Debate sobre o Estado da Nação
Intervenção de Jerónimo de Sousa
7 de Julho de 2005

 

 

 

Sr. Presidente,

Permita-me também, e antes de mais, em nome do Partido Comunista Português e do Grupo Parlamentar do PCP, que manifeste a nossa mais viva condenação
pelo brutal atentado que teve hoje lugar, ao início da manhã, em Londres.

Queremos também recordar aqui a nossa inequívoca posição de sempre de condenação de todas as formas de terrorismo e dos objectivos de quem serve, e ainda, em conformidade com o silêncio que guardámos, transmitir uma palavra de solidariedade aos trabalhadores, ao povo inglês e às famílias das vítimas.

Uma última nota sobre o assunto: perante estes trágicos acontecimentos, ocorridos no momento em que decorre na Escócia a Cimeira do G-8, queremos também alertar para qualquer tentativa de aproveitamento da situação para justificar a violação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e para branquear a agressão imperialista e as suas guerras de ocupação, em si mesmas também factores de alimento e de ânimo do próprio terrorismo.

Sr. Presidente,
Sr. Primeiro-Ministro,

Algures, numa das manifestações que se realizaram recentemente em Portugal, um participante era portador de um cartaz que apresentava a imagem de
quatro ex-Primeiros-Ministros e do actual Primeiro-Ministro, onde se lia: «Todos diferentes, todos iguais».

A ácida e criativa imagem que ali era colocada…

Quero dizer-lhe que não foi o PCP que o fez! Esse é o vosso engano!

Esse é o vosso engano de agora e para o futuro!

Creio que a ácida e criativa imagem desse cartaz faz uma síntese do que foi a prática dos governos anteriores e da que pensamos estar encaminhada pelo Governo actual.

Dirá V. Ex.ª que tal mistura ou igualização é injusta e precipitada, mas compete-lhe a si prová-lo. E, aqui, a prova não é boa, sendo legítimo fazer essas comparações e até constatar semelhanças, tendo em conta factos, medidas e políticas concretas e não anúncios ou declarações de boas intenções. E a prova não é boa, porque, sem ter a preocupação de saber se o Governo está pouco ou muito desgastado e se descontarmos as suas palavras e as suas boas intenções, que acredito que sejam ditas com sinceridade, há uma crítica de fundo que podemos, desde já, fazer: o Governo do PS está a desbaratar a esperança e a confiança que tantas vezes sentimos na «batalha» das eleições de 20 de Fevereiro e que se reflectiram, tão claramente, nos resultados eleitorais.

Nem sequer recorro a um recente inquérito, realizado em Julho, pela Comissão Europeia, sobre o clima económico em Portugal, porque a realidade fala por si.O Governo deixou cair promessas que eram o ex libris da sua campanha eleitoral — estou a pensar nos impostos, nos 150 000 postos de trabalho, no aumento das reformas para todos os que ganhassem menos de 300€.

Pode dizer que não foi isso, mas a ideia que tentaram «vender» foi essa!

Como estava a dizer, o Governo deixou cair promessas que eram o ex libris da sua campanha eleitoral mas foi tomando medidas e aprovando instrumentos orçamentais, económicos e financeiros já usados e experimentados até à exaustão e que falharam, que agravaram os problemas dos trabalhadores, do povo e do País. E são esses instrumentos, essas decisões que valem, que fazem caminho, e não as declarações de intenção.

Mas, Sr. Primeiro-Ministro, não se iluda no final deste debate — que é modelado, fundamentalmente, para servir o Governo —, se for muito aplaudido, se tiver comentários favoráveis de analistas, dos seus parceiros de Governo. É que quem anda aqui há 20 anos já viu muito mais entusiasmo e aplausos que, depois, tiveram o desfecho que tiveram.

Mas, sem prejuízo de proferir uma intervenção de fundo, e tratando-se desta fase das perguntas, gostaria de suscitar uma questão que tem a ver com o facto de o Sr. Primeiro-Ministro vir anunciar a importante alteração da Lei da Nacionalidade. Está a ver que, afinal, vale a pena lutar sempre?! Essa é uma das propostas mais antigas do PCP e, finalmente, tivemos o reconhecimento do Governo…

Os senhores sabem que é verdade! Na Legislatura anterior e na presente apresentámos uma proposta que, no fundo, corresponde a esta grande novidade aqui apresentada pelo Sr. Primeiro- Ministro.

