Intervenção do Deputado
Bernardino Soares

Interpelação ao Governo sobre política geral
centrada nas questões do âmbito do Ministério da Saúde

18 de Abril de 2001


Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,


Há hoje as mais justas razões para o generalizado descontentamento da população em relação à política de saúde. Os portugueses, especialmente os que menos recursos têm, vêm cada vez mais dificultada a concretização do seu direito à saúde.

Mas a verdade é que os problemas existentes têm causas bem concretas.

Se existem listas de espera para cirurgias é porque o governo continua a manter uma baixa produtividade em muitos blocos operatórios de unidades hospitalares e porque se desvirtuaram os princípios da lei aprovada na Assembleia da República. Os resultados do programa acesso são um fracasso. Nem sequer podemos saber com rigor o que aconteceu verdadeiramente na actividade dos hospitais porque o governo (pasme-se) não sabe qual foi a produtividade destas unidades no ano passado. Nem sequer podemos saber se houve ou não nalgumas instituições transferência da actividade normal programada para a extraordinária que é paga à peça e de forma acrescida o que a acontecer evidentemente não constitui qualquer recuperação de listas de espera.

De resto se dúvidas houvesse sobre o fracasso do governo em matéria de listas de espera para cirurgias o comportamento da Ministra da Saúde seria suficiente para o confirmar. Os episódios sucessivos com as informações contraditórias dadas à Comissão de Saúde são disso prova cabal, para além de constituírem um inaceitável desrespeito pela Assembleia da República.

Se existe descontrole orçamental é porque o governo permite que uma cada vez maior fatia do orçamento da saúde seja entregue de mão beijada aos poderosos interesses económicos dos sectores dos medicamentos, dos convencionados e das seguradoras. E enquanto isso surgem já notícias de que o governo estará a cortar nos orçamentos dos hospitais criando insuportáveis constrangimentos ao seu funcionamento enquanto os lucros privados engordam.

Se tantas unidades de saúde atravessam enormes carências de pessoal tal deve-se à política suicida em matéria de recursos humanos que o governo tem praticado. E isso quer em relação à formação de profissionais quer à política de congelamento das vagas dos quadros das instituições públicas de saúde designadamente para auxiliares e administrativos.

Se continua a haver desperdício e incompetência na gestão das unidades públicas de saúde é porque o que vale mais na nomeação das direcções não é a competência mas o cartão partidário; é porque o relacionamento com as unidades de saúde não é o da contratualização de objectivos mas o do funcionamento sem perspectiva, sem programação e sem responsabilização pelos resultados.

Se se acentua a centralização das decisões no Serviço Nacional de Saúde em vez de se privilegiar a gestão descentralizada com uma crescente participação das populações é porque isso é um instrumento privilegiado de uma gestão economicista, cuja prioridade não está centrada nos utentes.

Neste debate é preciso que fique bem claro que, sendo óbvia a responsabilidade dos responsáveis do Ministério da Saúde pela política que praticam, essa responsabilidade tem de ser atribuída por inteiro igualmente ao Primeiro Ministro e ao governo do PS. O problema não se centra na titular da pasta mas numa política que acentua a privatização do SNS e prepara o terreno para o acentuar da linha liberalizadora.

É aliás curiosa a situação que hoje vivemos. Subitamente todos estão a favor do SNS, desde o PSD ao governo. O PSD, aproveitando o óbvio descrédito da Ministra centrou nela a sua ofensiva. A Sra. Ministra responde que o PSD não tem política para o sector. Mas olhe que tem Sra. Ministra; tem e é má.

O PSD defende obviamente uma maior privatização do sector. E só não fala mais abertamente nisso porque por um lado corre o risco dessa frontalidade ser impopular entre os profissionais e a população, e porque por outro lado teria depois dificuldades em se distanciar de algumas medidas deste governo.

Porque afinal com o que é que o PSD discorda?

Com a gestão privada de unidades públicas?

Com a entrega de uma maior fatia da prestação de cuidados de saúde aos privados, reduzindo o Estado a mero financiador?

Com a gestão centralizada que sempre foi uma característica da sua própria governação?

Provavelmente está de acordo com tudo isto e aí reside a sua dificuldade. Não se coíbe no entanto de tentar reverter para si as consequências de uma política de direita com que no fundamental se identifica.

Sr. Presidente
Srs. Deputados

Particularmente espantosa é a entrevista de hoje da Sra. Ministra da Saúde. Diz a Sra. Ministra que "é uma vergonha o que se passa na saúde". Apetece perguntar de quem é a responsabilidade desta vergonha. A Sra. Ministra descobriu entretanto inúmeros problemas e constrangimentos, de resto na sua maioria já abundantemente denunciados pelo PCP, sacudindo as responsabilidades em todas as direcções.

A Sra. Ministra afirma até: "Percebo que a desorganização, a má gestão, a inércia, o deixa andar, o ninguém assumir as responsabilidades desmotive as pessoas...". Talvez o melhor seja então o governo começar por assumir as suas responsabilidades na situação da saúde, que tutela desde 1995.

Descobriu por exemplo que "estão a ser comprados serviços aos privados que os hospitais públicos podem fazer. Pois é. Mas a verdade é que já a Carta de Equipamentos da Saúde, afirmava que em 1996 os serviços públicos compraram ao sector convencionado 1,6 milhões de ecografias, 3 milhões de radiografias e 170 mil TAC's. E afirmava também que se os equipamentos instalados nos serviços públicos funcionassem 8 meses a 10 horas diárias poderiam produzir um acréscimo de 2 milhões de ecografias, 1,2 milhões de radiografias e 166 mil TAC's. Não se vislumbra entretanto nenhum esforço do governo para aumentar a produtividade dos hospitais. E no que diz respeito à recuperação das listas de espera o governo optou desde o início pela atribuição de parte delas a entidades privadas sem que se verificasse estar esgotada a capacidade dos hospitais públicos.

