Interpelação ao Governo centrada nas condições de prestação e o acesso aos serviços públicos essenciais
Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia da República
19 de Abril de 2006

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Em 24 de Maio de 2001 afirmámos no encerramento de uma interpelação ao Governo sobre o Estado dos serviços públicos em Portugal:

“O Governo falou hoje muito sobre o conceito de Estado moderno. Mas, infelizmente, o conceito de Estado moderno subjacente às teses do Governo é a de um Estado que assume e promove a desresponsabilização e a diminuição das políticas públicas em matérias de interesse básico para os cidadãos. E esse não é um Estado moderno. É um Estado que assume o que de pior têm as teses neo-liberais de mercado.”

O Governo é hoje novamente do PS e curiosamente este discurso do Estado moderno é recorrente nas grandes operações de propaganda que de vez em quando são organizadas para anunciar chusmas de medidas que prometem a imediata modernização do Estado e vida melhor e mais fácil para todos.

Por isso julgamos ter sido acertada a marcação desta interpelação ao Governo sobre a situação dos serviços públicos em Portugal. Sobre a situação real e concreta. Sobre o país que não cabe nas salas de propaganda do Governo mas que sente as consequências concretas da sua política.
Quisemos fazer esta interpelação assente no contacto com os problemas concretos, com as populações e seus representantes. E temos de concluir que, 5 anos depois, os problemas que denunciámos em debate semelhante se diversificaram e ampliaram.

As políticas de sucessivos governos e especialmente do actual constituem uma verdadeira operação pública de aniquilação dos serviços públicos, uma OPA aos serviços públicos em Portugal. A propaganda não resiste à dura prova da realidade. Por todo o país estamos a assistir como nunca ao desaparecimento, limitação e degradação profunda dos serviços públicos a que a população tem direito.

Os serviços públicos foram sujeitos a severas linhas de ataque com vista ao seu enfraquecimento, quer para deixarem de garantir direitos essenciais às populações, quer para cada vez mais deixar o campo livre ao sector privado criando e agravando desigualdades entre territórios e populações.

Desde logo um severo processo de subfinanciamento e ausência de recursos e de investimento, agravado com a absurda obsessão do défice, que deixou muitos serviços na mais absoluta paralisia e degradação.

Depois um ataque aos trabalhadores da administração pública e aos seus direitos, com consequências profundas na sua degradação, a par de ataques semelhantes nas empresas que prestam serviços públicos. Com a extrema precariedade dos trabalhadores degradam-se as condições de prestação de serviços públicos.

Por outro lado uma política de forte concentração e encerramento de serviços, sempre justificada como racionalização mas que mais não é do que contenção forçada de recursos e afastamento dos serviços das populações.

Finalmente uma forte linha de privatização, seja de empresas antes públicas ou ainda públicas prestadoras de serviços essenciais, seja agora com a própria privatização da administração pública, eufemisticamente chamada de externalização.


A preparação desta interpelação reflecte bem como no PCP entendemos o exercício do mandato de Deputados. Foi uma preparação de proximidade com inúmeros encontros, visitas, contactos com populações e instituições, na busca de uma visão o mais aproximada possível da realidade concreta. Não precisamos de nenhuma lei eleitoral para a aproximação dos eleitos aos eleitores; essa é a nossa prática corrente. Trazemos hoje o país portas adentro do parlamento.

Uma das realidades concretas que encontrámos foi a das consequências das privatizações de serviços públicos, as já feitas e as que estão em preparação.

Vejamos o caso da EDP. Com a privatização a EDP passou a ter um único objectivo. Garantir os lucros dos accionistas. Assim os trabalhadores da empresa foram reduzidos a metade, com evidentes consequências na qualidade e na segurança do serviço prestado. Há casos de dois trabalhadores de piquete de urgência para 6 concelhos. Os balcões comerciais e instalações técnicas da empresa foram praticamente exterminados no território nacional. Hoje 216 concelhos, onde existem mais de 2 300 000 consumidores não têm qualquer instalação da EDP, estando na maioria dos distritos, a representação da empresa circunscrita à capital de distrito. Entretanto a empresa teve no ano passado o lucro recorde de 1071 milhões de euros e no entanto prevê aplicar em 2006 um aumento de 15 ou 16% para os consumidores domésticos, com o impulso do Governo que entendeu retirar o condicionamento da inflação na formação dos preços. O Grupo EDP investe hoje méis no estrangeiro do que em Portugal. Aliás a própria entidade reguladora tem autorizado que inúmeros encargos da empresa sejam reflectidos na factura dos consumidores. Chegámos ao cúmulo de as indemnizações pelo despedimento e 1500 trabalhadores serem, com autorização da ERSE, pagas pelos consumidores. Aliás a ERSE aplica um regulamento de qualidade à empresa que, pasme-se é menos exigente do que aquele que a própria empresa anteriormente tinha internamente. Assim se prova que a única regulação que dá garantias, não é a de entidades independentes mas coniventes com as lógicas de mercado, mas sim a da manutenção de uma forte capacidade de prestação pública.