Uma outra questão que gostaria de suscitar, embora já tenha sido colocada pelos Srs. Deputados do PSD, tem a ver com o seguinte: anunciou o Sr. Primeiro-Ministro, publicamente, que não ia mexer nos impostos; agora, enfim, houve uma posição mais flexibilizada, tendo até em conta a afirmação mal explicitada do Sr. Ministro das Finanças. Mas aquilo que gostaria de perguntar, concretamente, é se isso significa que vai avançar com as medidas que anunciou em relação ao capital financeiro e especulativo ou que, caso as coisas corram mal, serão sempre os mesmos, do costume, a sofrer as consequências. É que, olhando para as posições croeconómicas reflectidas no Orçamento rectificativo, com todas as incertezas do Quadro Comunitário de Apoio e usando, um pouco, a expressão popular, podemos sempre perguntar-lhe se não lhe parece que está a fazer muita política por palpite! E se o palpite falhar? A quemé que vai ser cobrada a factura, em termos de impostos?


Uma questão que também considero importante tem a ver com o processo de deslocalizações que hoje existe em Portugal e que está a provocar o aumento significativo do desemprego. Hoje, somos confrontados com uma espécie de novos «vampiros» do século XXI, que chegam a um país, instalam-se, são apoiados e financiados, exploram, mas assim que sentem «sangue fresco», seja por fundos comunitários, seja explorando mão-de-obra mais barata noutro país, aí vão eles, levantam a tenda e deixam atrás de si um rasto de miséria, de desemprego, de depressão, de problemas familiares, regionais e locais de grande dramatismo.

Nós consideramos que é possível travar isto! Apresentámos um projecto de resolução, uma iniciativa, aqui, na Assembleia da República, com medidas nacionais, com medidas que, naturalmente, têm de ser discutidas no quadro comunitário. Não considera o Sr. Primeiro-Ministro que também vale a pena travar esta batalha, para impedir as situações dramáticas que hoje existem no nosso país, designadamente com este processo de deslocalizações?

Deixo-lhe a pergunta, porque consideramos que é justo travar esta batalha, que tem a ver com o interesse nacional, com os interesses dos trabalhadores e com o próprio Estado social.

(...)

 

Sr. Presidente,

Creio nunca ter exercido este direito regimental mas, porque o Sr. Primeiro-Ministro foi injusto e cometeu uma inverdade histórica, considero importante afirmar e lembrar, tendo em conta que o Sr. Primeiro-Ministro também passou por aqui muitos anos, que sempre, mas sempre, que o Partido Socialista procurou encontrar propostas que considerávamos justas e adequadas, propostas com sentido democrático e de esquerda, teve o apoio do PCP.

Lembro-lhe a Lei de Bases da Segurança Social, lembro-lhe a reforma fiscal, lembro-lhe medidas relativas à justiça, lembro-lhe medidas relativas à lei da droga. E isto é apenas um conjunto de medidas.

Mas, já agora, posso dar-lhe conta de um dado histórico, porque nessa altura o Sr. Primeiro-Ministro ainda não estava cá. Num determinado momento em que o Partido Socialista precisava da nossa opinião e da nossa votação, nós fizemos, tão simplesmente, estas reclamações de fundo: defesa do sector público, defesa dos direitos dos trabalhadores. A resposta que recebemos foi uma folha em branco.

Como vê, Sr. Primeiro-Ministro, da nossa parte, naquilo que for bom para o País, para o povo e para os trabalhadores contem connosco; naquilo que sempre, mas sempre, nesta Assembleia, e fora dela, contará com o nosso combate é no que considerarmos injusto, antidemocrático e mau para o povo e para o País. Pode contar com esta batalha mas também pode contar com a nossa disponibilidadeno sentido em que a afirmei.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Primeiro-Ministro,
S rs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:

Do que estamos a tratar é do estado da Nação. Diz um inquérito da Comissão Europeia sobre o clima económico em Portugal que a opinião dos consumidores, da indústria, do comércio, da construção e dos serviços teve uma forte queda negativa em Junho, com o agravamento do pessimismo, reflectindo as consequências das medidas restritivas e recessivas, designadamente com o aumento dos impostos e com o novo discurso de obsessão do défice. Bem se podiam ter poupado os custos de um estudo, bastando sentir o pulso dos sentimentos prevalecentes na sociedade portuguesa e a realidade social que vivemos.

Em vez de se privilegiar o crescimento económico e o fortalecimento do aparelho produtivo como meio de combater o défice, o combate ao défice passou a comandar a política económica, entravando o crescimento, numa concepção redutora, orçamentista e monetarista.

Do Programa de Estabilidade e Crescimento ao Orçamento rectificativo aprovado pela maioria trespassa uma clara opção de deixar cair o investimento em nome do estrito cumprimento das metas do défice orçamental, confirmando e projectando a continuação do já longo caminho que, desde 2000, nos afasta e nos leva a divergir da União Europeia.

Por esta via, não haverá venda de ilusões, nem anúncios de miríficos investimentos que alterem a realidade, a realidade da estagnação económica, do desemprego e da concentração da riqueza.

