Contra-ordenações laborais
Intervenção do deputado Alexandrino Saldanha
22 de Abril de 1999

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados
Senhores membros do Governo

O PCP, em Janeiro de 1997, apresentou um Projecto de Lei, com vista a alterar "os montantes das coimas e multas resultantes de infracções a normas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, trabalho de menores, discriminação em função do sexo, duração do trabalho, trabalho suplementar, pausas e intervalos de descanso, pagamento de retribuições e salário mínimo nacional", que foi aprovado na generalidade, por unanimidade, em Fevereiro de 1998. O seu objectivo é o de conseguir que as sanções pela violação de normas laborais deixem de constituir um incentivo aos potenciais infractores, dado que os proveitos resultantes do seu incumprimento (mesmo considerando só os económicos) são, em muitos casos, superiores ao montante das coimas aplicáveis.

Não fora a apresentação desse projecto e não estaríamos a debater aqui, hoje - embora com manifesto atraso - quatro Propostas de Lei do Governo, sobre a mesma matéria.

De facto, foi durante a discussão na generalidade do Projecto de Lei n.º 269/VII, do PCP, em 5 de Fevereiro de 1998 - mais de um ano após a sua apresentação - que o Governo anunciou, com pompa e circunstância, ter preparado um texto visando a alteração de montantes de coimas e o alargamento do regime de contra-ordenações a matérias hoje excluídas do mesmo.

Entretanto, o Projecto de Lei do PCP ficou a aguardar na Comissão de Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, a sua discussão na especialidade, a efectuar em conjunto com os diplomas que o Governo se comprometeu a apresentar.

Estamos agora - finalmente e já próximos do final do mandato do Governo - a discutir a Proposta de Lei n.º 200/VII, que visa estabelecer um regime geral das contra-ordenações laborais, e as Propostas de Lei nºs 236/VII, 248/VII e 254/VII, que visam desenvolver e concretizar tal regime, através da tipificação e classificação dalgumas dessas contra-ordenações.

Senhor Presidente
Senhores Deputados,

Uma primeira e importante questão que estes diplomas levantam é a do equilíbrio e da relação de um quadro normativo que comporta normas do chamado "ilícito criminal de justiça", contravenções ou transgressões e o "ilícito de mera ordenação social.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei que visa estabelecer o regime geral das contra-ordenações laborais, o Governo defende que, e cito, "... com a instituição do ilícito de mera ordenação social, afigura-se aconselhável a revisão e gradual extinção das contravenções laborais, generalizando-se, sempre que possível, o regime de contra-ordenações". Este entendimento é consagrado no art.º 25.º do diploma.

O PCP, já na discussão do seu projecto, em Fevereiro do ano passado, referiu que há muito defende a neocriminalização de condutas que violam direitos fundamentais dos trabalhadores. E dávamos o exemplo de condutas como as relativas ao incumprimento de normas de Higiene, Segurança e Saúde no Trabalho, causadoras de mortes e de graves sequelas físicas e psíquicas nos trabalhadores. Acrescentávamos ainda que, de acordo com a importância do bem jurídico definido pela ordem axiológica constitucional, se deve seguir o exemplo de outras legislações comparadas, como a de Espanha, que enveredaram pela neocriminalização de algumas condutas violadoras de direitos dos trabalhadores, como atentados dolosos à estabilidade no emprego, aí se incluindo a contratação a termo, tráfico ilegal de mão de obra, além da já citada violação das medidas de higiene e segurança no trabalho. Tal opção potencia um grande efeito dissuasor, pois os destinatários são muito sensíveis à privação da liberdade e à perda do status com que se relaciona a eficácia intimidatória da prisão, ainda que de curta duração, sendo por isso a sanção mais temida pelos delinquentes de colarinho branco.

Dentre os autores nacionais que vêm fazendo doutrina sobre esta matéria, alguns há que defendem, nomeadamente, uma sanção especial, como existe no direito francês, para o delito de obstrução à actividade sindical, cada vez mais comum nas empresas do nosso país.

Porém, quer a proposta do regime geral, quer as outras três, que o desenvolvem e concretizam, apresentam uma sobrevalorização do ilícito de mera ordenação social, e não vão ao encontro das preocupações que acabámos de expor, apesar de darem uma resposta - atrasada e tímida, aliás - à imperiosa necessidade de actualizar as coimas e encontrar um mecanismo futuro para a sua actualização automática.

Por isso, esta matéria impõe a necessidade de uma profunda e ponderada reflexão, na especialidade.