Vejamos igualmente o que se passa já com a privatização da água, disfarçada de concessão da distribuição, ou de forma mais atrevida, privatização em sentido material. Por esse país fora multiplicam-se os aumentos brutais, como os 134% em Alenquer ou os 146% na Figueira da Foz, generalizando-se em todo o país o pagamento de taxas de disponibilidade ou com qualquer outro nome que disfarçam cobranças ilegais, mas que curiosamente o Peaasar II propõe que passem a cobrar-se.

Nos transportes rodoviários, depois da promessa de que com a privatização da Rodoviária Nacional as carreiras não seriam diminuídas, o que vemos hoje é a redução da rede de transportes ao que é garantidamente lucrativo, deixando milhares de localidades sem qualquer transporte colectivo.
Nos Correios estão bem à vista os preparativos da privatização, com uma redução absurda do pessoal, a concentração galopante dos postos e estações e o abandono da prioridade ao serviço postal. No distrito da Guarda a maioria dos concelhos estão reduzidos a ter estação de correios apenas na sede de concelho. Por esse país for deixou em muitos sítios de haver distribuição diária do correio como é obrigação do serviço postal, passando a ser de dois em dois ou de três em três dias. É o que acontece por exemplo nas freguesias do Piódão e de Vide em que a redução dos carteiros de dois para um a isso obriga.

De tudo isto se conclui que as privatizações na área dos serviços públicos tiveram como consequência a degradação, o encarecimento e a diminuição dos serviços públicos. É o carácter público da prestação destes serviços que garante que os direitos das populações e não o lucro estão em primeiro lugar.

Na preparação desta interpelação encontrámos uma forte contestação das populações às medidas anunciadas de encerramento de unidades de saúde ou de limitação dos seus horários.

Recebemos por exemplo uma moção da Câmara Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo que diz:

“ …. Encontramo-nos a 70 quilómetros da Sede do Distrito, a cerca de 1 hora de distância do centro hospitalar mais próximo, se tivermos como ponto de partida a sede do concelho, porque se tivermos ao invés de partir um lugar no estremo norte do nossos concelho, Barca de Alva, essa distância e esse tempo aumenta para 90 quilómetros e 1 hora e trinta minutos … levando a que a urgência nessa povoação só pudesse ser socorrida dentro de, estimadamente, 2 horas, caso o funcionamento do serviço fosse exemplar, com a respectiva chamada para os meios de socorro apropriados e o respectivo encaminhamento para o hospital em causa.”

Mas como sabemos que o Governo provavelmente desconfia das intenções do poder local, temos também a resposta do próprio Governo a um requerimento relativo ao encerramento da prisão de Odemira que diz entre outras coisas o seguinte:

“A situação periférica de Odemira, os seus acessos difíceis e as grandes distâncias dos tribunais a que as reclusas estão afectas obrigam a demoradas deslocações, com a consequente afectação de recursos humanos, sobrecarga de horários para o corpo da guarda prisional, enorme desgaste das viaturas celulares e avultados gastos em combustível. As necessidades de constante assistência hospitalar destas populações e a inexistência de resposta em Odemira, que dispõe apenas de um centro de saúde, obriga ainda a permanentes deslocações a Beja, que fica a cerca de uma centena de quilómetros, gastando-se em cada viagem, de Odemira a Beja, cerca de 1 hora e 30 minutos. Em virtude destas situações específicas de Odemira, cada uma das quatro viaturas celulares existentes percorrem, em média e por mês, 7548 quilómetros.”

