Direitos dos trabalhadores no caso de cedência ou transferência de empresa ou estabelecimento
Intervenção da deputada Odete Santos
24 de Setembro de 1998

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados

O direito à segurança no emprego, consagrado constitucionalmente, é um direito estruturante da Democracia. Por isso é tão caro aos trabalhadores. Por isso tem resistido nas páginas da Constituição da República. Por isso tem servido de suporte para resistir às investidas que ao longo dos anos, temos presenciado neste hemiciclo.

É certo que por variadas formas, por enviesadas vias legislativas, ou por situações de facto manifestamente ilegais, a que nem a função pública ficou imune, vimos assistindo à violação daquele direito.

Ele são os contratos a prazo, os contratos à tarefa, os recibos verdes inflacionados pelo próprio Estado patrão, os contratos à tarefa, os contratos à hora, os contratos a tempo parcial, muitos dos quais só no nome assim se configuram.

Mas a verdade é que, mesmo assim, o direito constitucional à segurança no emprego, conquistado com Abril, continua a ser o esteio que torna possível, houvesse vontade política para tanto, combater a ilegalidade, a autêntica subversão do direito laboral.

Que tal acontece em nome da competitividade das empresas, dizem-nos. Em nome da produtividade, asseveram-nos. E até, juram, com despudor, que tudo se faz contra o direito fundamental dos trabalhadores em nome dos próprios trabalhadores.

Na própria Consulta pública prévia a este debate, dirigida tão só aos organismos representativos dos trabalhadores, como estabelece a lei, pudemos verificar que uma confederação patronal veio desenvolver uma acérrima crítica ao Projecto de lei em nome da competitividade das empresas. Adiantando-se, ao emitir o Parecer àquilo que já considera favas contadas. Se o Governo já acordou com o patronato, tornar obrigatória a consulta das Associações Patronais na elaboração da Legislação de trabalho, consulta que a Constituição reserva para os trabalhadores, por que não adiantar-se e tomar já posição na linha de partida?

E o despudor é tanto que já nem o diploma do Governo Cavaco e Silva sobre cedência ocasional de trabalhadores corresponde, dizem, às necessidades de competitividade e de produtividade das empresas. Classificando-o, pasme-se, como excessivamente rígido.

Não é essa a nossa opinião.

Aliás os dados demonstram que todos os diplomas que se introduzem na ordem jurídica, em nome daquela competitividade, causam efeitos devastadores na sociedade e na economia dos países.

E já que nas matérias laborais, os modelos estrangeiros têm servido para desregulamentar as relações laborais, para desfigurar o nosso direito laboral, bom seria que atentássemos nas graves consequências sociais e económicas, de tais modelos.

O relatório anual do Conselho Superior de Emprego Francês divulgado em Janeiro de 1997, relativamente à flexibilidade do mercado de trabalho iniciada nos anos 80, revela que, tendo constituído a pedra angular da política de emprego, produziu precisamente efeitos contrários:


Surpreende, pois, que venham anunciadas medidas negociadas na concertação social, que se traduzem num autêntico pacote anti laboral, que mais não fazem do que continuar a via da flexibilização, em manifesta derrocada no final da presente década.

Como acontece, por exemplo, com a anunciada legislação sobre contrato de trabalho a tempo parcial, à semelhança do que já se fez no estrangeiro. E que mais não produziria do que sub - emprego, diminuição do emprego a tempo inteiro, empobrecimento das famílias, incertezas quanto ao futuro, nomeadamente para os jovens e mulheres.

É inaceitável esta forma de partilha do trabalho, destinada a encobrir o desemprego.

A partilha do tempo de trabalho verdadeiramente criadora de empregos, é a que se consegue através da redução do tempo de trabalho num horário semanal estável, sem a flexibilização, sem a desregulamentação dos tempos livres dos trabalhadores.

Nos últimos tempos, em certos sectores de actividade, por via do recurso a cedências ocasionais de trabalhadores e mesmo à figura espúria de cedência definitiva de trabalhadores, assistimos a uma ofensiva relativamente ao direito à segurança no emprego.

Tal aconteceu e acontece no sector da Banca e dos Seguros, na EDP e na Cimpor, por exemplo.

A EDP procedeu a cisões da empresa e à constituição de várias novas sociedades, lançando mão, contra os trabalhadores, das figuras de cedência ocasional de trabalhadores de umas empresas para outras, de requisição de trabalhadores com base no Decreto-Lei 358/89, e até, pasme-se, à cedência de trabalhadores a título definitivo.

Quanto a esta última figura, gostaríamos de recordar que a nossa legislação do trabalho contém no artigo 37º do Decreto-Lei 49.408, como escreveu o Professor Mota Pinto, uma derrogação ao direito comum da cessão da posição contratual. E é esse artigo 37º que deve merecer aperfeiçoamentos por forma a que sem quaisquer dúvidas nele se incluam as transferências de empresas operadas pelas mais diversas formas, e que a jurisprudência mais recente não tem enquadrado naquele dispositivo legal.

