3ª Assembleia do Sector Intelectual de Lisboa do PCP
Intervenção de Carlos Carvalhas
30 de Maio de 1998
Quero começar por vos saudar e ao mesmo tempo sublinhar a importância da vossa
intervenção para o reforço do nosso Partido e a construção da alternativa.
O balanço político do vosso trabalho, o debate sobre as grandes orientações
estratégicas são importantes contributos para a iniciativa e a reflexão do Partido.
Penso também que são de grande importância para se concretizar o "novo impulso"
na organização, intervenção e afirmação política do Partido as orientações que
definiram para uma maior participação na luta política das ideias; para o desenvolvimento
da luta social e a dinamização de movimentos e organizações intelectuais; para
uma intervenção decisiva nas Universidades e para o reforço da organização e
a influência do PCP entre os intelectuais.
Mas para que esse reforço se verifique e tal como se afirma na "Declaração"
desta Assembleia, "o PCP, cuja identidade histórica, socio-política e Cultural,
passa justamente também pela integração de intelectuais, precisa da elevação
do contributo dos seus intelectuais, enquanto intelectuais, para a construção
colectiva das suas respostas aos problemas do país, para a configuração do seu
projecto de esquerda e de alternativa democrática e revolucionária. O Partido,
todos nós, precisamos de elevar e agilizar as nossas formas de trabalho com
os intelectuais comunistas e com todos aqueles outros que estão ou podem vir
a estar connosco, ou a convergir connosco.
Não somos um partido de propagandistas ou de pregadores, somos um Partido que
organiza e ajuda a organizar, um Partido que trabalha, que luta e projecta uma
sociedade mais livre, mais justa e mais fraterna, o socialismo. Um Partido que
transporta consigo um inquebrantável e renovado compromisso de luta por grandes
causas, que vêm de muito longe na história, que se reconfiguram e confluem com
novas aspirações".
E esta luta encontra hoje pela frente uma grande ofensiva ideológica e uma grande
ofensiva contra os salários e direitos dos trabalhadores.
Como se afirma no projecto da Resolução Política deste sector "o mercado capitalista,
e mais genérica e efectivamente o sistema capitalista, são apresentados como
uma fatalidade natural, como o estádio final da evolução social, ou o máximo
da racionalidade na organização social do viver humano. Ganha assim uma renovada
urgência a reactualização da crítica de Marx aos efeitos de naturalização (e
de legitimação política, ideológica e teórica) do capitalismo pela economia
política burguesa. A legitimação totalitária do capitalismo pelo neo-liberalismo
representa, de facto, uma redução da razão humana e da racionalidade social;
busca impedir o questionamento sobre o primado da maximização do lucro; esconde
o carácter estrutural da polarização da riqueza e da pobreza; bloqueia a formação
das perguntas e a elaboração das respostas sobre os valores projectados e as
finalidades da acção humana; procura limitar de forma intolerável a capacidade
de os agentes humanos, agindo em determinadas condições históricas, transformarem
essas próprias condições e as suas formas sociais de vida".
Os resultados das leis cegas e incontroláveis do mercado e da mundialização
estão à vista.
E no entanto sabe-se, por exemplo, que as somas monetárias resultantes da aplicação
da conhecida taxa Tobin às transacções de capitais dariam para resolver as principais
carências básicas das populações carenciadas do Terceiro Mundo, e que, com apenas
3% dos 800 milhares de milhão de dólares investidos actualmente em despesas
militares, se resolveria o acesso universal aos serviços essenciais de saúde
que é de 25 milhares de milhão de dólares por ano, segundo as estimativas das
Nações Unidas.
Vivemos numa época em que se verificam grandes avanços científicos e técnicos,
que não são acompanhados pelo progresso social de milhões e milhões de seres
humanos. Pelo contrário, assistimos até a regressões sociais e à ofensiva contra
conquistas e direitos que muitos julgavam irreversíveis.
