Sobre a Revisão da Concordata
Intervenção de António Filipe na Assembleia da República
30 de Setembro de 2004

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Quando em 2002 foi votada nesta Assembleia a Lei da Liberdade Religiosa, o Grupo Parlamentar do PCP pronunciou-se desfavoravelmente, em votação final global, por discordar da opção então tomada de isentar a Igreja Católica da aplicação desse diploma legislativo em condições de igualdade, de princípio, com as demais religiões

Para o PCP, nunca esteve em causa o respeito pela Concordata e pelos regimes especiais que dela decorrem. Sempre reconhecemos obviamente que, sendo a Concordata um Tratado Internacional celebrado entre Portugal e a Santa Sé, a sua revogação ou alteração não poderia ser feita por simples aplicação de uma Lei da República, mas mediante novo Tratado entre os Estados signatários, cuja Ratificação dependeria sempre da aprovação da Assembleia da República.

Mas isso não era razão para isentar a Igreja Católica da aplicação da Lei da Liberdade Religiosa. É certo que a Igreja Católica tem em Portugal uma História, uma tradição e uma representatividade que a distingue das demais Igrejas. E obviamente que essa representatividade deve ser reconhecida e deve ter consequências. Mas isso não a deve isentar da aplicação, por parte do Estado, do princípio da igualdade. A aplicabilidade deste princípio, que manda tratar como igual o que é igual e como diferente o que é diferente, não implica a negação da representatividade e da importância da Igreja Católica, e é um imperativo do Estado de Direito Democrático.

A solução, em nosso entender, não deveria pela criação de um regime supra legal de excepção para a Igreja Católica, mas pela regulação do relacionamento entre o estado e essa Igreja, reconhecendo a sua especial representatividade, mas no respeito pelos princípios consagrados na Constituição da República e na Lei da Liberdade Religiosa.

Dito isto, importa referir que não negamos ao Estado Português e à Santa Sé, o direito de negociar e aprovar a revisão da Concordata de 1940, nem negamos a necessidade de rever tal Tratado, tendo em conta a inadequação e a desactualização do texto aprovado em 1940.

Porém, há aspectos concretos consagrados no texto da Concordata que hoje somos chamados a aprovar, que merecem a nossa discordância. Referir-me-ei aqueles que consideramos fundamentais:

Em primeiro lugar, a disposição relativa ao divórcio:

Consta do texto da Concordata que: “A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio”.

Não podemos concordar com esta disposição.

A Igreja Católica tem toda a legitimidade para recordar os deveres que entender aos cidadãos que perfilhem a religião católica, quer quanto à indissolubilidade do matrimónio, quer quanto a qualquer outra matéria. Mas o Governo Português não pode subscrever, em nome de um Estado que por imperativo constitucional é um Estado não confessional, a imposição de deveres que são única e exclusivamente do foro religioso. O Estado Português não pode subscrever nenhum documento sobre a indissolubilidade do casamento que contrarie o disposto na Constituição e na lei.

Um segundo aspecto diz respeito à educação moral e religiosa nas escolas públicas. O direito à existência de educação moral e religiosa católica nas escolas públicas deve ser reconhecida, tal como em relação às demais religiões, nos termos da lei. O que não tem justificação, em nosso entender, é o regime de privilégio da educação moral e religiosa católica, que faz com que seja obrigação do Estado nomear e contratar os professores desta disciplina de acordo com a autoridade eclesiástica competente, violando assim o princípio da igualdade que deveria existir nesta matéria. É que o Estado não assume idêntica responsabilidade de contratação e colocação de professores para com mais nenhuma confissão religiosa.

Ainda em matéria de educação, não podemos deixar de referir negativamente, o estatuto supra legal que, por via da sua inclusão na Concordata, é dado ao estatuto de excepção de que goza a Universidade Católica em face das demais instituições universitárias. É certo que o Estatuto da Universidade Católica não decorre originariamente da Concordata mas de um diploma legal de 1990 cuja aprovação aqui contestámos na altura. Mas também é certo que a sua inclusão na Concordata que, por ser um Tratado Internacional adquire um valor supra-legal, limita o Estado Português na sua capacidade, que deveria ser soberana, para regular o sistema educativo português, incluindo obviamente o estatuto das instituições universitárias existentes em Portugal.

Em terceiro lugar, também se nos afigura discutível a solução encontrada quanto à conservação, manutenção e restauro dos monumentos nacionais e imóveis classificados como de interesse público que sejam afectados permanentemente ao serviço da Igreja.

À Igreja incumbe a sua guarda e regime interno, mas é sobre o Estado que recai exclusivamente o encargo da sua conservação, reparação e restauro.

É óbvio que a Igreja Católica possui um património imobiliário com um valor cultural, artístico e monumental incomensurável e que o Estado não deve abster-se de cooperar na salvaguarda desse património. Mas não é a solução mais proporcionada que a Igreja fique com os direitos e o Estado com os deveres, situação que não se verifica designadamente relativamente a autarquias locais que detenham edifícios em condições semelhantes. Justificar-se-ia a adopção de uma solução mais equilibrada quanto à conservação e restauro dos monumentos e edifícios de interesse público na posse da Igreja.

Nestes termos, tendo em conta o conteúdo concreto da Concordata, que contém aspectos importantes de que discordamos e tendo igualmente em conta a questão de princípio que nos levou a discordar da Lei da Liberdade Religiosa, o Grupo Parlamentar do PCP vai votar desfavoravelmente a Proposta de Resolução em apreço. Sem que esta posição represente qualquer hostilização da Igreja Católica, dos valores que esta Igreja representa ou dos inúmeros cidadãos que, em Portugal, professam a religião católica e que merecem obviamente a nossa consideração e respeito. E sem que esta posição represente qualquer contestação da especial representatividade da Igreja Católica na sociedade portuguesa, facto que deve ser reconhecido, mas sem que tal reconhecimento se traduza em violações do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.

Disse.