É isto que se impõe fazer, e não o recurso a formas civilistas de sucessão de contratos, que endeusam a autonomia de vontades nos contratos de trabalho, fazendo letra morta do que é um dado adquirido na doutrina e na jurisprudência. No contrato de trabalho não existe, de facto, uma igualdade real entre as partes. O trabalhador está em manifesta desvantagem, e o desequilíbrio exige a intervenção do Estado na criação de mecanismos legais que defendam o trabalhador.

A cedência definitiva de trabalhadores a que a EDP procedeu pressionando os trabalhadores, é exemplo que deve ser definitivamente arredado da prática empresarial, porque a mobilidade externa dos trabalhadores é rigorosamente delimitada pela lei laboral tendo em vista a estabilidade no emprego, e concomitantemente a viabilidade económica das empresas.

Como se diz no Acórdão 249/90 do Tribunal Constitucional, sem embargo de a iniciativa económica privada ser constitucionalmente tratada como um direito fundamental, as duas vertentes que nela se comportam ( direito à empresa e liberdade de empresa) podem ser objecto de limites mais ou menos extensos, na justa medida em que tal direito só pode exercer-se nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral; não se trata, portanto, de um direito absoluto, nem tem sequer os seus limites garantidos, salvo no que respeita ao seu conteúdo útil relevante, que a lei não pode deixar de respeitar.

E, continua o Tribunal Constitucional:

"E, se isto é assim no que toca ao direito de iniciativa económica privada, há - de forçosamente sê-lo também quanto ao princípio da liberdade contratual ou da liberdade negocial, mero corolário daquele direito, e apenas constitucionalmente protegido na estrita medida em que o seja a iniciativa económica privada. Com efeito, sofre a liberdade negocial no nosso ordenamento jurídico de limitações várias, nomeadamente ditadas pela necessidade de assegurar uma situação de real liberdade e igualdade dos contraentes, bem como garantir as exigências da justiça social"

Face a este entendimento, que é o correcto, não pode continuar a permitir-se a mais feroz desregulamentação no que toca à mobilidade externa dos trabalhadores, permitindo-se cedências de trabalhadores sem limites, pois que tal mobilidade sofre as limitações decorrentes do direito à segurança no emprego, do direito dos trabalhadores à estabilidade no emprego.

Direitos que também a Cimpor- ainda outro exemplo- pôs em causa através do recurso à cedência ocasional de trabalhadores entre as várias empresas em que se cindiu.

Falemos também no sector da Banca e dos Seguros, em que, através da formação de agrupamentos complementares de empresas, do recurso a empresas de prestações de serviços se assiste a uma tremenda ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, intensificando a sua exploração, tentando destruir a sua organização, com vista ao aumento dos lucros do capital financeiro.

Por vezes, no mesmo local de trabalho, fazendo até o mesmo serviço, convivem trabalhadores com os mais diferenciados estatutos. Uns com contratos de cedência temporária, outros com contrato a termo, uns abrangidos pelo ACTV do Sector, outros pela lei geral do Trabalho. Uns com mais direitos mas em risco de os perderem, outros coagidos a não reivindicarem os seus direitos.

Entende o PCP que há que por cobro a tal ofensiva e reconduzir a mobilidade externa dos trabalhadores aos seus justos limites em nome da estabilidade no emprego, e concomitantemente, da viabilidade da empresa.

Propomos assim, a redefinição dos requisitos da cedência ocasional de trabalhadores, melhorando os direitos dos trabalhadores, restringindo o recurso a tais contratos, já que os mesmos têm sido usados muitas vezes, sem a mínima justificação, mascarando às vezes situações de transferência de empresas, de estabelecimento, ou de partes de empresa ou de estabelecimento.

Apenas e tão só para fazer sentir o poder absoluto sem qualquer assento constitucional e legal, para atacar direitos, para desorganizar os trabalhadores, para prosseguir a via da flexibilização do mercado de trabalho, via estafada e esburacada de tanto ter sido calcorreada sem sucesso.

Propomos, assim, algumas alterações ao Decreto-lei 358/89, na verdade restringindo o recurso às cedências ocasionais, e estabelecendo prescrições mínimas que os instrumentos de regulamentação colectiva podem regular no sentido mais favorável. Propomos como novos requisitos para a cedência ocasional, exceptuados os casos abrangidos pelas alíneas a) b) e c) do nº2 do artigo 26º ( aqui se regista o lapso de escrita que consistiu na omissão do artigo no Projecto enviado para a mesa) do citado Decreto Lei: Senhor Presidente
Senhores Deputados:

O artigo 37º do Decreto-lei 49.408, contém limites à mobilidade externa dos trabalhadores.