Porque, se muitas normas jus-laborais estabelecem meros deveres para com a administração e o seu incumprimento não lesa bens jurídicos fundamentais, outras há destinadas exactamente a defender esses bens - seja no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, seja no dos direitos sociais, constitucionalmente consagrados. E estas normas devem ter uma tutela penal.

Mas há outras questões a merecerem críticas e correcções.

Ainda no diploma sobre o regime geral e apesar de estar pendente nesta Assembleia uma alteração ao Código do Processo de Trabalho, nada impede que se consagre, desde já, a legitimidade das associações sindicais se poderem constituir como assistentes no respectivo processo, como propomos no nosso projecto de lei.

Sobre a actualização das coimas, não se entende porque se propõe apenas a sua actualização de três em três anos. Que justificação pode ser dada para não o fazer anualmente, como é regra em quase tudo, com base na taxa média de inflação verificada no final do ano anterior, de acordo com o índice de preços no consumidor do INE ? Àcerca deste diploma, vamos referir mais três aspectos.

O primeiro, para dizer que a formulação da norma que respeita ao dolo representa um claro e injustificado recuo do Governo, face a um anterior projecto, onde se presumia "...a existência de dolo se o infractor agir com desrespeito das medidas recomendadas no auto de advertência". Agora, propõe-se que o mesmo desrespeito apenas seja "ponderado .. designadamente para efeitos de verificação da existência de conduta dolosa".

Um eufemismo certamente muito agradável ... para os infractores.

O segundo aspecto tem a ver com o conceito de reincidência.

Já havíamos sido confrontados com o Governo a decretar que parte da noite pode ser dia !

Agora, o Governo quer decretar que a reincidência só o é, nos casos de repetição de infracções graves com dolo ou muito graves. A repetição de infracções graves ou leves não é reincidência ! O que será?...

É certamente de grande utilidade para todos nós, que o Governo publique um decreto-lei, tendo em anexo um dicionário PS de governês.

O terceiro aspecto, para constatar que o Governo deixa de ser peremptório nas opções, quando isso é susceptível de beneficiar o infractor.

Assim, na violação de normas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, os valores máximos das coimas não são elevados para o dobro ..."podem ser".

O mesmo se passa na aplicação de sanções acessórias: a lei não determina ..."pode determinar".

Senhor Presidente
Senhores Deputados

As outras três propostas de lei, que desenvolvem e concretizam o regime geral das contra-ordenações laborais, através da sua tipificação e classificação, são assim justificadas, na exposição de motivos da primeira (n.º 236/VII):

Se o diagnóstico é inquestionável, já as soluções encontradas deixam muito a desejar.

É um facto que as coimas são actualizadas, o que é positivo.

Mas os critérios de classificação das contra-ordenações são aleatórios, não são objectivos e uniformes na sua aplicação ou adequação à relevância dos direitos e interesses violados. E algumas das críticas feitas ao diploma base, como a ambiguidade de algumas formulações - a não presunção de dolo na situação descrita, o "pode ser" ou o novo conceito de reincidência - são susceptíveis de permitir aos infractores afastar ou reduzir as sanções aplicáveis.

Vejamos alguns casos concretos.

Na proposta de lei n.º 236/VII, relativa à violação dos diplomas sobre o regime geral dos contratos de trabalho: Na Proposta de Lei n.º 248/VII, relativa à violação da legislação de segurança, higiene e saúde no trabalho, também é frequente que condutas violadoras de obrigações semelhantes sejam ou não tipificadas, ou, quando tal acontece, serem objecto de classificação diferente.

A violação das obrigações gerais de prevenção a cargo do empregador, por exemplo, é ignorada nuns casos - diploma contra os riscos da exposição ao chumbo - e noutros casos é tida como contra-ordenação grave - diploma contra os riscos da exposição ao amianto.

Também na Proposta de Lei n.º 254/VII, relativa à violação dos regimes especiais dos contratos de trabalho e contratos equiparados surgem idênticas situações.

Senhor Presidente
Senhores Deputados

Da análise genérica aos diplomas em apreciação resulta a necessidade de proceder a alterações, mais ou menos profundas, em sede de discussão na especialidade, articulando-os com o projecto de lei do PCP que há muito espera por estes.

Só com essas alterações será possível dar coerência aos regimes sancionatórios e, designadamente, na conjugação de contravenções e contra-ordenações.

Para que o incumprimento das normas jurídico-laborais, pela impunidade de que gozam os seus infractores, não seja ostensivamente assumido como natural.

E para que os direitos fundamentais dos trabalhadores, constitucionalmente consagrados, possam ser uma realidade no nosso país.

Disse.