Corremos o risco de chegar ao fim deste ciclo político, tal como aconteceu com Durão e Santana, em que também foram pedidos sacrifícios para salvar o País, numa situação ainda mais frágil do que a quetemos hoje.

Os portugueses acreditaram e alimentaram que, com o novo Governo e a nova maioria, o prometido relançamento da economia e do crescimento económico assumiria uma outra prioridade e centralidade na acção e nas políticas governativas, que restabeleceriam a confiança no futuro. Hoje, essa esperança esfuma-se a cada dia que passa, como se esfuma o cumprimento das promessas eleitorais.

Os portugueses começam a compreender que a aplicação das mesmas terapias do passado só podem dar os mesmos resultados no presente e no futuro.

Todos afirmamos — e parece que reconhecemos — que o défice é uma dor reflexa do nosso crescimento e de uma crise estrutural que atinge a nossa economia.

Todos os factos evidenciam que são a fragilidade do tecido produtivo nacional e a sua incapacidade para responder à procura do mercado interno e competir nos mercados externos o grande e grave problema do País.

Mas não se vê uma estratégia de ataque a este problema central. O Governo resolveu dar a primazia do combate ao défice e atacá-lo pelo pior lado, o lado que agrava as condições de vida dos portugueses e a injustiça fiscal e potencia os factores recessivos da economia.

Entretanto, paradoxalmente, ao mesmo tempo que aprova medidas orçamentais restritivas, com cortes no investimento de capital e aumento das cativações no Orçamento rectificativo e reafirma a sua fidelidade ao processo e às metas do PEC de consolidação das finanças públicas, o Governo vem anunciar um pacote de investimentos de infra-estruturas, um Programa no qual junta num único bolo o investimento previsto para quatro anos de 25 000 milhões de euros, dos quais 8000 milhões de euros do Estado, que tem muito de operação de marketing, para fazer esquecer as gravosas medidas que decretou contra os portugueses que vivem do seu trabalho e lançar uma nova «cortina de fumo» sobre os reais propósitos de contenção, expressos no Programa de Estabilidade e Crescimento.

Do que até agora conhecemos, sendo pouco, é o suficiente para sabermos que não se trata de um investimento suplementar ou de um reforço mas apenas de uma parte do investimento que todos os anos são disponibilizados pelo Estado, muito aquém da sua normal capacidade de mobilização, com a agravante de estar sujeito a um quadro comunitário de apoio incerto e de revelar uma grande falta de rigor e sustentabilidade na sua articulação com o investimento privado, de cuja iniciativa o Programa dependente.

Este é um Programa que deixa muitas reservas acerca do seu real contributo para ultrapassar o central e decisivo problema, que é o da dinamização da estrutura produtiva nacional, em particular da nossaindústria.

É um Programa que, na sua concretização, apela mais à mobilização de um forte componente de produtos importados do que a um esforço da iniciativa e produção nacionais.

É um Programa que pouco contribuirá para dar resposta à difícil situação que atravessa a nossa indústria transformadora, com os graves problemas do sector têxtil e do vestuário, da metalurgia, da cristalaria e da cerâmica, da cabelagem e de outros subsectores eléctricos e da electrónica. Problemas que se somam às crises profundas da agricultura e das pescas nacionais, a que o Sr. Primeiro-Ministro não se refere nem uma única vez.

É um Programa que, prosseguindo o caminho privatizador assumido no Orçamento rectificativo, é concebido na dependência do capital privado, da concretização de parcerias público-privadas, que mais não são do que um escancarar de portas à transformação das áreas de serviço público em negócio privado e que se traduzirão no futuro numa enorme factura que os portugueses terão de pagar dolorosamente.

Este pacote de infra-estruturas, que se apresenta por atacado para impressionar os portugueses desiludidos,é o mesmo pacote de 30 000 milhões de euros que o Ministério da Economia vinha anunciandodesde o princípio de Maio, juntamente com o PIN, os tais projectos de Potencial Interesse Nacional que, depois da sua divulgação na operação «Governo Presente» no distrito de Braga, há dois meses, parecem ter regressado ao congelador.

Destino idêntico parece ter sido a task-force de apoio para salvar as empresas em dificuldade, o tal projecto AGIIRE, que, desde essa data, ciclicamente se vêm anunciando criar, como se fosse novidade ou coisa nova. Infelizmente, Sr. Primeiro-Ministro, a única diferença é a de que nestes dois meses que nos separaram
desse célebre Conselho de Ministros no distrito de Braga, que lançou a chamada «nova base da política económica», este distrito viu aumentar assustadoramente o desemprego, que atinge agora 15% da população activa e está a braços com a dramática situação dos 800 trabalhadores da LEAR com a deslocalização da empresa para a Roménia, mas também de outras empresas, como a VISHAY, de Famalicão para a Índia, ou do conjunto das empresas subcontratadas pela Benetton na zona do Basto, envolvendo 700 trabalhadores.

