Declaração política sobre uma cultura de privilégios no interior do Governo que culminou com a demissão dos Ministros da Ciência e Ensino Superior e dos Negócios Estrangeiros
Intervenção de Lino de Carvalho
8 de Outubro de 2003

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados,

O escândalo dos favores ilegais feitos pelo Ministro da Ciência e do Ensino Superior ao seu colega dos Negócios Estrangeiros está e vai estar na memória de todos nós. Pelo que representa de uma cultura de privilégios no interior do Governo, entre os seus próprios membros, para favorecimento de interesses pessoais e familiares com utilização dos cargos públicos exercidos em seu próprio benefício. Mas pelo que representa também de um comportamento revelador de uma gritante falta de ética de serviço público, em que aqueles que circunstancialmente exercem cargos de Estado entendem poder beneficiar de privilégios interditos à generalidade dos cidadãos, neste caso, interditos aos milhares de alunos candidatos a um curso superior de Medicina (ou outro), que ficam de fora porque não cumprindo as elevadas exigências de admissão também não tiveram a sorte de serem filhos de Ministro. Este é o exemplo que o Governo dá ao País. É a mensagem não do mérito e da igualdade de todos os cidadãos perante o Estado e a lei mas da cunha, do favor, da corrupção, como caminhos para se atingir o sucesso. Uma vergonha.

A sucessão de acontecimentos culminou com a demissão dos Ministros da Ciência e Ensino Superior e dos Negócios Estrangeiros. Não por espontânea vontade própria. Mas empurrados pela multiplicação de factos tornados públicos pela comunicação social que o Governo não conseguiu abafar. E, no que se refere ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, apesar da protecção do Primeiro-ministro que se arrastou ao longo de cinco dias. É hoje uma evidência que alguém mentiu e continua a mentir sobre a responsabilidade de todos os intervenientes. Como é evidente também uma gritante falta de solidariedade entre os membros do Governos e uma opção explícita do Primeiro-ministro por um deles. Porque a verdade é que Durão Barroso começou por sacrificar o elo mais fraco, o Ministro da Ciência e do Ensino Superior, que fez o favor ao seu colega do Governo. Enquanto isto o Ministro dos Negócios Estrangeiros, na declaração lida nesta Assembleia, anunciou o sacrifício da própria filha e sob palavra de honra afirmou que não tinha falado sobre o assunto com Pedro Lynce. Talvez não. Mas é óbvio que alguém o fez por ele. Basta ler o embrulhado comunicado do próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros. O requerimento da filha do Ministro dos Negócios Estrangeiros só surgiu depois de terem falhado todas as tentativas anteriores de alteração da lei, feitas por interpostas pessoas. E sobre tudo isto estamos todos a ver que nunca foi dita uma palavra à mesa da sala de jantar de Martins da Cruz que parecia querer continuar incólume e sereno, como se nada fosse com ele.

No rescaldo destas demissões o Primeiro-ministro deve uma explicação ao País: porque sacrificou um Ministro e protegeu outro; porque procurou abafar as responsabilidades do Ministro dos Negócios Estrangeiros; porque não procedeu, ele próprio, à demissão simultânea dos dois Ministros como o PCP oportunamente reclamou; porque é que apesar dos dois ex-Ministros reclamarem inocência e continuarem, espantosamente e contra todas as evidências, a afirmarem a correcção e a legalidade dos seus actos, se demitiram então? Há, pois, ainda muito por explicar. E o Primeiro-ministro tem a estrita obrigação de o fazer. A questão atinge-o directamente.

O Primeiro-ministro, o Governo e a sua maioria parlamentar podem sempre, se quiserem, empreender o caminho fácil e reconfortante de pensarem que agora, como no caso Isaltino Morais, ou foi simplesmente azar ou foram os malefícios do veloz escrutínio mediático sobre os actos dos Ministros e a acção do Governo. Mas neste caso melhor será que tenham consciência de que muitos e muitos portugueses já perceberam que o que há é um problema e um conflito na convivência de parte dos titulares de cargos governativos que hoje dirigem o País com valores e princípios sobre os quais não se tiram cursos porque ou vivem ou não vivem na cultura politica, nas concepções e nos actos dos agentes políticos.

Na verdade é a credibilidade do Estado de direito que está em causa; são princípios éticos elementares no exercício de cargos públicos que foram questionados; é a promiscuidade entre funções públicas e interesses privados e pessoais que foi posta em relevo. A rápida nomeação de dois novos titulares, mesmo que com uma imagem pessoal mais favorável, não faz esquecer estas questões de fundo nem que o Primeiro-ministro continua a dever explicações ao País. Se nada disser sobre isto é o próprio Governo e o que lhe resta de credibilidade institucional que fica em crise. Se o não fizer antes tem essa oportunidade sexta-feira, aqui, na Assembleia da República, no debate do Estado da Nação. Desafiamo-lo a que o faça.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Ainda este escândalo não está encerrado e outros estão em cima da mesa. O que se está a passar com as privatizações e, em particular, com a privatização da Portucel exige também explicações urgentes do Governo.

