O manto diáfano da emoção
Artigo de Ruben de Carvalho
Diário de Notícias de 24 de Setembro de 1999
Parece instalada a opinião de que a crise de Timor veio constituir um precioso factor para a campanha eleitoral do partido do Governo e que pode vir mesmo a constituir um elemento capaz de alterar substancialmente os resultados, o que é, no mínimo, puramente especulativo.
Os processos sociais com profundos elementos de dramatismo e emotividade tendentes a gerar estados de espírito de unanimismo não são fatalmente favoráveis ao poder estabelecido, mas, como assinala Maurice Duverger (na esteira aliás de Norbert Ellias), tendem a gerar a busca de protecção e a identificação com o poder e os poderosos. Tais fenómenos são evidentemente mais acentuados quando as origens do processo se traduzem em males ou tragédias que directamente afectam as sociedades em questão, menos quando - como sucede com a questão de Timor - tocam o tecido social de forma mais indirecta, vale dizer mais emotiva. Naturalmente que se a actuação do poder contraria os sentimentos que atravessam a sociedade os resultados tenderão a ser inversos, ou seja, uma ruptura de maiores ou menores dimensões entre ambos. Situação suicidária pouco frequente, o poder político tende a ser cuidadoso quanto à sua sobrevivência.
O Governo do eng. Guterres não fugiu à regra e nem será exacto invocar maquiavelismos para justificar uma acção que vem na continuidade do que antes vinha fazendo e que até se enriqueceu com empenhadas e meritórias acções de quadros diplomáticos e outros que é justo destacar.
Não significa isto, note-se bem, que a acção do Governo português tenha sido isenta de erros e de motivos de crítica. Mas o quadro da opinião pública facilitou uma postura de que "quem não está com o Governo está contra o povo de Timor". Seria absurdo (e, de resto, de forma alguma sucedeu) que a oposição desejasse que o Executivo acumulasse erros que o prejudicassem eleitoralmente, pagando Timor esse monstruoso custo, mas forçoso é reconhecer que o equilíbrio de análise e sentido crítico ficou nas últimas semanas submerso na onda de solidariedade que varreu o País e de que o Governo socialista soube retirar dividendos. O mais significativo deles não residirá até no problema timorense em si e no que directamente o envolve, antes num diáfano mas objectivo manto encobridor que acabou a ser. A verdade é que, implacavelmente, a campanha eleitoral do partido do Governo continuou ao longo das últimas semanas a instrumentalizar o Estado em proporções para que é difícil encontrar paralelo. Todos os dias um enxame de ministros, secretários, subsecretários, governadores civis e funcionários avulsos inauguram, distribuem prebendas, anunciam promessas, de norte a sul do País entoam desvanecidas loas às bondades dos quatro anos de guterrismo e maiores à indispensabilidade da sua continuação. E não há Timor que os detenha.
Em condições normais, a escandalosa dimensão da operação até se podia revelar contraproducente. O eleitorado tenderia a considerar a dose excessiva e, em qualquer dos casos, não deixaria de confrontar o discurso oficial com a realidade do seu quotidiano. E foi aqui, talvez mais do que em qualquer outra circunstância, que a tragédia de Timor foi preciosa para a campanha eleitoral socialista: cobriu-lhe as vergonhas, os excessos, a escandalosa instrumentalização do aparelho de Estado. Sucede porém que, noutras circunstâncias de profunda emotividade colectiva, o povo português já deu provas de objectiva lucidez na decisão eleitoral do futuro da sua democracia.