Olhando então para a evolução do mundo, para estas realidades e para a hipocrisia
daqueles que criticam estas situações, mas que omitem ou são coniventes com
as causas é fácil compreender o porquê de ser-se comunista hoje. O porquê
da actualidade e da validade do projecto de construção de uma nova sociedade
e da necessidade, mais do que nunca, da existência de Partidos Comunistas que
com ou sem esta designação lutem pela libertação do ser humano da exploração,
da opressão e da alienação. E tudo isto tendo em conta, por um lado, as graves
responsabilidades históricas da social democracia, os seus fracassos e a sua
política actual, que no essencial tem adoptado as medidas e as orientações neoliberais,
embora com uma retórica diferente. E, por outro lado, os erros, tragédias e
derrotas verificadas na construção da sociedade socialista, que a desprestigiou
e retirou poder de atracção ao ideal comunista.
Mas para melhor compreendermos a situação actual creio que devemos prestar uma
maior atenção ao percurso da ofensiva ideológica e das suas consequências.
Nos últimos 25 anos, foi tecido no plano ideológico e prático duas grandes armadilhas,
embora de natureza diferente: "a armadilha da dívida externa" já muito tratada
e que foi inclusivamente, título de um interessante livro e a armadilha da "mundialização"
ou globalização, segundo a cultura anglo-saxónica.
A armadilha da dívida externa funcionou pela atracção exercida pela oferta de
capitais a juros baixos e a taxas cambiais favoráveis o que levou muitos países
a contraírem elevadas dívidas. Mas como são os países credores que determinam
e que podem mudar as condições e a sua política monetária e cambial, aquelas
evoluíram para taxas de juro elevadas e taxas de câmbio desfavoráveis o que
aliado à troca desigual inflacionou monstruosamente a dívida que se traduziu
num garrote para muitos países que ficaram dependentes da tutela permanente
do FMI e sem saídas e que ainda hoje são constrangimentos pesados a qualquer
tentativa de desenvolvimento. De tal maneira, que os pagamentos dos serviços
de dívida exigidos pelos credores são de longe superiores à chamada ajuda internacional
e aos novos empréstimos.
Como já alguém disse, é o mundo virado ao contrário. As nações mais desmunidas
fornecem "ajuda" aos mais ricos através da "transferência líquida de recursos",
financiando o investimento e o crescimento do "Norte" em detrimento do "Sul".
Quanto à "globalização" partindo-se de factos reais, do desenvolvimento das
tecnologias da informação e de que, nos mais diversos pontos do planeta encontramos
os mesmos anúncios, a mesma moda, os mesmos produtos, as mesmas séries de televisão,
os mesmos automóveis, bem como a presença de multinacionais mastodontes, com
peso económico e financeiro superior ao de muitos países, passou-se à difusão
da ideia que o papel dos Estados e das nações na defesa dos povos é praticamente
nulo. E daqui passou-se à argumentação de que são necessárias instituições supranacionais
de carácter político para regulamentarem as manifestações da economia global.
Sem se deixar de ter em conta as limitações hoje impostas aos Estados e sem
menosprezar a importância que estas instâncias podiam e podem vir a ter, a verdade
é que na actual correlação de forças e tal como funcionam elas são em geral
dominadas pelo grande capital internacional, pelas grandes potências, como acontece
com a integração europeia. Distantes dos povos, sem controlo democrático efectivo,
estas instituições, como é o caso da Comissão e do Conselho da União Europeia,
actuam e pressionam não no sentido da cooperação e da coesão económica e social,
mas no sentido da desregulamentação e da liberalização.
As grandes potências e o grande capital internacional fizeram uma grande pressão
para a liberdade de circulação de capitais, para a liberdade do comércio, tudo
em nome do desenvolvimento e da criação de empregos, para depois virem mostrar
que o papel dos Estados numa economia global é cada vez menor porque não controlam
os fluxos de dinheiro, da informação e das mercadorias. E partindo desta constatação,
defendem muitas vezes com ardilosa argumentação, na prática, ainda mais desregulamentação
e menores poderes dos Estados como é o caso do famoso Acordo Multilateral de
Investimentos (AMI), para através de instâncias supranacionais imporem aos trabalhadores
e aos povos, mais submissão e exploração. É o ciclo da dominação.
