Sobre Processo de Revisão Constitucional
Declaração de Bernardino Soares em Conferência de Imprensa na AR
1 de Junho de 2005

 

A situação que está criada no que diz respeito ao tratado constitucional europeu e à possibilidade de o povo português se pronunciar em referendo em relação à vinculação ou não do país a este compromisso exige posições claras e inequívocas.

Por um lado é cada vez mais evidente para muitos europeus a verdadeira natureza do tratado constitucional proposto e do seu carácter contrário aos interesses dos povos, da paz e da coesão social. É uma proposta que visa instituir a política neo-liberal como trave mestra da União Europeia, que acentua o seu carácter militarista e que avança num sentido federalista, pretendendo impor mais transferências de soberania para reduzir a influência dos povos na condução dos seus destinos e na fiscalização das políticas que lhe são aplicadas.

É também claro como pretende a generalidade dos governos europeus impor a aprovação deste referendo. Ou evitando a realização de referendos esclarecedores e claros, ou criando uma verdadeira campanha de mistificação e chantagem política, anunciando o caos ou a ostracização dos respectivos países em caso de recusa. É aliás visível que para os defensores deste irresponsável passo no processo europeu, as consultas populares são boas desde que o resultado seja o “Sim” ao tratado proposto.

Depois dos “nãos” da França e da Holanda e das mais do que visíveis reservas do Reino Unido, tem sido muito difundida a ideia de que os resultados em sentido negativo dos referendos nada têm a ver com o conteúdo da dita “Constituição Europeia”. Mas a verdade é que se a contestação às políticas do capitalismo neo-liberal e às suas consequências para os povos motivaram uma justa contestação ao tratado constitucional europeu, isso se deve ao facto de as populações nele terem encontrado a consagração das políticas que penalizam as suas vidas e os seus direitos.

Neste quadro, a revisão constitucional ontem votada na Comissão Eventual com o acordo do PS, do PSD e do CDS, constitui um exemplo de insensatez e irresponsabilidade.

Na verdade, não faz o mínimo sentido rever a Constituição para permitir, a título excepcional, referendar única e exclusivamente o texto de um Tratado cujo processo de ratificação está irremediavelmente posto em causa por força dos resultados dos referendos realizados em França e na Holanda.

Não adianta aos defensores desta União Europeia construída à revelia da vontade dos cidadãos dizer, na falta de melhor, que as razões da recusa da Constituição Europeia foram muito diversas. Não adianta encontrar justificações subjectivas para o sentido de votos dos eleitores. O único facto objectivo, é este: O que foi submetido aos referendos foi o Tratado que pretendia estabelecer uma Constituição para a Europa. Competia aos cidadãos decidir “Sim” ou “Não”. Responderam expressivamente “Não”. Este é o único facto que conta.

Os cidadãos franceses e holandeses manifestaram a sua vontade soberana, que tem de ser respeitada, por muito que isso custe aos políticos e editorialistas que pretendem exercer o poder em nome do povo sem querer saber da opinião do povo para nada.

O Tratado que visava estabelecer uma Constituição para a Europa está moribundo. Aprovar em revisão extraordinária da Constituição que é esse Tratado que deve ser submetido a referendo em Portugal, ou as suas alterações (como se pudesse haver alterações de algo que nunca vigorou) e impor a realização desse referendo em simultâneo com as eleições autárquicas, é confrontar os portugueses com um enorme embuste, e só pode suscitar uma vigorosa recusa da parte do PCP.

Num momento em que por toda a Europa se considera a inevitabilidade de repensar o processo de integração europeia, PS, o PSD e o CDS, limitam-se a fazer de conta que nada acontece e aprovam uma revisão constitucional cuja inutilidade é já uma evidência. PS, PSD e CDS-PP constituem-se assim numa espécie de versão portuguesa da orquestra do “Titanic”, que continua a tocar imperturbavelmente apesar de o barco se estar a afundar.

O PCP considera indispensável que o povo português se possa pronunciar em referendo sobre os tratados que vinculem Portugal no âmbito União Europeia. Um referendo feito com seriedade, com um debate esclarecedor sobre o que verdadeiramente está em causa, que crie condições para uma real participação democrática.

O texto aprovado na CERC não permite esse referendo. Ao contrário, apenas prevê a possibilidade de um referendo sobre um Tratado cuja ratificação já não faz qualquer sentido, e realizado absurdamente em simultâneo com um acto eleitoral de inegável importância como são as eleições autárquicas.

O texto aprovado na CERC não permite realizar o referendo que pode e deve ser realizado, e foi concebido por quem já demonstrou pretender evitar a realização desse referendo. O texto aprovado foi elaborado pelos Partidos que recusaram em 1992 a realização de um referendo sobre o Tratado da União Europeia, que aprovaram em 1997 uma disposição constitucional inviabilizadora de um referendo sobre o Tratado de Amesterdão e que em 2004 congeminaram uma pergunta referendária manifestamente inconstitucional e motivo de escárnio para a Assembleia da República. São aliás os mesmos partidos que anunciando nos últimos tempos a sua “conversão à necessidade de um referendo europeu, nunca esclareceram que efeito deveria ter uma vitória do “Não”, isto é, nunca disseram preto no branco, que à resposta negativa dos eleitores só poderia corresponder a não vinculação de Portugal a este tratado.

A presente revisão constitucional só pode ser entendida como mais uma trapalhada destinada a evitar que os portugueses se possam pronunciar em referendo sobre a sua vinculação ao processo de integração europeia. Aponta para um referendo sem sentido como forma de evitar o referendo necessário.

É preciso pôr fim a esta fraude. Por isso o PCP considera inaceitável que se leve por diante uma alteração à Constituição que em lugar de permitir a realização de um referendo que culmine um debate profundo sobre as opções em presença em matéria europeia, será provavelmente ela própria um entrave à realização de uma consulta popular que sobre uma eventual nova proposta de tratado. O texto aprovado pela CERC viabiliza um referendo sobre uma proposta que já não existe para adiante inviabilizar o referendo sobre um novo tratado que venha a existir.

Se aprovarem esta revisão, PS, PSD e CDS-PP estarão objectivamente a criar as condições para que nenhum referendo realmente venha a ocorrer, o que corresponde provavelmente às suas mais secretas aspirações.