Sessão Pública Em defesa de serviços públicos de qualidade
Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP
Coimbra, 13 de Março de 2006

Ao visitar um conjunto de escolas do 1º ciclo do ensino básico situadas no distrito de Viseu, escolas ameaçadas de encerramento já a partir do próximo ano lectivo, e o Centro de Saúde de Oliveira do Hospital aqui no distrito de Coimbra, cuja urgência está igualmente prevista encerrar, quis em nome do meu Partido manifestar a nossa solidariedade às populações que irão ser afectadas por estas medidas do Governo PS e transmitir-lhes a nossa disponibilidade para tudo fazermos no quadro da nossa intervenção partidária e institucional, para que o Governo recue nas suas decisões.

O que vimos e sentimos por parte das crianças que vão ver as suas escolas encerradas, escolas que se inserem no meio que é o seu, onde têm o seu espaço familiar, os seus amigos, o seu espaço de brincadeira, que se vêem agora confrontadas com a deslocação para outros lugares, por vezes para escolas em piores condições físicas e ao nível da qualidade dos equipamentos, obrigadas a fazerem deslocações de dezenas de quilómetros, ocupando desta forma uma parte do dia tão necessária para o convívio com os amigos e família, foi um ambiente de receio e de inquietação, apesar de serem crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos.

Da parte dos pais senti a angústia de quem está muito inseguro porque os seus filhos vão ser deslocados, por vezes em percursos com pouca segurança, e de quem sente que todas estas medidas, tomadas sem que tenham tido qualquer participação na decisão, não vão no sentido de favorecer o desenvolvimento dos seus filhos, não são tomadas para que o Estado cumpra as suas obrigações constitucionais, nomeadamente o de garantir a todos os portugueses a igualdade de oportunidades no acesso à educação e ao sucesso escolar, mas apenas para garantir a redução da despesa pública.

É mentira que sejam fundamentalmente razões de ordem pedagógica a determinar a medida de encerrar escolas, porque se assim fosse não teriam nenhum receio em discutir esta temática com a comunidade educativa e com as autarquias na base de um projecto global de reordenamento e requalificação do parque escolar em Portugal e muito menos tomariam decisões a régua e esquadro, a partir do mero levantamento estatístico das escolas com menos de 20 alunos.

Mas se não são razões de ordem economicista e uma clara opção por um sistema educativo, assente na tese muito do agrado dos neoliberais de “Menos Estado, melhor Estado” que transporta consigo a teoria de que ao Estado cumpre a obrigação de garantir o serviço público, seja ele garantido pela Administração Pública seja por privados, porque razão os mesmos princípios que determinaram estas opções face ao 1º Ciclo do Básico se estendem também aos Jardins de infância frequentados por crianças com idades compreendidas entre os 3 e os 5 anos de idade?

Se dúvidas existissem bastava citar um artigo de opinião do responsável pela Direcção Regional de Educação do Centro, quando afirma que «em Portugal a privatização das escolas é um assunto quase tabu» e que «para muitos portugueses, ganhar dinheiro com a educação não é visto como uma actividade nobre» para terminar o seu artigo defendendo que «onde houver condições, a concorrencialidade entre escolas só pode ser saudável. Os estabelecimentos de ensino privados organizam-se numa lógica de prestação de serviços educativos à medida das necessidades das famílias, enquanto as estatais se limitam, em regra, apenas aos conteúdos curriculares, faltando-lhes um modelo de funcionamento que em vez de colocar a tónica na oferta se preocupe com a procura. E isto faz toda a diferença.» Fim de citação.

Não estão em causa as medidas necessárias de reordenamento e requalificação do parque escolar, tal como o PCP tem defendido ao longo dos anos, mas esse é um processo que se quer participado pela comunidade educativa, pelas autarquias locais e também pelas populações, para quem em muitos casos a escola é o único pólo cultural da sua freguesia.

Desenganem-se aqueles que pensam que estamos apenas perante uma manifestação de incompetência da equipa ministerial. A decisão de encerrar 4500 escolas do 1º Ciclo do Básico e centenas de Jardins de Infância até ao final da legislatura, uma parte significativa já a partir do final do corrente ano lectivo, é uma opção há muito delineada, que se caracteriza por orientar a educação e o ensino no nosso país no sentido da formação do indivíduo de acordo com os interesses do mercado de trabalho, em prejuízo de uma formação integral que prepare os jovens não apenas para a vida activa, mas também para uma intervenção consciente na vida política, social e cultural.

