Declaração política sobre o clima em que se realizam estas eleições autárquicas e dos efeitos que os executivos «monocolores» nas autarquias poderão vir a ter
Intervenção de Bernardino Soares
29 de Setembro de 2005

 

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Num momento em que decorre já a campanha eleitoral para as eleições autárquicas, não cabe, evidentemente, fazer na Assembleia da República o debate sobre os combates políticos concretos que agora se travam em relação a cada autarquia.

Mas o clima em que se realizam estas eleições não pode deixar de nos provocar um sobressalto democrático e uma séria apreensão. Desde logo, porque estão longe de estar no centro do debate, na maioria dos casos, as propostas concretas de cada força política para a solução dos problemas de cada comunidade, normalmente preteridas por outras abordagens mais ao gosto da ordem comunicacional dominante.

Por outro lado, estas eleições encontram uma parte significativa da população desencantada, frustrada nas suas expectativas de mudança política ao nível do país, que não viram realizadas com a mudança de Governo, a olhar com distanciamento para a campanha eleitoral que lhe é oferecida nos principais órgãos e comunicação social e tentada a não usar o seu voto. Em vez disso, deveria usá-lo para as melhores escolhas locais, sabendo também que o resultado destas eleições terá uma leitura nacional.

Estas eleições ficarão igualmente marcadas pelo atravessar de questões da justiça nas contendas eleitorais. É preciso, certamente, deixar à justiça o que é da justiça e à política autárquica o que é da política autárquica. Pela nossa parte, é o que fazemos: não contaminamos toda a nossa intervenção com os casos mais mediáticos, o que, aliás, seria uma boa ajuda para a projecção já absolutamente desmedida das candidaturas visadas, o que não significa que não demos todo o combate ao avanço dos populismos de cariz antidemocrático.

Mas ninguém pode ignorar o sentimento de descrédito e de estupefacção que decisões judiciais como as tomadas recentemente no tribunal de Felgueiras criam nos portugueses, sobretudo porque são acompanhadas de notícias sobre procedimentos das entidades relevantes nesta matéria, ou esquemas de financiamento de partidos, que lançam sérias suspeitas sobre todo este processo e que continuam a não ser cabalmente esclarecidas, designadamente pelo Partido Socialista.

Vemos, ouvimos e lemos, pelo que não podemos ignorar.

O certo é que todos percebemos que alguns partidos, demarcando-se formalmente dessas candidatura, convivem bem com elas, ou toleram-nas o melhor possível, de forma a garantir o silêncio ou a tolerância recíproca, que ninguém sabe bem o que esconde.

No caso de Felgueiras, aliás, ainda nos lembramos que há quatro anos a agora candidata independente foi candidata pelo PS, apesar das fundadas suspeitas já existentes sobre os processos que entretanto avançaram. E também nos lembramos que, estando, na altura, o PS no governo, a conclusão do relatório da Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT), que era a de perda de mandato da autarca em causa, foi protelada para depois das eleições.

Mas estas eleições devem obrigar igualmente à reflexão sobre aspectos como o das candidaturas de cidadãos eleitores, ditas «independentes», sempre apontadas como o supra-sumo da democracia e da participação, como se até aqui não houvesse cidadãos sem partido nas listas autárquicas — nas nossas são 15 000, isto é, 35% —, e normalmente aliadas à «diabolização» dos partidos e ao apagamento do seu insubstituível papel no regime democrático. Estas candidaturas têm servido, já em anteriores eleições, para esconder coligações reais entre partidos que as não querem confessar publicamente.

Mas é nestas eleições que elas assumem uma dimensão ainda mais relevante. Olhando para o «mapa» das principais candidaturas ditas «independentes», verificamos que elas são, na realidade, bem próximas de certos partidos políticos ou, então, dependentes de interesses económicos. Constatamos que elas estão a servir, no fundamental, de instrumento, ainda por cima de fiscalização mais difícil, para alguns protagonistas, há muito no poder autárquico, prosseguirem os seus projectos de conquista ou de manutenção do poder.

É certo que fenómenos destes não se fazem só com candidaturas de cidadãos eleitores. São conhecidas as disponibilidades de algumas forças políticas para darem guarida aos que não obtiveram vencimento para as suas pretensões nos seus anteriores partidos, e existe até nestas eleições pelo menos um insólito caso de um presidente de câmara do PSD que se passou, com toda a vereação e respectivos presidentes de junta, para o PS. Se não foi certamente por razões ideológicas de conversão ao auto-intitulado socialismo democrático, que razões estarão então por detrás desta insólita mudança de «camisola»?!