Ou podíamos ainda referir o caso relatado ontem pela comissão de utentes de saúde de Odivelas. A construção de um novo Centro de Saúde foi sendo prometida por sucessivos Governos tendo sucessivamente verba no PIDDAC. Em 2001, na véspera das eleições autárquicas, o Governo do PS assinou pomposamente com a Câmara Municipal um protocolo para a concretização da construção. Realizadas as eleições eis se não quando a verba desapareceu do PIDDAC. Até hoje.

Muito contestadas têm também sido as intenções do Governo em relação às maternidades. O Ministro da Saúde teima em dizer que prefere a distância segura à proximidade insegura. Só não explica porque é que para o Governo não é opção a proximidade segura com mais investimento e recursos humanos. No caso da Beira Interior atinge o cúmulo do cinismo ao querer descartar-se da decisão de encerramento e ao falar insistentemente na existência de uma auto-estrada entre a Guarda e Castelo Branco, como se as populações estivessem todas junto aos respectivos nós.

Mas também nas zonas urbanas a política economicista se faz sentir. É o caso do encerramento apressado do Hospital do Desterro, supostamente justificado com a abertura do novo Hospital de todos os Santos, que como é bom de ver, não está para abrir em breve, e sem que estejam garantidas as condições para a continuação integral das actividades deste hospital noutras unidades já sobrecarregadas e igualmente com edifícios antigos e desajustados. A vida adiante demonstrará o que de facto levou a esta pressa de encerramento, e se ao interesse da saúde se sobrepôs ou não algum interesse de carácter imobiliário.

Na Educação, bem pode o Primeiro-ministro continuar a falar do encerramento de escolas só com 2 ou três alunos. A realidade é bem diferente. Estivemos na escola primária e jardim-de-infância do Baraçal. O Governo quer encerrar esta escola e enviar as crianças para outra freguesia. A escola tem cerca de uma dúzia de alunos e terá mais no próximo ano. Tem melhores condições do que a escola de destino. Recebeu até um computador pelo mérito de um projecto apresentado pelas suas crianças. Trata-se de uma freguesia que já perdeu o posto dos correios, já não tem transporte rodoviário e apesar de ter um apeadeiro, praticamente deixaram de ali parar os comboios. Ouvimos a indignação justa das pessoas, o desencanto da Junta de Freguesia que até tem terrenos a preço simbólico para fixar jovens casais mas que sem serviços públicos estará condenada a definhar. Este é o efeito do encerramento dos serviços públicos. Uma política de destruição do interior do país, de incentivo à desertificação, de abandono das populações e de agravamento das assimetrias regionais.

Também em serviços centrais se verificam situações insustentáveis. Visitámos o IPA e o LNIV, deparando-nos com duas instituições que desenvolvem um trabalho de alta qualidade e estratégico para o país e que enfrentam, para além da incerteza dos efeitos do PRACE, situações de carência de pessoal e de recursos cada vez mais gritantes.

Veja-se o que acontece com a falta de meios das comissões de protecção de menores que leva a que existam em Portugal mais de 1400 crianças e menores em risco ilegalmente institucionalizados.

E se dúvidas tivéssemos sobre o estado do país em relação aos seus serviços públicos, bastaria olhar para o levantamento que fizemos dos requerimentos que neste ano fizemos, relacionados com questões de serviços públicos, num total de 368 requerimentos.

Na verdade estamos perante a transformação do Estado social consagrado na Constituição de Abril, num Estado liberal, assente na filosofia, perfilhada pelo primeiro-ministro de que menos Estado é melhor Estado. A Constituição consagra importantes princípios no que diz respeito aos serviços da administração pública e determina a aproximação dos serviços públicos às populações. Mas o Governo faz o contrário.

É uma política desastrosa para o país, já que sem serviços públicos de qualidade não há verdadeiro desenvolvimento e melhoria das condições de vida dos portugueses.

O governo deve pois olhar para a realidade que hoje aqui trazemos que mais não é do que uma parte da realidade que existe no país. Deve saber que continuando esta política terá como resposta uma cada vez maior indignação e luta das populações pelos seus direitos, pelo desenvolvimento das suas regiões, pelos seus serviços públicos.

E pode ter a certeza que o PCP estará na primeira linha dessa luta.


Disse,