democrático” não colhe. Aliás andou bem longe o escrúpulo democrático quando em 1998 o PS, após a aprovação na generalidade na Assembleia da República de um projecto de despenalização, cedeu às pretensões da direita, aceitando convocar um referendo, o que se traduziu numa desautorização e menorização do parlamento e das suas competências, que agora se pretende repetir.Aceitar a indispensabilidade de um novo referendo significa adoptar a errada concepção de que com a realização de um referendo, mesmo sem resultado vinculativo, a Assembleia se auto limita definitivamente em relação à sua competência para legislar sobre a matéria. Isto não é aceitável nem em matéria de despenalização da IVG, nem em qualquer outra. Sempre o afirmámos e aliás não estivemos sós. O próprio BE afirmava no preâmbulo do seu projecto de despenalização na VIII legislatura “… a Assembleia da República tem toda a legitimidade para legislar porque o referendo não teve consequência legal, e mesmo que o tivesse o início de uma nova legislatura atribui-lhe toda a competência.”.Pela nossa parte respeitamos todos os que genuinamente defenderam a via do referendo, convencidos de que era o caminho possível para a despenalização. Sabemos que muitos acreditaram que a apresentação de uma iniciativa popular de referendo teria a capacidade de obrigar a maioria de direita à sua convocação, o que na verdade não acontecia, podendo a direita chumbar o projecto de referendo da mesma forma que as iniciativas de despenalização, como de resto veio a acontecer. Na prática esse caminho, como na altura afirmámos, traduziu-se num descomprometimento político com a aprovação imediata da despenalização assim que houvesse maioria parlamentar para tal, como aliás o debate de hoje comprova.A situação é hoje tanto mais grave quanto é incerto se e quando haverá referendo, para além do seu resultado concreto. Os últimos desenvolvimentos nesta matéria demonstram bem como esta opção significa um adiamento da resolução do problema não se sabe para quando e em que condições. Aparentemente em Julho não estarão reunidas as condições consideradas necessárias pelo Presidente da República. Impensável seria a solução, que vai pairando por aí, de realizar um eventual referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez em simultâneo com outro referendo e com as eleições autárquicas. Daí para a frente tudo é incerto, até tendo em conta a aproximação de eleições presidenciais.Este debate será desta forma uma oportunidade perdida. Certamente para alguns passará a ser possível dizer que a questão foi colocada em discussão; que fizeram o que tinham de fazer. Mas a verdade é que as opções que hoje aqui se tomarem responsabilizarão quem as tomar pelas suas consequências.Pela nossa parte continuamos coerentemente a manter a nossa posição. A Assembleia da República tem toda a legitimidade para despenalizar a interrupção voluntária da gravidez, existindo hoje uma maioria política favorável a essa posição. Em Março de 2004, com o agendamento potestativo do projecto do PCP, realizou-se um debate que foi importante para confrontar a direita com a sua própria hipocrisia, para reafirmar a competência do Parlamento para proceder à despenalização da IVG, visível no facto de, tal como hoje, se votarem primeiro os projectos de despenalização e só depois os de referendo e para procurar a máxima convergência das forças que defendem a despenalização com vista a abrir caminho a uma solução para esta questão assim que elas tivessem a maioria na Assembleia da República.Era isso que na nossa opinião devia estar hoje a acontecer.Apoiaremos todas as iniciativas de despenalização apresentadas, independentemente desta ou daquela discordância em relação a aspectos do seu conteúdo e de não termos nalguns casos reciprocidade de voto favorável. Desta forma demonstramos a nossa inequívoca vontade em contribuir para uma solução de despenalização da IVG como prioridade da acção desta Assembleia da República.Mas não podemos apoiar a via referendária que adia mais uma vez a resolução do problema.Se houver referendo lá estaremos, como no anterior, na primeira linha do combate pela despenalização. Mas perante o drama de milhares de mulheres preferimos inequivocamente o cedo ao tarde e o certo ao incerto.

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