Tendo servido de amparo na luta pela estabilidade no emprego- e é ainda o citado acórdão do Tribunal Constitucional que destaca o regime do artigo 37º como exemplo dos limites à liberdade negocial em nome da garantia da estabilidade no emprego e, concomitantemente, da viabilidade económica das empresas- o artigo 37º, mostra-se hoje desadequado às realidades empresariais.

A própria jurisprudência que a determinada altura considerou englobados no conceito de transmissão de empresa certas situações de facto,mesmo que houvesse situação de continuidade entre a cessação de actividade de uma empresa e o início de actividade de nova empresa no mesmo local, começou a inflectir de modo que hoje se vê com preocupação que determinadas formas de transmissão de empresas, encapotadas sob a aparência de que nenhuma cessão convencional houve entre as duas empresas, não sejam consideradas abrangidas pelo citado artigo 37º.

Vulgares são os casos de empresas de prestações de serviços, em que uma sociedade se torna dominante em relação a outra, isto é, adquire a totalidade das quotas ou a maioria das quotas de outra sociedade, para, dominante esta, lhe ordenar que não renove o contrato de concessão, para que a sociedade dominante celebre ela esse contrato, surgindo junto da empresa concedente e perante os trabalhadores da sociedade dominada, como se nenhum acordo de vontades para a transmissão tivesse havido entre empresas coligadas. Ficando os trabalhadores na contingência do despedimento, ou de admissão na nova empresa perdendo a antiguidade. Quando é certo que se trata de uma verdadeira transmissão de facto.

As cisões de empresas como aconteceu na Cimpor, na EDP, são também verdadeiras transmissões de facto. Não sendo preciso recorrer à figura da cedência de trabalhadores, pois o que acontece é que se transmitem os contratos de trabalho dos trabalhadores operando no ramo de actividade da empresa resultante da cisão.

A instalação de agrupamentos complementares de empresas com trabalhadores das empresas agrupadas, realizando alguma ou algumas actividades dessas mesmas empresas é de facto uma transmissão de empresa ou parte de empresa, realizada encapotadamente.

Face às novas realidades societárias impõe-se que a lei clarifique que não é necessária a continuidade contratual entre o anterior e o novo proprietário da empresa ou estabelecimento.

Neste sentido propomos que se consagre que independentemente da forma por que se opere a mudança de titularidade, e ainda que se trate de uma mudança de facto, se aplique o regime constante do artigo 37º-transmissão automática dos contratos de trabalho por força da lei.

Nomeadamente nas situações que referenciamos no nº 2 do artigo 18º
- quando no local de uma empresa apareça outra a exercer qualquer ramo de actividade da primeira.
- naquelas diversas formas societárias usadas pelas empresas de sectores económicos preponderantes, como acontece, por exemplo, nos agrupamentos complementares de empresas, sociedades coligadas, sociedades em relação de grupo, e toda uma vasta panóplia constante do Código das Sociedades Comerciais.

Não é de estranhar que, passando - se em sectores económicos e financeiros de grande peso, o PCP proponha, só para estes casos, o direito à reintegração na empresa transmitente, por parte dos trabalhadores cujos contratos de trabalho se transmitiram, nos casos de infracção grave das obrigações por parte da empresa transmissária, e ainda nos casos de extinção de suspensão, de cessação da actividade, de insolvência ou de pendência de processo de recuperação judicial de empresa. À qual se pode, no entanto opor a transmitente desde que se verifiquem os condicionalismos do despedimento colectivo ou de extinção do posto de trabalho.

Não admira também que se proponha só para estes casos o alargamento da responsabilidade solidária das duas empresas pelas obrigações emergentes do contrato de trabalho contraídas pela transmissária nos 5 anos após a transmissão.

Finalmente e resumindo reformula-se o direito à informação, constante de uma forma mitigada do artigo 37º, alargando-o aos organismos representativos dos trabalhadores, reformulando-se também o direito de oposição à transferência que alguns esquecem que, embora de uma forma mais restritiva, já consta do actual artigo 37º

Melhor dizendo: não esquecem, fingem esquecer, porque o que desejariam é que se legislasse em sentido retrógrado.

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

O presente Projecto de Lei, sem dúvida passível de alterações que adulterem o seu objectivo, mas que aperfeiçoem complexos regimes, cujas soluções jurídicas são também complexas, inscreve-se no objectivo sempre reafirmado pelo PCP de apresentar propostas justas que correspondam às aspirações e reivindicações dos trabalhadores.

Esta iniciativa prende-se com um direito sagrado dos trabalhadores: o direito fundamental à segurança no emprego.

Este é também um direito fundamental à Democracia.