Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP
na apresentação pública dos candidatos da CDU pelo círculo eleitoral de Évora
Évora, 4 de Janeiro de 2005

(Extracto)


A quadra festiva foi sacudida pela imensa tragédia resultante do maremoto no sudoeste asiático que ceifou milhares de vidas e deixou literalmente sem nada milhões de seres humanos. Por todo o mundo surgiram verdadeiros sentimentos de dor e solidariedade que acompanhamos. Mas é também um momento de reflexão perguntando como é possível que, devido aos fantásticos avanços cientifico-técnicos, se desbloqueiam, em poucas horas, formidáveis arsenais de guerra e se deslocam dezenas de milhares de homens para matar outros seres humanos em qualquer parte do planeta, e não haja essa vontade para salvar populações atingidas pela catástrofe e em que, apesar dos lucros gigantescos, o capital financeiro discuta primeiro o montante dos juros a cobrar e as contrapartidas a ganhar com a desgraça. Também aqui se está a revelar a face da globalização capitalista. A grandeza da catástrofe secundarizou as questões da actualidade nacional, os problemas e a grave situação económica e social do país que, salvo uma minoria de privilegiados e beneficiários do sistema e da própria crise, atinge praticamente todas as esferas da vida nacional.

No momento em que se aproxima uma grande oportunidade para interromper a política repetida, gasta e falida, com causas fundas e já detectadas, com responsáveis que, rodando entre si, mudam sempre alguma coisa para manter o essencial do mesmo que foi feito pelos governantes anteriores, o Presidente da República resolveu ser mensageiro da sua disponibilidade para ajudar à obtenção do entendimento das “principais forças políticas” para um “pacto de regime” em torno das finanças públicas, do financiamento das Autarquias e Regiões Autónomas, da gestão da saúde e da sustentabilidade da segurança social.

Não fosse os portugueses não terem lido a doutrinação da coisa, feita há meses pelos promotores do conclave do Convento do Beato e de alguma comunicação social pertencente a grandes grupos económicos, o PSD e o PS, que detêm a parte de leão das responsabilidades desta grave situação, logo vieram a correr dizer “que sim, senhor! Ora aí está uma óptima ideia!”.

Os portugueses sentiram bem na sua vida, nos seus direitos, no seu emprego, nos seus salários o que significaram os apelos à austeridade, aos sacrifícios e, em geral, tudo quanto se tem escondido debaixo do discurso da “contenção orçamental” e do “saneamento das finanças públicas” – expressões que são recorrentemente usadas por todos cujo grande projecto é o aperto do cinto para a população e a limitação dos direitos sociais e que se continuam a recusar a entender que o mais grave problema estrutural do país não é o problema orçamental mas a falta de crescimento e desenvolvimento económico e que, dentro das questões orçamentais, o problema não é fundamentalmente a despesa mas a falta de receitas que pode e deve ser atacada pelo combate à evasão e à fraude fiscais.

O regime democrático sentiu o que foram “pactos de regime” durante as sucessivas revisões constitucionais que conduziram às privatizações, à liquidação da reforma agrária, ao assalto aos serviços públicos e às funções sociais do Estado, às leis iníquas sobre os partidos políticos e do financiamento dos partidos e que, mais recentemente, permitiram um golpe profundo na nossa soberania e no valor prevalecente da nossa Constituição da República ao estabelecer a sua subordinação a uma Constituição Europeia que nem sequer está ainda em vigor.

No plano social, o Governo PSD-CDS/PP não enchia a boca com um contrato social enquanto aprovava o pacote laboral?

Mas se fazemos este exercício de memória histórica, então, e numa posição construtiva, para o PCP o problema não está em subscrever ou não subscrever “pactos” ou “contratos”. Não! A questão crucial está em saber aquilo que são os conteúdos e objectivos desses “pactos” ou “contratos”.

Que saúde para as contas públicas pode haver enquanto se mantiver o paraíso fiscal do offshore da Madeira, os potentados económicos pagarem percentual-mente menos que os micro, pequenos e médios empresários e receberem fabulosas verbas na área da saúde com a privatização dos hospitais, enquanto 10% de proprietários agrícolas recebam tanto de fundos comunitários como os restantes 90% de pequenos e médios agricultores?

Como é possível o aumento da produtividade e da competitividade, se assistimos à destruição e desvalorização do nosso aparelho produtivo e da produção nacional, ao aumento do desemprego, se, para além de meio milhão de trabalhadores nesta situação, novas ameaças decorrem para milhares de trabalhadores têxteis.

Haverá sustentabilidade da segurança social se se concretizar a linha privatizadora que está no cerne da nova Lei de Bases de Segurança social?

De forma singela questione-se os acrisolados defensores do bloco central de interesses! Se a riqueza criada não é de elástico haverá “pacto” que resista à evidência da necessidade de uma outra repartição do rendimento, o que implica medidas corajosas para tocar nos intocáveis?

Nem sequer se exigem sacrifícios ao grande capital. Ponha-se é fim aos seus privilégios, ao esbulho resultante das privatizações, valorize-se o trabalho e os trabalhadores como elemento fundamental da própria economia, cumpra-se efectivamente o “pacto” mais democrático e abrangente da sociedade portuguesa – a Constituição da República, designadamente no que ela comporta de valores e ideais de Abril.