Não sendo uma decisão que apenas afectará escolas do interior do país, as propostas de encerramento concentram-se sobretudo em regiões onde a desertificação humana é já hoje muito acentuada e, por isso, devia ter em conta uma experiência muito rica no trabalho com as escolas no mundo rural. É um trabalho que não pode ser desperdiçado porque desenvolve uma dimensão inovadora, nomeadamente o facto de fazerem instrução sob modelos de participação e cidadania muito interessantes.

Também na visita que efectuei ao Centro de Saúde de Oliveira do Hospital senti, da parte dos profissionais de saúde e dos utentes, uma grande preocupação e revolta de quem sente que no futuro próximo vai sofrer as consequências desta medida, ao ter que se deslocar cerca de 100Km até Coimbra, em condições de saúde que não pode ser o utente a avaliar e por ventura sem tempo para poder solucionar de forma eficaz os seus problemas.

A política de concentração dos serviços de urgência, que procura fundamentalmente resolver o problema da falta de médicos e enfermeiros nos cuidados de saúde primários, não pode ser desligada da incapacidade de tomar atempadamente as medidas necessárias na área da formação de novos profissionais.

Enquanto há 12 anos existia 1 médico de família para 2 hospitalares, hoje caminha-se para uma proporção a passo acelerado de 1 médico de família para 4 médicos hospitalares, revelando uma tendência contrária às orientações da OMS. Já nos enfermeiros e só considerando a falta destes profissionais nos cuidados primários, o país tem um défice de 12.700.

Mas, seria um erro fazer-se a avaliação destas medidas desinseridas do contexto mais geral da intensa ofensiva contra o Serviço Nacional de Saúde, geral, universal e tendencialmente gratuito, como está inscrito na Constituição da República Portuguesa, de que as notícias sobre a proposta de encerramento de uma dezena de maternidades, algumas aqui na Região Centro, são mais um exemplo.

Tal como está a acontecer no sector da educação, o Governo PS aposta nesta área num modelo que assenta em dois pilares fundamentais: a privatização de importantes sectores e serviços de saúde e a adopção do principio do utilizador/ pagador.

A situação de ruptura que se vive hoje neste sector é da responsabilidade dos últimos governos do PSD/CDS-PP e do actual governo e das políticas deliberadamente orientadas para a mercantilização da saúde e de privatização de serviços, assente na desresponsabilização do Estado e do seu dever de assegurar o direito à saúde, transferindo para os utentes o pagamento de uma parte substancial das despesas com saúde.

Tal como temos vindo a denunciar, Portugal é hoje um dos países com menor investimento público neste sector, em que mais de 30% das despesas são pagas directamente pelas famílias, quando a média europeia se situa abaixo dos 20%. Em 2003 cada português já pagava em média 500 euros por ano, para além do que pagava nos impostos, o que significa que num agregado familiar de 3 pessoas, os custos suportados por essas famílias são em média de 1.500 euros ano. Só a título de exemplo na Suécia e Luxemburgo os custos suportados pelas famílias são de 14,6% face ao total dos custos com a saúde e na Dinamarca 17,1%.

Situação que se agravará com o recente decisão de aumentar as taxas moderadoras, que cinicamente é apresentada como uma medida para moderar a procura dos serviços e não para financiar o SNS, quando a medida representa um crescimento de mais 3,6 milhões de euros nos ganhos adicionais previstos no Orçamento de Estado para 2006, que é de 43 milhões de euros.

Entre as várias tarefas fundamentais do Estado consagradas na Constituição da República está a de «promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais».

Direitos que só serão garantidos se o Estado tomar a seu cargo um conjunto de serviços públicos básicos como os transportes públicos, o abastecimento de água, o acesso ao saneamento básico, o serviço postal, as telecomunicações, bem como um conjunto de serviços que garantem importantes direitos sociais e económicos, como os que estão constitucionalmente consagrados nas áreas da saúde, da educação, da cultura e da segurança social, independentemente das condições económicas, sociais e da região onde vivam.

A entrega à iniciativa privada, com o argumento de que esta gere com maior eficiência e com menores custos, de importantes serviços públicos, ao contrário do que os defensores das teses neoliberais defendem não garante a igualdade, a universalidade e a continuidade e portanto não garante as responsabilidades do Estado consagradas constitucionalmente.

As políticas de redução e desintervenção do Estado, assente na lógica do “Estado mínimo”, que tem varrido o espaço europeu nas últimas duas décadas, levou a que sectores submetidos ao regime de serviço público fossem abertos à iniciativa privada, com todas as consequências para os utentes que a liberalização destes serviços trouxe na relação qualidade/custo.