A pressão para a liberdade de comércio mundial vai no mesmo sentido. Os países
não são postos em pé de igualdade. Os Estados Unidos, campeões do livre cambismo
em teoria, são na prática um dos países mais proteccionistas do mundo. Abrem
as portas aos produtos produzidos pelas suas empresas (normalmente bens de consumo
e indústria ligeira, que exijam muita mão-de-obra) localizadas em países de
periferia de mão de obra barata e fecham-nos à concorrência de produtos de alta
tecnologia, que concorram directamente aos que produzem no país. É um livre
cambismo tipo "lei do funil". O mesmo se passa, embora em menor grau, com a
União Europeia, que é muito liberal com os têxteis, o calçado, produtos agrícolas
tropicais, para ser fortaleza quando toca nas actividades produtivas de interesse
dos grandes grupos económicos que comandam a integração.
Por detrás do "tudo à liberalização" e ao mercado está o objectivo de hegemonia,
da imposição da lei do mais forte, da submissão e aniquilação do mais fraco.
A produção de empresas com influência americana realizada fora do território
dos EUA representa mais de 25% do PIB americano. Esta percentagem é de 10 a
15% para a Europa e de 6% para o Japão. Os EUA, controlam o mercado mundial
do petróleo, têm uma forte influência no dos produtos alimentares e dominam
o mercado das chamadas "indústrias do século XXI": as multimédias, as indústrias
culturais, as actividades ligadas à "sociedade de informação e comunicação".
A concentração da riqueza acentuou-se fortemente. A desregulamentação em grande
escala permite aos fluxos de capitais deslocarem-se à velocidade da luz permitindo
fantásticos ganhos especulativos, à custa dos povos. Foi a aceleração da chamada
economia de casino. Depois da ofensiva neoliberal destes últimos dezoito anos,
é já hoje mais claro para muitos a quem tem servido e a quem serve o neoliberalismo.
Confrontados com as crises e com os colapsos bolsistas muitos são os que hoje
se interrogam sobre os prometidos efeitos positivos desta política de adaptação
à "economia global", quer nos países mais frágeis economicamente, quer nos países
mais desenvolvidos.
E no quadro da crescente acentuação das desigualdades vai aumentando também
o caldo de cultura dos integrismos, dos fundamentalismos e dos nacionalismos.
A degradação da democracia política e a acentuação das desigualdades e das injustiças
sociais e a angústia de uma existência precária alimenta todas as derivas irracionais,
a que há que juntar nas grandes metrópoles um urbanismo cinzento e isolacionista,
criando de facto verdadeiros ghettos, sobretudo de imigrantes. As explosões
de violência e a insegurança ligados a estas questões alimentam depois respostas
racistas e xenófobas.
O FMI, guardião dos interesses dos credores continua a oferecer o "bastão e
a cenoura" e a teorizar sobre a excelência das medidas que preconiza.
Mas não se conhece um único caso em que os ditos programas de "ajuntamento estrutural"
do FMI tenham tido algum sucesso brilhante. No entanto estes programas continuam
a ser apresentados como a melhor maneira de melhorar o nível de vida das populações.
Os dogmas monetaristas, a ortodoxia neoliberal e a propaganda continuam a esconder
os mecanismos que engendram a pobreza e a miséria. Servindo os grandes interesses,
o alto clero da religião liberal, solidamente ancorado nos seus dogmas, apesar
de contrariado pela dura realidade continua a proclamar que não há alternativa,
que não há outra política. Mas há. O pensamento dominante é o das classes dominantes.
Aquilo a que se denomina de "pensamento único". As "Bíblias" e as fórmulas neoliberais
são retomadas pelos mais variados escribas, universidades e grande imprensa,
como se estivéssemos perante uma verdade indiscutível e cristalina, enquanto
a acumulação se processa e os povos se afundam na miséria.
E apesar do "modelo" liberal estar desacreditado não quer dizer que a ofensiva
ideológica tenha diminuído e que os grandes senhores do dinheiro desistam da
sua sede do "mais lucro e mais poder".
