Uma questão de mensagens

Artigo de Octávio Teixeira no "Diário Económico"

4 de Junho de 2002

 

Segundo rezam algumas crónicas, no interior do Governo e do PSD começa a viver-se alguma preocupação porque sentem que a mensagem não está a passar”. Do meu ponto de vista, estão a ver o filme ao contrário ou, melhor, estão a cair no autismo que normalmente atinge os que ascendem ao poder.

O que começa a suscitar reacções populares à política governativa é, inversamente, o facto de os portugueses estarem a perceber perfeitamente que a mensagem do Governo, implícita nas suas iniciativas e acções políticas, é a de um forte “apertar de cinto”, em especial para os que vivem do seu trabalho.

É a compreensão crescente de que o Governo não tem vontade nem capacidade políticas para resolver de forma sustentada os problemas estruturais que afectam a economia, e que se encaminha no sentido de reincidir na procura de remendos de curto prazo. Que conjunturalmente disfarçam dificuldades e insuficiências, mas que estruturalmente deixam tudo como está (ou ainda pior) à espera de novo reacender da(s) crise(s).

É a percepção de que o Governo elegeu como orientação essencial das suas políticas o sacrifício dos trabalhadores, que a sua mensagem inequívoca é a de fazer pagar a pesada factura da sua política de remendos, integral e exclusivamente, aos trabalhadores. O grande empresariado não só nada pagará como ainda haverá de lucrar pela via da privatização de serviços públicos. Sejam estes os de televisão e rádio, ou no âmbito da saúde e da segurança social.

É uma evidência que o maior problema actual da economia portuguesa é o do insustentável desequilíbrio das balanças externas. E que esses desequilíbrios têm de ser reduzidos. Mas numa perspectiva estrutural, que não meramente conjuntural.

Reincidir na panaceia do “apertar do cinto”, da clássica receita do FMI, actuando pela via da redução da procura com o congelamento ou redução dos salários reais e com o aumento dos despedimentos e do desemprego, significa repetir erros cometidos num passado não muito distante. É apenas, como a experiência o tem demonstrado, folgar as costas enquanto o pau vai e vem. Porque daqui a uns anos, não muito longos, aí teremos o regresso dos défices externos excessivos, acelerado e agravados com o fim dos fundos estruturais e com o alargamento da União Europeia a leste.

A correcção desses défices, necessária e cada vez mais urgente, exige basicamente uma intervenção decidida e corajosa pelo lado da oferta. O calcanhar de Aquiles da economia doméstica, a causa básica dos défices externos e da baixa competitividade da produção nacional, é indubitavelmente o nível de produtividade. É aí que urge actuar. A começar pelo Estado, investindo nos factores que, sendo da sua área de responsabilidade, maior efeito podem ter no crescimento acelerado da produtividade. Mas também através de políticas económicas e de gestão de subsídios e apoios que pressionem as empresas a investir em aumentos de eficiência produtiva, que possibilitem maior competitividade económica e melhores salários. Mas quanto a isso o Governo diz, e faz, nada. É uma demonstração da inépcia política do Governo, da sua cedência ao mais fácil para não ter de se confrontar com as tarefas difíceis.

Para além do problema nodal dos défices externos e da produtividade, existe conjunturalmente o problema político (que não económico, como já aqui o mostrei, em 19 de Fevereiro) dos compromissos assumidos quanto ao défice orçamental. Esquecendo, por ora, a via da possibilidade/necessidade de renegociar aqueles compromissos políticos, também aqui a terapêutica prescrita pelo Governo é errada. Privilegia a redução do o défice pela via da diminuição real dos salários dos trabalhadores da administração pública e do despedimento de dezenas de milhar desses trabalhadores, mostrando completa insensibilidade aos problemas sociais. E no âmbito da redução de outras despesas, como o orçamento rectificativo o comprova, a sua opção é pelo corte nas despesas de investimento. Mas, para além dos erros, é uma evidência que a opção do Governo é de índole marcadamente ideológica, visando beneficiar interesses bem específicos. Se o Governo entende cumprir os compromissos assumidos no pacto de estabilidade, deveria ter em consideração que a redução do défice pode ser feita, essencialmente, pela via da receita. Não com um aumento dos impostos, mas pelo alargamento da base tributária. Porém, o Governo tem feito tudo ao contrário.

Aumentou o IVA, que basicamente é pago pela generalidade das famílias trabalhadoras, e alargou as benesses fiscais ao empresariado. Abdicou, perante o sistema bancário, do controlo fiscal das operações realizadas nos “off-shore”. Em termos práticos, reduzindo em 20% a taxa de IRC aplicável às instituições bancárias, independentemente dos lucros serem imputáveis à sua actividade geral ou à actividade nas zonas francas! Idêntico benefício para as empresas exportadoras foi agora anunciado pelo Primeiro-Ministro. Aparentemente, sem quaisquer exigências quanto ao valor acrescentado dessas exportações. Abrindo, assim, nova porta à redução da base tributária: as empresas poderão passar a fazer importações para imediata e integral reexportação, apenas com o objectivo de fazer vantajosos planeamentos fiscais. E, para coroar esta política de despudor, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais recomenda à Administração Fiscal que não faça as correcções reais às declarações dos contribuintes faltosos, quando tais correcções são de montante elevado, antes com eles as negoceie!

Na verdade, a mensagem do Governo é nítida e está a passar. Mas não está a ser aceite. E não pode nem deve ser aceite. Porque é a mensagem da imolação dos direitos e interesses dos trabalhadores, da aversão não disfarçada que o Governo nutre pelos que trabalham. E porque é a mensagem do primado do negocismo na acção governativa, da concessão sem escrúpulos de benefícios aos possidentes, da submissão do interesse nacional aos interesses egoístas de alguns poucos.