A esquerda, o BE e o poder

Artigo de João Amaral

Expresso de 11 de Setembro de 1999


UM DOS apoiantes do Bloco de Esquerda (BE) publicou um artigo em que escreve: «A verdadeira esquerda (...) é aquela que contesta o poder não como a forma de o conquistar mas porque toda a injustiça tem de ser denunciada».

Retoma assim uma velha polémica sobre a esquerda e a sua relação com o poder, que já nesta legislatura teve um ponto alto quando Manuel Alegre defendeu no EXPRESSO que o papel do PCP era o de «consciência crítica» do Governo PS, ou, segundo José António Saraiva em editorial, o de «grilo falante» do PS. A ideia que subjaz é a de que o poder corrompe, suja as mãos de quem o exerce e é em si mesmo um abuso sobre os cidadãos. Daí que o poder deva ser exercido à direita, cabendo à esquerda o papel ético de denúncia das injustiças. E assim um dos dirigentes do BE afirma: «somos candidatos à oposição». Resumindo: o poder é pecado, a virtude está longe do poder.

Se a esquerda abdicasse de pôr o exercício do poder como objectivo, negar-se-ia como alternativa política. Uma esquerda que pensasse e agisse assim aceitaria a inevitabilidade do domínio da política de direita e praticaria a sua automarginalização das questões do poder. O BE continua velhas ideias e propostas, ao federar partidos com uma longa presença na acção política, dois deles em todos os anos desde o 25 de Abril. A UDP teve um deputado durante uma década e o PSR tudo fez para o conseguir. Ambos exerceram o poder em Lisboa, em vários momentos da vida da coligação que governa a cidade. Aliás, a UDP só abandonou a coligação após a adesão ao BE. Será então este alegado desapego pelo poder coerente com a história e as posições dos partidos do BE?

Um dirigente da Política XXI, o outro partido do BE, declarou que o problema do PCP como oposição é vir de quatro em quatro anos queixar-se de que apresentou muitas propostas mas que eles (os «maus», diz esse dirigente!) não as aprovaram e, ao mesmo tempo, esquecer os instrumentos não-parlamentares da democracia.

Isto é dito do PCP quando este não só faz dos resultados do seu trabalho no Parlamento um dos eixos da campanha eleitoral como reitera a importância que dá à luta dos cidadãos, como forma de conquista de direitos e de contribuição para a mudança. Não falta, aliás, quem critique o PCP dizendo ser excessivamente não-parlamentar...

Ninguém duvida da urgência da reflexão sobre os novos caminhos da esquerda. Se tomarmos por exemplo um partido que de forma polémica integra o Governo, como sucede com o PCF, é bem significativo que o seu secretário nacional, Robert Hue, afirme que, perante os limites da acção governamental, «o essencial está no movimento popular, na sua capacidade de se unir e de colocar, com força e radicalidade, novas exigências, até tornar incontornável a sua satisfação».

Mas, se a esquerda pusesse como objectivo exclusivo ser oposição e força de denúncia, isso seria uma confissão antecipada de derrota. A esquerda, por o ser, não está condenada a desistir da ambição de contribuir para alterar o rumo geral da política.

Na situação política criada com as opções do PS, o PCP assumiu-se na legislatura passada como oposição de esquerda. Usou a tribuna da Assembleia para denunciar as injustiças. Deu voz no Parlamento às lutas dos cidadãos, lutas que incentivou e em que participou. Combateu a política de direita. Fez aprovar leis positivas, com o apoio activo dos cidadãos.

Hoje, neste debate eleitoral, o PCP como força de esquerda não se pode demitir, não pode e não quer estar à margem do problema político do poder. Faz parte do problema e intervém nele, com tudo o que isso representa de esperança para os cidadãos e de ónus de responsabilidade para o partido. Glosando o apelo a uma aliança feito por Boaventura Sousa Santos, direi que, quando os partidos integrantes do BE compreenderem isto, então pode pôr-se na agenda política uma nova alínea. Até lá, a novidade destas eleições será reforçar a CDU, com o que toda a esquerda ganhará.