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Projecto de Lei n 405/VIII
Altera o Código Penal, para garantia do julgamento em Portugal dos autores de crimes de maior gravidade que afectam a comunidade internacional no seu conjunto

 

O debate sobre a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) desenvolve-se em torno de dois temas diferenciados: por um lado, a discussão sobre os contornos concretos do TPI aprovado em Roma em 1998, nomeadamente a questão de saber se o seu Estatuto garante efectivamente o que anuncia quanto a princípios essenciais, incluindo o princípio da independência dos tribunais; por outro lado, a questão de considerar que os crimes incluídos no Direito Penal Internacional devem ser efectivamente julgados e punidos.

As duas questões podem resumir-se na questão de saber se é o TPI a forma mais correcta de concretizar esta "obrigação de julgamento" e o se o TPI se conforma com as regras adequadas no que respeita aos princípios do direito penal e às prerrogativas das justiças nacionais.

Se isso não suceder, fica a outra questão, que deve ser encarada e resolvida, tal como o PCP propõe no presente projecto de lei: criar as condições e normativos necessários para garantir que os crimes em questão são efectivamente julgados e punidos em Portugal, independentemente do local onde foram cometidos ou a nacionalidade dos seus autores.

Ora, é conhecida a posição crítica que o PCP manifesta relativamente ao Tribunal Penal Internacional, dadas três ordens de razões:

I. O Estatuto aprovado em 1998 em Roma não garante a independência do Tribunal, sendo que esse é um elemento essencial de garantia da justiça. De facto, o Estatuto estabelece relações entre o Tribunal e o Conselho de Segurança da ONU que acabam por se traduzir na supremacia deste sobre a administração da justiça. É particularmente negativo que o Conselho de Segurança possa por sua decisão unilateral, que o Tribunal tem de acatar, suspender o início do prosseguimento do inquérito ou procedimento criminal pelo período de um ano, renovável sem qualquer limite (o que na prática se pode traduzir no bloqueamento definitivo do julgamento dos crimes cometidos em situações que o Conselho de Segurança queira proteger).

II. Reintroduzir-se-ia em Portugal, indirectamente, a pena de prisão perpétua. De facto, o Estatuto adapta a prisão perpétua como uma das sanções possíveis. Assim, Portugal, que tem na sua ordem jurídica o importante avanço civilizacional de ter acabado com a prisão perpétua, seria obrigado a "entregar" ao TPI arguidos que poderiam vir a ser condenados por uma pena que condenamos em nome de princípios humanistas e de progresso do direito penal. Aprovando o Tratado que institui o TPI, que, nos termos da Constituição, passaria a vigorar na ordem interna portuguesa (artigo 8º da Constituição), Portugal aceitaria de forma indirecta a reintrodução da pena de prisão perpétua para certos crimes.

III. O Estatuto permite ao TPI decidir retirar aos tribunais portugueses competência para julgamento destes crimes. Apesar de estabelecido o princípio da complementaridade face aos sistemas jurídicos nacionais, segundo a qual a jurisdição penal nacional teria sempre prioridade sobre o TPI, o facto é que nos termos dos artigos 17º e 18º permite-se que o TPI decrete que é competente para apreciar um caso. As circunstâncias em que isso pode ocorrer estão definidas, mas quem aprecia o preenchimento dessas condições é o próprio TPI, que assim assume competência por decisão própria, sobreponível às decisões dos tribunais portugueses.

Se, pelas razões aduzidas, o PCP entende que Portugal não deve aprovar para ratificação o Estatuto do TPI, também entende que não devem ser deixadas nenhumas dúvidas sobre a necessidade de julgamento pelos tribunais portugueses dos crimes elencados nesse Estatuto.

O PCP propõe, assim, que a lei penal portuguesa seja alterada por forma a que fique garantida a competência dos tribunais portugueses para julgarem os autores dos crimes a que se refere o Estatuto do TPI, seja qual for a sua nacionalidade ou o local onde esses crimes foram cometidos.

Desta forma, nunca esses crimes ficariam impunes quando os seus autores fossem encontrados em Portugal. Mas o julgamento far-se-ia com respeito dos nossos princípios jurídicos, incluindo o da proibição da pena de prisão perpétua. Por outro lado, o processo prosseguiria sempre, sem haver a possibilidade de ser travado (como sucede no TPI, a partir de "ordens" do Conselho de Segurança) por alegadas "razões de Estado", que introduzem uma inaceitável discricionaridade na condenação destes crimes. Finalmente, a competência soberana dos tribunais portugueses seria reafirmada, em consonância com a evolução do Direito Penal Internacional.