A ofensiva contra os serviços públicos continua em marcha, mesmo depois dos
balanços desastrosos como é o caso do "modelo" anglo-saxónico, caracterizado
até num relatório da Comissão das Contas Públicas da Câmara dos Comuns, por
"desperdício", "fraude" e "corrupção". A privatização foi feita, como sempre,
em nome dos consumidores e com um "caderno de encargos"! É que o verdadeiro
problema não está na concorrência, pois os privados mal acedem à posse dos serviços
procuram de imediato limitá-la, subir os preços e realizar lucros. O problema
está nos critérios de gestão do serviço público, no seu controle e exigência
de eficácia pela penalização das respectivas administrações.
Em todo o lado, o que o "liberalismo" pretende é a realização com os mais diversos
disfarces do lucro e mais lucro para o grande capital nacional e internacional.
A liberalização é acompanhada de uma fantástica concentração e centralização
de capitais com as múltiplas reestruturações e os múltiplos escândalos.
Partindo-se assim de factos objectivos, procura-se fazer crer que a única saída
está na política neoliberal, na desregulamentação e na idolatria da competição.
Diminuir os "custos do trabalho", "desregulamentar", "flexibilizar" e melhorar
a "excelência de produtos" e a "competição" são as frases chave para o êxito
e a modernidade.
Como competir na economia global? Esta é uma questão central que é colocada
aos governos, aos empresários, aos sindicatos, aos trabalhadores. E colocado
assim o problema, na sua forma esquemática, a resposta vem depois: é necessário
desregulamentar, flexibilizar, diminuir os salários, num mundo cada vez mais
aberto e competitivo. Se o não fizermos dizem, teremos o encerramento de empresas
e com elas o desemprego, pelo que o dilema é: assalariados, ou aceitam trabalhar
mais e ganhar menos, com menos direitos ou então teremos ainda mais desemprego.
Só que a desregulamentação, a flexibilização e a diminuição dos salários reais
vai-se processando e com elas, em vez de emprego temos é aumento de desemprego.
A competitividade é assim difundida como a lei da selva, como estratégia militar,
como ideologia de guerra, como a necessidade de aniquilar o outro, antes que
ele nos aniquile.
Mas tudo isto que se vai arquitectando nos gabinetes, pelos tecnocratas e burocratas
bem pagos, tem encontrado e vai continuar a encontrar a resistência dos trabalhadores
e dos povos e vai mostrando a falência das soluções e a quem servem. É uma mundialização
contra o desenvolvimento humano, contra o ser humano, contra os direitos do
homem. As novas tecnologias que poderiam favorecer o desenvolvimento humano
servem de instrumento para a especulação, ao armamentismo, e servem de vectores
à guerra financeira entre as multinacionais dos três grandes pólos mundiais.
E é neste quadro que se produzem as crises e as crises financeiras que têm uma
repercussão no aparelho produtivo mais distanciado temporalmente do que no passado
devido às somas brutais que estão ligadas puramente às actividades especulativas.
Lembremos o caso do México, que é paradigmático, agora que se vive a "crise
asiática" e pelos acontecimentos de Chiapas e sua evolução.
Em 1982, Ronald Reagan interrompia as suas férias porque o México tinha entrado
em cessação de pagamentos e, como o Banco Continental Illionois estava ameaçado
de falência, o Presidente dos EUA, campeão do liberalismo, nacionalizava o sétimo
banco do país.
Era mais uma prova das tretas do chamado "Estado mínimo". O "Estado mínimo"
quando se trata de os grandes senhores do dinheiro esmagarem o mais fraco e
o Estado máximo e intervencionista quando é necessário a "ajuda em seu favor".
De novo, com grande pompa e circunstância a Assembleia Geral do FMI reunida
em Madrid em Setembro de 1994, apresentava o México como um "modelo" para o
Terceiro Mundo graças à aplicação das receitas liberais: privatizações, despedimento
de funcionários públicos, abertura do seu mercado interno, liquidação de uma
parte da sua dívida contra o património mineiro do País. Só o Chile de Pinochet,
aplicando o programa dos "boys" de Chicago de Milton Friedman, tinha ido tão
longe.
Mas umas semanas mais tarde o exemplo citado em Madrid, caía em ridículo. O
México declarava de novo, que não podia pagar os compromissos da dívida, o peso
era desvalorizado em cerca de 60%, a Banca dos EUA entrava em pânico e o país
devedor era submetido a vigilância económica e a severas e humilhantes condições
para receber uma nova "ajuda", uma nova intervenção em contrapartida dos seus
rendimentos petrolíferos.