A política de privatizações tem avançado sem nenhuma atenção ao interesse nacional e às responsabilidades sociais do Estado. Os únicos factores que orientam o Governo nesta matéria são o de dar resposta aos interesses dos vários grupos económicos e financeiros cada vez mais empenhados em alargarem as suas áreas de negócios, é a teoria da desresponsabilização do Estado e de mercantilização da vida pública, é o encaixe financeiro que as privatizações proporcionam.

Privatizam-se os últimos sectores estratégicos como a energia, a fileira florestal ou o transporte aéreo que tocam, aliás, de perto com a nossa própria soberania nacional; privatizam-se bens que antes de mais são bens sociais essenciais à vida dos cidadãos como a água; privatiza-se ou diminui-se a responsabilidade das políticas públicas em áreas também elas essenciais para os direitos dos portugueses como a educação, a saúde, a segurança social e a própria administração pública. Encerram-se balcões de atendimentos da EDP ou postos de correio dos CTT em nome da rentabilidade mercantil, atirando populações cada vez mais para o isolamento e acelerando o despovoamento de muitas regiões do País. Até já se anuncia a privatização da cobrança de dívidas fiscais e à Segurança Social. É a entrada do cobrador do fraque no Conselho de Ministros.

Três casos são paradigmáticos do bloco central de interesses (como afirma Henrique Neto) que atravessam as privatizações na área económica: o sector da energia, em particular da EDP, da GALP (que hoje opera numa óptica puramente financeira e de preocupação com a distribuição de dividendos aos accionistas) e do gás natural, com o então Ministro Pina Moura a entregar decisões estratégicas aos italianos da ENI e o Governo do PSD/CDS a prosseguir a aposta na liberalização do mercado energético; o sector das águas, que começou com o PS e o Ministro José Sócrates e acaba agora com o PSD, substituindo o direito à água como direito social reconhecido expressamente pela ONU pela lógica do mercado e do lucro, com o inevitável aumento exponencial das tarifas; o sector da pasta e do papel, um dos poucos sectores onde Portugal poderia ter uma política de fileira.

Quanto a esta última, onde o Estado ainda detém 55% do capital da Portucel, sucedem-se os ruídos de fundo dos vários interesses que se digladiam na tentativa de ganhar a licitação em curso. De um lado, Belmiro de Azevedo, que se recusou e não cumpriu as condições impostas na privatização da GESCARTÃO (sem que com isso tivesse sofrido qualquer penalização), quer a Portucel para aliviar as dificuldades financeiras e de liquidez do grupo SONAE. Por outro lado, o grupo Cofina-Lecta, com quem o Governo tem vindo a organizar uma muito pouco transparente operação de engenharia financeira, feita à medida. Qualquer das soluções não serve os interesses nacionais, mas dos grupos envolvidos. O sector da pasta e do papel é dos poucos onde Portugal pode ter uma política de fileira, desde a produção à transformação, que o Governo vai estilhaçar ao proceder à venda da Portucel. O único caminho que serve a economia portuguesa é mantê-lo no sector público, travando-se o processo de privatização que não tem qualquer justificação.

Quando tanto se ouve falar na preocupação dos centros de decisão serem preservados em Portugal, é preciso dizer que tal discurso não passa de um amontoado de palavras sem consequências a menos que seja posto termo à irresponsável política de privatizações que não serve os interesses do Pais nem dos trabalhadores, não obedece a nenhuma racionalidade económica e nem sequer tem servido para criar e consolidar grupos económicos e empresas nacionais. Os que existem e são motivo de exemplo não se construíram, diga-se em abono da verdade, à custa de quaisquer privatizações. Pelo contrário, com as privatizações o que tem acontecido sistematicamente é a transferência da sua propriedade, da sua gestão, do seu controle, para mãos não nacionais, com os seus centros de decisão a serem transferidos para fora do País e a seguirem as estratégias de quem as comprou que pouco têm a ver com os interesses do País.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O Governo vai mal, seja ao nível do comportamento e da ética de muitos dos seus membros seja pelas políticas que desenvolve. Mas os últimos acontecimentos demonstraram que, apesar da sua maioria, o Governo não pode fazer tudo o que quer. É a altura de mais e mais portugueses partilharem de um vivo sobressalto com a situação do País e com o caminho para o desastre para onde o Governo o conduz, reforçando o combate contra políticas injustas, feitas de privilégios e ao serviço de interesses privados, a favor de políticas públicas que defendam a qualidade de vida e o emprego, por uma alternativa, à esquerda, que tão cedo quanto possível abra outra esperança e outro futuro para os portugueses.

Disse.