Para atingir o objectivo, o PCP propõe as seguintes alterações ao Código Penal português:

· A alteração do artigo 5º, relativo à aplicação territorial da lei penal portuguesa, tornando-a extensiva a crimes como a coacção, o sequestro, a tomada de reféns, a procriação artificial, o lenocínio, o tráfico de menores, ou o terrorismo, mesmo que os factos tenham sido cometidos fora do território nacional, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado. Assim, assegura-se que nunca haverá impunidade em território português para alguém que seja acusado de algum dos crimes contra a Humanidade previstos no Direito Internacional, prevendo no direito interno os mecanismos necessários para o seu julgamento e punição.

· O aditamento de artigos sobre "Crimes contra a Humanidade" e "Crimes de guerra", acolhendo no Direito Penal português a previsão de crimes que estando previstos no Estatuto do TPI no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra populações civis, não se encontram ainda punidos nesses termos no nosso Código Penal.

Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo-assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte projecto de lei:

Artigo Único

Ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 3 de Setembro, alterado pela Lei n.º 6/84 de 11 de Maio, pelos Decretos-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril e n.º 48/95, de 15 de Março e pelas Leis n.º 65/98, de 2 de Setembro e n.º 7/2000, de 27 de Maio, é alterado o artigo 5º, e são aditados os artigos 241º-A e 241º-B (novos), com a seguinte redacção:

Artigo 5º
(Factos praticados fora do território português)

1. Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:

a) (...)
b) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 154º, 158º a 161º, 168º a 170º, 176º, 236º a 244º, 287º, 288º e no artigo 302º, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado.
c) (...)
d) (...)

2. (...)

Artigo 241º-A
(Crimes contra a Humanidade)

Quem, no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, cometer:

a) Homicídio;
b) Extermínio, entendido como a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos e medicamentos com vista a causar a destruição de uma parte da população;
c) Escravidão, entendida como o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa , incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças;
d) Deportação ou transferência à força de uma população, entendida como a deslocação coactiva de pessoas através de expulsão ou de outro acto coercivo, da zona em que se encontram legalmente, sem qualquer motivo reconhecido em Direito Internacional.
e) Prisão, ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de Direito Internacional;
f) Tortura, entendida como o acto por meio do qual uma dor ou sofrimento graves, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controlo do arguido;
g) Violação, escravatura sexual, prostituição forçada, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Gravidez à força, entendida como a privação de liberdade ilegal de uma mulher que foi engravidada à força, com o propósito de alterar a composição étnica de uma população ou de cometer outras violações graves do Direito Internacional;
i) Perseguição de um grupo ou colectividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo, entendida como a privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do Direito Internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da colectividade em causa;
j) Desaparecimento forçado de pessoas, entendido como a detenção, a prisão ou sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política, ou com a autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa a reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a protecção da lei por um longo período de tempo.
k) Crime de apartheid, entendido como qualquer acto desumano praticado no contexto de um regime institucionalizado de opressão e domínio sistemático de um grupo rácico sobre um ou outros e com a intenção de manter esse regime;
l) Outros actos desumanos que causem intencionalmente grande sofrimento, ferimentos graves ou afectem a saúde mental ou física.

Artigo 241º-B
(Crimes de guerra)

1. Quem, em violação das Convenções de Genebra de 1949, como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala, cometer:
a) Homicídio doloso;
b) Tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas;
c) O acto de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde;
d) Destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária;
e) O acto de compelir um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob protecção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga;
f) Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob protecção do seu direito a um julgamento justo e imparcial;
g) Deportação ou transferência, ou a privação de liberdade ilegais;
h) Tomada de reféns.