Refere-se ainda a Sra. Ministra por diversa vezes ao PCP, normalmente de forma pouco própria. Diz que o PCP anda há ano e meio a promover uma guerrilha contra si. Engana-se. O PCP anda desde sempre a opor-se a uma política de saúde com que não concorda.

Diz que o PCP anda a gritar sobre o défice e simultaneamente os seus sindicatos fazem demasiadas exigências. Alguém devia explicar à Sra. Ministra que os Sindicatos são estruturas independentes e representativas dos profissionais que congregam e que este tipo de discurso faz lembrar alguns discursos cavaquistas de má memória.

Diz a Sra. Ministra que o PCP está nalgumas medidas em sintonia consigo. Não temos nenhum tabu em estar de acordo com medidas que defendam o Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua origem. O curioso é que, dito isto, a Sra. Ministra se esqueceu de enumerar as tais medidas, certamente por dificuldades de memória.

Diz ainda que o PCP tem um pavor de coisas que não vai fazer. Não Sra. Ministra; o que temos é pavor das coisas que já fez e não devia ter feito e das que devia ter feito e não fez. Por um lado mantém a desastrosa política de recursos humanos, de promiscuidade e de enfeudamento aos interesses privados. Por outro aposta na manutenção da gestão privada do Hospital Amadora Sintra, e no seu alargamento a outras unidades, designadamente à nova unidade de Sintra; aprovou já em Conselho de Ministros um diploma que divide o Instituto da Gestão Informática e Financeira em dois institutos com possibilidade de terem gestão privada e esvazia o papel das agências de contratualização; aceitou a substituição de medicamentos já existentes por outros similares e só aparentemente novos com o consequente aumento de preços e despesas com a comparticipação; mantém à distância a generalização da prescrição pelo princípio activo, compromisso dos programas do XIII e XIV governo. E podíamos continuar na enumeração.

Por acção e omissão a política deste governo abre caminho a uma cada vez maior privatização da saúde.

Diz também que para o PCP a reforma do SNS são três diplomas legislativos e que os queremos para fazer proliferar conselhos de administração. O que fazemos é assinalar que estas parcas medidas foram engavetadas.

É aliás um paradoxo que continua por resolver e que tantas dores de cabeça tem dado à equipa do Ministério da Saúde. Que é o de saber como se compatibilizam em governos do mesmo partido e com o mesmo primeiro ministro medidas como a implantação dos Sistemas Locais de Saúde com a prática centralizadora de a titular da pasta analisar e corrigir pessoalmente os orçamentos dos hospitais e elaborar ela própria (com os resultados que se conhecem) os quadros de informação a entregar à Comissão de Saúde. Seria aliás interessante que o governo e o primeiro ministro pudessem informar-nos do que é feito das tais medidas.

Medidas que embora não traduzindo a inversão da política privatizadora e neo-liberal do PSD avaliámos positivamente, não sem que afirmássemos, como aliás continuamos a fazer, que o governo continuou como continua a ceder aos grandes interesses que disputam e absorvem o grosso dos recursos públicos disponibilizados para o sector.

Que o Governo claudica perante as multinacionais dos medicamentos e dos equipamentos, a área das convenções, e os grandes grupos económicos empenhados na privatização da saúde.

Que o governo em vez de privilegiar os interesses dos utentes tem deixado alastrar a promiscuidade entre o sector público e o privado que mina o Serviço Nacional de Saúde.

Ao contrário de outros, dizemos hoje o que sempre dissemos.

Na mesma entrevista a Sra. Ministra utiliza um estilo inaceitável ao proferir insinuações que não fundamenta e que pretendem envolver alguns não nomeados militantes do PCP. É uma conduta inaceitável que repudiamos veementemente exigindo a sua imediata clarificação.

Sr. Presidente
Srs. Deputados

Numa coisa a Sra. Ministra tem razão: o PCP tem ideias bem definidas para a saúde. E sabe que os problemas que existem não são inevitáveis. E tem soluções para eles.

Por isso exigimos a rápida recuperação das listas de espera para cirurgias e também para consultas de especialidade, de acordo com os princípios da lei, isto é, aproveitando e aumentando a capacidade de resposta das unidades públicas.

Por isso apresentaremos propostas sobre a gestão pública dos serviços de saúde em que as direcções das unidades de saúde sejam escolhidas por concurso e em que se dê prioridade à articulação entre os vários serviços e à participação das populações e dos profissionais na gestão, acabando-se com obstáculos burocráticos a uma gestão mais eficaz.

Por isso defendemos o aumento das vagas no ensino superior na formação de profissionais de saúde, e em simultâneo o fim do congelamento das vagas nos lugares de quadro das instituições.

Por isso defendemos a prescrição pelo princípio activo e a dispensa gratuita nas consultas externas e em determinados casos nas urgências dos medicamentos que sejam menos onerosos para o Estado se comprados directamente e disponibilizados aos utentes nestas condições do que suportando as comparticipações do circuito comercial.

Por isso exigimos uma política que ponha fim à promiscuidade entre a prestação pública e a privada e que afronte os interesses económicos que parasitam o SNS e que levam uma larga fatia do seu orçamento.

Assim e só assim se defenderá o Serviço Nacional de Saúde e o direito à saúde dos portugueses.

Disse.