O País que trabalha está mais pobre. Desde 2001 que, paulatinamente, perde poder de compra, que se estima numa quebra de 15%, com as famílias a ganharem menos, a pagarem mais impostos e a terem menos benefícios sociais.

Situação em nítido agravamento com as recentes medidas do actual Governo do PS.

Só o aumento do IVA, que este mês entrou em vigor, conjugado com a defendida contenção salarial, significará um novo passo no agravamento dessa tendência de empobrecimento das famílias portuguesas, particularmente das famílias dos trabalhadores e dos reformados.

Não é difícil prever o que aí vem em resultado do aumento dos combustíveis, dos transportes, das rendas de casa — que o Governo agora também anuncia — e de toda uma gama de produtos e bens, ao mesmo tempo que se promovem activas políticas de depreciação dos salários e dosrendimentos de trabalho.

Esta é uma realidade que contrasta com o crescimento desmedido e escandaloso dos lucros dos grandes grupos económicos e da banca, que, ano após ano, à sombra da crise, arrecadam milhões e milhões de euros, que alimentam um crescente processo de acumulação e concentração de capitais.

Proveitos que, como objectivamente se constata pelo baixo crescimento económico português, não são reinvestidos no relançamento da economia portuguesa, nem tão-pouco na criação de mais emprego.

Estes são os grandes usufrutuários de um sistema e de uma política que apenas serve e engorda um capital improdutivo e predador, que vive à custa de um tecido económico cada vez mais fragilizado de micro, pequenas e médias empresas, que sacou do Estado o melhor do seu património público empresarial e quer mais e mais do que resta. E é aqui que bate o ponto!

Esta é que é a grande contradição que atravessa a sociedade portuguesa e não aquela que uma vergonhosa campanha do Governo também alimenta, que quer contrapor o País aos trabalhadores da Administração Pública, às forças de segurança e aos militares. Uma campanha que é alimentada por um conjunto de falsidades no que diz respeito aos seus salários, direitos e reformas e de enviesadas e abusivas comparações com a realidade do sector privado. Quer-se nivelar puxando para baixo, retrocedendo socialmente!

Diz o Governo que as medidas que estão a tomar são para salvar o Estado social. Mas como quer que se acredite que, sendo o nosso Estado social menos protector e menos eficaz do que os seus congéneres europeus, o caminho escolhido seja o da retirada e diminuição de direitos, em vez do seu reforço?

Quem pode acreditar, sinceramente, que seja para salvar o Estado social que o Governo resiste à suspensão das disposições do Código de Trabalho respeitantes à caducidade e sobrevigência das convenções colectivas de trabalho, admitindo com tal posição a eliminação deimportantes direitos dos trabalhadores de diversos sectores de actividade e a diminuição das suas remunerações? O Estado social não se salva desregulamentando as relações laborais, precarizando o
emprego e fragilizando os direitos de quem trabalha.

Sr. Primeiro Ministro, V. Ex.ª veio aqui falar de futuro. Acha que o discurso da confiança no amanhã constitui a alavanca fundamental para mobilizar os portugueses na senda do crescimento e do desenvolvimento do País.

É importante retomar a esperança e a confiança, mas nós acrescentamos que também é preciso retomar a luta dos trabalhadores e das populações, não permitindo que os poderosos e os senhores do dinheiro tenham da democracia a concepção que «nós podemos dizer o que quisermos enquanto eles poderem fazer o que quiserem», luta, protesto e descontentamento que deveria levar o Governo a reflectir e não a hostilizar as causas que hoje mobilizam tantos sectores e camadas sociais da população portuguesa.

O carácter apelativo e de confiança feito pelo Governo é uma arma de dois gumes. Outros governos anteriores fizeram esse apelo, aplicando, depois, medidas e políticas de retrocesso, comprometendo o futuro do País, provocando desencantos e frustrações. Plagiando alguém, diria: «Nunca nestes tempos que vivemos o amanhã foi tão transformado numa palavra tão vã».

A vida dirá se temos ou não razão. Mas não ficaremos à espera, não regatearemos qualquer combate por uma outra política que rompa com o passado e prossiga a construção de um País, de uma Nação de progresso e de justiça social, soberana e democrática.

O Sr. Primeiro-Ministro queria saber qual o grau de responsabilização do PCP. Então, nós dizemoslhe: aqui tem um compromisso, não consigo, não com o Governo do PS mas, sim, com o povo português.