é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

2. Quem, em violação das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no quadro do direito internacional:
a) Atacar intencionalmente a população civil em geral ou civis que não participem directamente nas hostilidades;
b) Atacar intencionalmente bens civis, ou seja bens que não sejam objectivos militares;
c) Atacar intencionalmente pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à protecção conferida aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados;
d) Lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de carácter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e directa que se previa;
e) Atacar ou bombardear, por qualquer meio, aglomerados populacionais, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que não sejam objectivos militares;
f) Provocar a morte ou ferimentos a um combatente que tenha deposto armas ou que, não tendo meios para se defender, se tenha incondicionalmente rendido;
g) Utilizar indevidamente uma bandeira de tréguas, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves;
h) A transferência directa ou indirecta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território;
i) Os ataques intencionais a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objectivos militares;
j) Submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de uma parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer TPIo de experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar, nem sejam efectuadas no interesse dessas pessoas, e que causem a morte ou façam perigar seriamente a sua saúde;
k) Matar ou ferir à traição pessoas pertencentes à nação ou ao exército inimigos;
l) Declarar que não será dado abrigo;
m) Destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o determinem;
n) Declarar abolidos, suspensos ou não admissíveis em tribunal os direitos e acções dos nacionais da parte inimiga;
o) O facto de uma parte beligerante obrigar os nacionais da parte inimiga a participar em operações bélicas dirigidas contra o seu próprio país, ainda que eles tenham estado ao serviço daquela parte beligerante antes do início da guerra;
p) Saquear uma cidade ou uma localidade, mesmo quando tomada de assalto;
q) Utilizar veneno ou armas envenenadas;
r) Utilizar gases asfixiantes, tóxicos ou similares ou qualquer líquido, material ou dispositivo análogo;
s) Utilizar balas que se expandem ou achatam facilmente no interior do corpo humano, tais como balas de revestimento duro que não cobre totalmente o interior ou possui incisões;
t) Empregar armas, projécteis, materiais e métodos de combate que, pela sua própria natureza, causem ferimentos supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surtam efeitos indiscriminados em violação do direito internacional aplicável aos conflitos armados, na medida em que tais armas, projécteis, materiais e métodos de combate sejam objecto de uma proibição geral e estejam incluídos num anexo ao presente Estatuto, em virtude de uma alteração aprovada em conformidade com o disposto nos artigos 121º e 123º;
u) Ultrajar a dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes;
v) Cometer actos de violação, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea h) do n.º 2 do artigo 241º-A, esterilização à força e qualquer outra forma de violência sexual que constitua também um desrespeito grave das Convenções de Genebra;
w) Aproveitar a presença de civis ou de outras pessoas protegidas para evitar que determinados pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares;
x) Atacar intencionalmente edifícios, material, unidades e veículos sanitários, assim como o pessoal habilitado a usar os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, de acordo com o direito internacional;
y) Provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de fazer a guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, nomeadamente, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra;
z) Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou utilizá-los para participar activamente nas hostilidades,

é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

3. Quem, em caso de conflito armado que não seja de índole internacional, cometer, contra pessoas que não participem directamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham ficado impedidos de continuar a combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo:

a) Actos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura;
b) Ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes;
c) A tomada de reféns;
d) As condenações proferidas e as execuções efectuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como indispensáveis,

é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

4. Quem, em violação das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados que não têm carácter internacional, no quadro do direito internacional:

a) Atacar intencionalmente a população civil em geral ou civis que não participem directamente nas hostilidades;
b) Atacar intencionalmente edifícios, material, unidades e veículos sanitários, bem como o pessoal habilitado a usar os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, de acordo com o direito internacional;
c) Atacar intencionalmente pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção de paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à protecção conferida pelo direito internacional dos conflitos armados aos civis e aos bens civis;
d) Atacar intencionalmente edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objectivos militares;
e) Saquear um aglomerado populacional ou um local, mesmo quando tomado de assalto;
f) Cometer actos de violação, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea h) do nº 2 do artigo 241º-A, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência sexual que constitua uma violação grave do artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra;
g) Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar activamente nas hostilidades;
h) Ordenar a deslocação da população civil por razões relacionadas com o conflito, salvo se assim o exigirem a segurança dos civis em questão ou razões militares imperiosas;
i) Matar ou ferir à traição um combatente de uma parte beligerante;
j) Declarar que não será dado abrigo;
k) Submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de outra parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer TPIo de experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar nem sejam efectuadas no interesse dessa pessoa, e que causem a morte ou ponham seriamente a sua saúde em perigo;
l) Destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o exijam.
É punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

5. Os números 3 e 4 do presente artigo não se aplicam a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins, actos de violência esporádicos ou isolados ou outros de carácter semelhante.


Assembleia da República, em 22 de Março de 2001