Declaração política sobre a situação externa
Intervenção de Bernardino Soares
17 de Março de 2004


 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Talvez há muito não se discutisse tão intensamente como por estes dias a democracia e a sua defesa.

Assistimos a momentos difíceis para a democracia e para a liberdade. Assistimos à barbárie dos atentados terroristas em Madrid, com o seu cortejo de morte, destruição e dor, que não deixa imune ninguém que ame e defenda os valores democráticos e preze a vida humana.

Mas não é possível ficar também indiferente à manipulação fria e calculista que se seguiu. À utilização do poder do Estado para beneficio eleitoral de um partido; ao condicionamento directo da informação e à imposição de uma verdade falsa aos meios de comunicação.

E isto não pode ser apenas qualificado, como fizeram muitos dos porta-vozes da direita portuguesa, como um problema de má gestão pelo PP e pelo governo de Aznar. Trata-se de uma gravíssima violação de princípios básicos da democracia e da ética política e é assim que a questão deve ser qualificada.

A reacção democrática do povo espanhol reforça a confiança na democracia e no seu exercício pelo povo. Mas esta situação chama a atenção para os múltiplos factores que na sociedade ameaçam mesmo a pluralidade na realização das próprias eleições: a manipulação da comunicação social, a censura dos tempos modernos, a apropriação do aparelho de Estado naquilo que ele tem de mais poderoso e também de mais sensível – os serviços de informações e as forças de segurança.

Foi em Espanha. Mas ninguém pense que estamos entre nós imunes a estes fenómenos. E se do que se passou na vizinha Espanha se pode concluir que o povo ainda pode ser quem mais ordena, deve também retirar-se a lição de que são múltiplos os factores que condicionam nas sociedades – e também na nossa – o pleno exercício da própria democracia política e eleitoral.

Sr. Presidente
Srs. Deputados

Sempre na história o terrorismo prejudicou o caminho do progresso dos povos. Porque fez e faz milhares de vítimas inocentes. Mas também porque serve objectivamente de pretexto justificativo para reacções securitárias e restritivas de direitos liberdades e garantias.

E no momento em que se avolumam já desproporcionadas dramatizações das questões de segurança, por exemplo na informação tablóide, escrita ou televisiva, é indispensável reafirmar que serão totalmente inaceitáveis caminhos de restrição injustificada das liberdades ou tentativas de aproveitar este clima para promover ofensivas de carácter securitário ou repressivo.

Como também é indispensável rejeitar a xenofobia e a culpabilização de comunidades imigrantes ou cidadãos estrangeiros pela criminalidade ou pela insegurança.

Não se combatem nem previnem atentados contra a democracia com a sua própria amputação.

Não se combate a violência violentando os direitos dos que são as suas vítimas – os cidadãos e os povos.

A garantia da segurança e da tranquilidade públicas, que compreensivelmente estão hoje de forma particular entre as preocupações dos portugueses exigem sem dúvida uma atenção especial. Mas ela deve assentar em políticas preventivas, que passem pela cooperação e entreajuda entre as forças de segurança nacionais e com as de outros países e na absoluta transparência e controle democráticos dos mecanismos utilizados. E deve passar também pela motivação das forças de segurança, desde logo indo ao encontro do que sejam reivindicações justas e razoáveis.

Aliás o Primeiro-ministro começa mal nesta matéria ao restringir os contactos sobre esta matéria a um dos partidos da oposição, em contraste com a decisão do Presidente da República de chamar todos os partidos ao Palácio de Belém.

Por estes dias assinalou-se também a passagem de um ano sobre o triste espectáculo da cimeira dos Açores em que Durão Barroso fez o papel de mestre-de-cerimónias da guerra já decidida.

Mesmo estando os portugueses maioritariamente contra a guerra, mesmo sendo ela ilegal à face do direito internacional, falou mais alto a subserviência à política de Bush.

Há mais de um mês que desafiámos o primeiro-ministro a explicar aos portugueses como foi convencido da veracidade da existência de armas de destruição em massa

O País continua à espera da resposta, mas a sua demora em responder deixar entrever a realidade de que todos já suspeitávamos – não havia provas, nem armas nem nenhuma outra justificação para o envolvimento de Portugal nesta guerra que não fosse o apoio à política predadora dos recursos petrolíferos e de imposição do domínio do império norte-americano naquela região.

A invasão do Iraque não tinha como objectivo combater o terrorismo. É hoje evidente que o mundo, como aliás notou há dias Romano Prodi, está mais ameaçado pela violência e pelo terrorismo do que há um ano atrás.

O terreno lavrado pelas bombas americanas é fértil para a sementeira dos fundamentalismos de todos os tipos.

Esta guerra, esta invasão, esta ocupação do Iraque em que o país está envolvido não tem emenda nem legitimação possível. É indispensável retomar da política da paz, e da cooperação entre povos igualmente soberanos, pondo fim imediato à presença da GNR na ocupação do Iraque.

Sr. Presidente
Srs. Deputados

Se há razões para condenar a política externa do Governo, não faltam contudo razões de política interna para combater a sua acção.

Dois anos depois das eleições legislativas a política do Governo agravou a recessão e a crise económica, provocou o aumento do desemprego, aumentou a precariedade e a insegurança no trabalho, fez baixar os salários reais ao mesmo tempo que contribuiu para o aumento dos preços de bens essenciais, diminuiu o investimento reprodutivo e nas funções sociais.

Durão Barroso afadiga-se a garantir que a retoma já lá vem. Certamente algum dia virá. Até hoje nenhuma recessão se prolongou eternamente. Mas a questão é que é a política do Governo que atrasa a recuperação do país e que a tornará mais débil quando acontecer.

Este Governo não é apenas responsável pela situação presente; está a hipotecar o futuro. É o próprio Governo que afirma que vamos divergir, pelo menos até 2006, da média europeia de crescimento, quando Durão Barroso prometeu na campanha eleitoral que com ele o país cresceria todos os anos dois pontos percentuais acima da média europeia.

O Governo quer deixar-nos um país sem recursos e sem instrumentos para promover o desenvolvimento; com mais sectores e empresas estratégicas privatizados; com uma legislação laboral penalizadora dos trabalhadores; com os sectores sociais entregues aos interesses privados; com uma economia cada vez mais subcontratada e dependente.

O Governo é responsável pelos sucessivos encerramentos de empresas e pela destruição do aparelho produtivo nacional, de que é também exemplo o encerramento hoje anunciado da Bombardier/ex-Sorefame.

O estado do país exige um forte sobressalto político e democrático. Que abra caminho à interrupção desta política desastrosa para os portugueses.

O país precisa de mostrar o cartão vermelho a esta política. Os portugueses podem contar com o PCP na luta por uma política que sirva os seus interesses e os do país.