Mas a utilização que delas está a ser feita — destas candidaturas ditas «independentes» — merece uma reflexão séria, que, aliás, pode transpor-se pelas mesmas razões para as propostas de círculos uninominais que o bloco central PS/PSD inscreveu como possibilidade na Constituição. Cada partido deve reflectir sobre se foi esta a utilização que justificou a criação das candidaturas de cidadãos eleitores e sobre o que acontecerá se forem instituídos os círculos uninominais. Tenhamos todos a coragem de fazer esta reflexão.

Finalmente, importa ponderar os projectos, que estão presentes nesta Assembleia, no sentido de impor executivos «monocolores» nas autarquias, em que, por exemplo, na versão do PS, o executivo camarário passa a ser de um só partido e o presidente de câmara passa a escolher e a demitir, ele próprio, os vereadores.

Ora, se hoje estamos confrontados com diversas situações em que é visível a criação de redes de dependência do poder, mesmo com a pluralidade dos executivos camarários, imaginemos o que seria se avançasse a proposta do PS de transformação do presidente de câmara numa espécie de rei absoluto, que põe e dispõe conforme ordenarem os seus interesses políticos ou outros.

Diz o nosso sábio povo: «se não queres ver o vilão, não lhe ponhas o pau na mão!». Pois é tempo de os Deputados do PSD, e muito especialmente do PS, se interrogarem sobre os efeitos desta sua proposta na democraticidade do poder local, olhando designadamente para a experiência destas eleições.

Apesar de todos os problemas, somos dos que não alinham pela «diabolização» do poder local, nem pela desvalorização do seu valor intrinsecamente democrático e da sua importância na vida das populações, por isso, combateremos todas as tentativas na sua deturpação ou empobrecimento democrático com o mesmo empenho com que neste momento nos entregamos à defesa das melhores políticas autárquicas para cada município e para cada freguesia.

(...)


Sr. Presidente, registo que não há mais nenhum pedido de esclarecimento, portanto, que o PS e o PSD não se inscreveram para pedir esclarecimentos, o que terá a sua leitura.

Sr. Deputado Nuno Magalhães, vou responder-lhe com todo o gosto.

Quanto aos círculos uninominais e à redução do número de Deputados, é evidente que uma proposta deste tipo pretende atingir o objectivo de restringir ao máximo a representatividade plural dos vários quadrantes políticos nesta Assembleia da República. Mas a questão em particular para a qual quis chamar a atenção é a da perversidade do fenómeno dos círculos uninominais, porque, por aquilo que se está a passar nestas eleições autárquicas, podemos imaginar, transpondo esta situação para os círculos uninominais, o que se passaria nessa altura nas autarquias, bem como o que se passaria depois aqui, na Assembleia da República, com esse tipo de eleições, em termos de compromissos e de fidelidades, que não são as que beneficiam o regime democrático.

Em relação às propostas de alteração à lei eleitoral autárquica, quero dizer ainda, colocando um acento tónico nisto, que é especialmente chocante que os partidos que apresentaram essas propostas como grandes prioridades para esta Legislatura passem a campanha das eleições autárquicas sem dizerem uma palavra sobre essas mesmas propostas, que, aparentemente, eram tão importantes para a sua orientação política. Terão vergonha de assumir agora, perante os populismos de cariz antidemocrático a que assistimos em alguns sítios deste país, que o querem é dar mais condições a esses populismos pondo na mão de uma só pessoa todo o poder das câmaras municipais?!

Esta questão tem de ser debatida nestas eleições autárquicas!

É por isso, Sr. Deputado, que o PS e o PSD não querem intervir neste debate, porque teriam de dizer aos portugueses que, com estas propostas, o que querem é que aqueles candidatos que muitos portugueses vêem a «agarrarem-se» aos seus lugares, criando até candidaturas independentes e utilizando-as contra os seus próprios partidos, continuem a exercer o seu poder, tenham ainda mais poder e mais possibilidade de se perpetuarem nesses lugares.

É por isto que não as querem discutir nesta campanha eleitoral, mas nós vamos discutilas.

E, para isso, trouxemo-las hoje, aqui, porque este é o momento certo para cada um dizer se quer um poder local cada vez mais unipessoal, autoritário e centralizado na figura de uma só pessoa, sem fiscalização e controlo democrático no executivo municipal, ou se quer um poder local como nós pretendemos, com fiscalização democrática, inclusive no executivo camarário. A presença de outras forças políticas neste órgão, no executivo camarário, é indispensável para uma fiscalização democrática. Este é o cerne da filosofia do poder local democrático trazido pela Revolução de Abril e é ele que está em causa quando se ataca a pluralidade do executivos municipais!