O sistema com todas as fragilidades e a própria fragilidade do sistema financeiro
internacional, como se viu agora com a crise asiática, continua com as suas
contradições a produzir os seus resultados - polarização da riqueza e da pobreza
- pese embora, as palavras pias que aqui e ali, em tal ou tal instituição internacional,
ou cimeira mundial, vão ficando para alimentar uma esperança rapidamente contrariada
pelos factos. Ainda em Março de 1995 os 184 países reunidos em Copenhaga sob
a égide da ONU, na Cimeira Mundial para o desenvolvimento social tomava "o cumprimento
solene" de trabalhar pelo "desenvolvimento social no mundo inteiro". É o que
se tem visto.
A crise asiática é outro exemplo claro de um crescimento económico assente em
pés de barro. Os tigres asiáticos que nos eram apresentados como modelos afinal
não passam de gatinhos de estimação das transnacionais. E qual foi o remédio
para a crise? Os serviços financeiros serão liberalizados em setenta países
a partir de 1999 em virtude de um acordo designado por histórico no quadro da
OMC. Os países asiáticos que recusavam abrir totalmente o seu mercado interior,
acabaram por ceder às pressões americanas. Paradoxalmente a sua crise financeira
ligada em boa parte a uma liberalização financeira muito rápida, constrangiu-os
a aceitar ainda mais abertura... E isto apesar do economista chefe do banco
mundial, Joseph Stiglitz ter declarado recentemente em Manila que "a crise não
se teria dado se não tivesse havido uma liberalização das operações de capital
nas suas economias".
A "armadilha" da mundialização assentando em factos objectivos visa assim incutir
aos povos duas grandes ideias: a primeira é que os Estados só podem resistir
ao capital transnacional e à mundialização ou globalização através da submissão
a instituições internacionais que com se sabe na fase actual da correlação de
forças são elas próprias dominadas pelo grande capital e pelas grandes potências,
acelerando assim a dominação global.
A segunda é que num mundo global, numa concorrência mundial só ganha quem mais
desmantelar, flexibilizar, desregulamentar, ou seja, quem diminuir os custos
do trabalho, os direitos, quem reduza e continue a reduzir os salários reais
relativos, quem mais introduza a "lei da selva", a nova escravatura do trabalho
para que no Planeta reine o reino do capital...
Mas a caminho do século XXI está o homem condenado a tal regressão? Será este
caminho uma fatalidade? Será esta a modernidade? Será um avanço da humanidade
o entrar-se no século XXI com uma desigualdade de rendimentos sem precedentes,
com a maior miséria ao lado do luxo mais esplendoroso. Será um avanço da humanidade
entrar no século XXI com novas maravilhas da técnica e da ciência e ao mesmo
tempo com as mesmas chagas sociais do princípio do século?
Também no nosso país se pretende fazer crer que não há outras opções, que só
com uma política neoliberal se consegue eficácia na economia, que só os grupos
económicos privados podem produzir riqueza e criar emprego, que não há outro
caminho para a chamada construção europeia, que como nos revela o Terceiro Relatório
da Comissão sobre Protecção Social agora publicado conta agora com 57 milhões
de europeus vivendo abaixo do limiar da pobreza!
A primeira potência comercial mundial dá este exemplo magnífico de uma sociedade
solidária, fraterna, justa, respeitadora dos direitos humanos!
Os direitos do trabalho e os direitos dos trabalhadores reconhecidos nas Constituições
de muitos países tornaram-se para muitos jovens e para muitos trabalhadores
um privilégio inacessível. E esta é a sociedade que nos querem oferecer à beira
do século XXI, sempre em nome dos mercados, essa identidade dita abstracta acima
do ser humano, que não tem cartão de eleitor mas que nas sociedades actuais
nos querem fazer crer, que a eles se devem subordinar as escolhas e as decisões.
Os mercados responderam positivamente. Os mercados responderam negativamente...