O desmantelamento e posterior entrega aos privados, em parte ou no todo, de importantes serviços públicos assegurados pela Administração Pública, traduzir-se-á em graves consequências sociais para a esmagadora maioria da população, atingirá interesses e direitos dos trabalhadores da Administração Pública e contribuirá igualmente para o desfiguramento do regime democrático e para a completa subversão dos princípios constitucionais, que estabelecem como obrigações do Estado, a prossecução do interesse público como função da Administração Pública e a promoção da política económica, social e cultural, pondo em causa princípios constitucionalmente consagrados como o da justiça social, igualdade na garantia de serviços essenciais ou de solidariedade.

Esta “diabolização” da Administração Pública que temos vindo a assistir, responsabilizando-a por tudo o que de mal existe em Portugal, mais não visa do que criar no país um clima propício à liberalização destes serviços e ao corte de direitos e regalias dos seus trabalhadores.

Durante meses a fio procurou-se criar na opinião pública a ideia de que todos os males da nossa economia estavam na “pesada máquina do Estado”, no excesso de trabalhadores e que estes eram uma “casta de privilegiados”. Nada mais falso. Aliás, sobre esta matéria a vida tem revelado os verdadeiros objectivos da campanha, quando vai ficando cada vez mais claro que o que se pretende é o nivelamento por baixo dos direitos e regalias de todos os trabalhadores portugueses e a desvalorização do vínculo público.

O Governo de Sócrates e o Partido Socialista protagonizam, agora, uma ofensiva que abrange todos os sectores da Administração Pública e todas as funções sociais do Estado e ficam, por via desta ofensiva em curso, ligados à destruição de uma das mais importantes conquistas da Revolução de Abril que foi o reconhecimento constitucional de um conjunto de direitos sociais como o direito à saúde, através de um SNS geral, universal e gratuito, à segurança social que apoiasse os portugueses na doença, no desemprego, na velhice e na invalidez, entre outros. Direitos que foram acompanhados da implementação de um forte sector público fundamental para o desenvolvimento do País e para a defesa da nossa independência nacional.

Podemos mesmo afirmar que nos últimos anos o traço mais marcante da política de direita, com ou sem o PS no Governo, foi sem dúvida o ataque aos direitos sociais dos trabalhadores e do povo com destaque para a ofensiva contra os trabalhadores da Administração Pública e os serviços públicos considerados essenciais, como a saúde, a educação, a segurança social, mas também nos transportes públicos, no apoio judicial, na segurança, entre muitos outros considerados de primeira necessidade.

Também nesta matéria, a Constituição da República tem sido letra morta para os sucessivos governos que, a pretexto da Integração Europeia e do Pacto de Estabilidade e Crescimento e particularmente neste último ano, do obsessivo combate ao défice das contas públicas, optaram pela privatização de parte importante de serviços que garantem as Funções Sociais do Estado e a mercantilização de importantes direitos como acontece na saúde e na educação.

As consequências estão à vista: encerram escolas porque têm poucos alunos; encerram urgências porque têm poucos doentes; encerram maternidades porque fazem menos de 1.500 partos por ano; eliminam carreiras de transportes públicos porque não dão lucro; transferem-se serviços de atendimento das populações para localidades a dezenas de quilómetros porque são poucos os utentes e agora até se defende a eliminação de freguesias através de um processo de integração. Não faltará muito tempo para que o Governo venha propor o encerramento do interior do país, porque está cada vez mais desertificado.

Medidas que se traduzem, maior parte dos casos, não só na redução da qualidade dos serviços como fazem recair sobre os utentes dos serviços públicos custos cada vez mais incomportáveis, colocando os portugueses como os que mais pagam na generalidade dos países europeus.

Mas, se dúvidas pudessem ainda existir sobre a verdadeira natureza destas políticas, aí estão os lucros das empresas que asseguram hoje a generalidade destes serviços a esclarecê-las. Na maior parte dos casos os lucros obtidos são os maiores de sempre, como aconteceu com a EDP, que na mesma altura que anunciava os resultados líquidos de 2005 avisou que vai ser necessário aumentar substancialmente as tarifas domésticas nos próximos anos, ou a PT que em 2005 anunciou os maiores lucros de sempre e na mesma conferência de imprensa em que anunciava os resultados, o seu Presidente anunciava o despedimento de mais 1000 trabalhadores nos anos seguintes.

É inequívoco que para além de injusto, estamos perante um modelo de desenvolvimento económico e social profundamente desumano.

A dignificação humana atinge-se hoje e no futuro fundamentalmente com a garantia de altos níveis de justiça, igualdade e solidariedade e, para isso, é fundamental a regulação e a intervenção do Estado, não como um instrumento ao serviço dos interesses de classe do grande capital nacional e transnacional, e em especial na recomposição de grandes grupos económicos privados, mas como garantia de reforço das políticas sociais num quadro de mais investimento e mais crescimento, para garantir um mais elevado nível de vida às populações e serviços de qualidade a todos os cidadãos.