Os mercados! Dirá qualquer Yuppie ou aparentado quando fala da economia ou de
um qualquer resultado eleitoral ou de um despedimento colectivo. Tudo se deve
e tudo tem que se subordinar aos mercados. Mas os mercados não são entidades
abstractas, têm nome, têm rosto e têm dono - são o capital financeiro, são a
banca, são as actividades especulativas e financeiras - capital financeiro que
tem poder, que domina ou tem participação e portanto influência nos grandes
meios de informação.
Como já alguém se interrogou e respondeu, somos nós manipulados, condicionados,
vigiados, num Estado de direito e numa sociedade dita de plena democracia? Sim.
O cidadão pode pensar que escolhe sempre pela sua própria cabeça. Pura ilusão!
Outras máquinas "discretas e subtis... condicionam os espíritos: os media, a
publicidade, as sondagens..." o que se diz em nome dos mercados.
Por isso quando se vê o governo de braço dado com a nata da nata do grande capital
e ex-ministros a fazerem parte dos corpos sociais de grandes empresas públicas
e privadas temos que dar razão aquele comentador que escrevia há dias que algumas
direcções políticas de alguns partidos bem podiam reunir no conselho de administração
de alguns grupos económicos. É uma vergonha. É uma vergonha para o Partido Socialista.
Estamos a assistir à reconstituição de um novo capitalismo monopolista de Estado
agora mais transnacional e com as características que lhe imprime a integração
europeia e a mundialização da economia. A submissão do poder político ao poder
dos grandes grupos económicos, cada um com o seu banco, a sua seguradora, a
sua cadeia de super-mercados e a sua influência nos meios de comunicação social,
é crescente.
Não deixa por isso de ser interessante que o PSD levante agora o problema dos
favores do aparelho de Estado a cada grupo económico, bem como a promiscuidade
de ex-membros do governo com os grandes senhores do dinheiro. É que o PSD fez
o mesmo. Mas o facto do PSD o ter feito não apaga a gravidade dos factos conhecidos.
No entanto, é bom lembrar que esta promiscuidade já vem de longe e em crescendo
como se pode ver pelos lugares ocupados por ex-membros dos governos do PSD e
por actuais dirigentes, em corpos sociais quer de empresas públicas, quer de
empresas privadas. Não vos vou maçar com nomeações mas deixo à imprensa alguns
exemplos significativos.
É que como afirmava um jornalista (Eduardo Dâmaso) no Público em 2/5/98: "mais
do que uma "direita dos interesses" favorecida, existe sobretudo um "bloco central
dos interesses", que, desde os anos 80, se tem perpetuado no poder, tanto à
sombra protectora do PS como do PSD".
Vamos ter nos próximos tempos a necessidade de uma intervenção exigente e empenhada.
Por um lado no plano da organização estamos a desenvolver um grande esforço
para levar à prática as resoluções do Comité Central de 14 e 15 de Fevereiro;
avançamos com a campanha pela melhoria e reforço da Segurança Social; com a
campanha sobre direitos dos trabalhadores; com os debates sobre Portugal 2000
e simultaneamente com uma intensa intervenção na Assembleia da República, no
movimento de massas e agora também na campanha pelo "Sim" à despenalização da
interrupção voluntária da gravidez.
Permitam-me camaradas que aqui faça um apelo para uma participação empenhada
neste referendo que não está ganho à partida.
O PS com a sua posição envergonhada de um "Nim" disfarçado e escondido por detrás
de Movimentos de Cidadãos tudo está a fazer para que praticamente não haja campanha.
Mas vemos por outro lado que os adeptos do "Não" estão com uma intensa intervenção
usando os argumentos mais falaciosos e por vezes da forma mais trauliteira e
retrógrada para que perdure o aborto clandestino.
Certamente que estais de acordo que o nosso Partido faça uma campanha serena,
digna, de esclarecimento e de convencimento, empenhada e que não se esconda
vergonhosamente por detrás de um "Nim" quando está em causa passar o aborto
clandestino que é a segunda causa de morte materna e a primeira causa de morte
materna de adolescentes para a esfera dos cuidados de saúde e do respectivo
apoio psicológico. O que se discute e vota é se queremos ou não acabar com a
actual pena de prisão até três anos para as mulheres que recorram ao aborto
e que passe a ser possível por decisão responsável da mulher em estabelecimento
de saúde legalmente autorizado.