Intervenção do Deputado
Lino de Carvalho

Declaração política sobre a política do Governo

18 de Dezembro de 2002

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Finalmente ! Depois de um conjunto de operações de “malabarismo orçamental” – para citar um ilustre ex-Presidente do Grupo Parlamentar do PSD – e de contabilidade criativa; depois de um conjunto de decisões desgarradas, que congelam o futuro das economia e não resolvem nenhum problema de fundo do País; depois de múltiplas medidas extremamente gravosas para o rendimento e o emprego dos portugueses o Governo está pronto para anunciar, como se de uma grande vitória se tratasse, que cumpriu a obsessão fixada para o défice de 2002. E mesmo que só seja do subsector Estado, a Ministra das Finanças lá dirá que o resto já não é da responsabilidade do Governo mas das autarquias e do Serviço Nacional de Saúde. Seja como for o cenário já está montado.

Mas sejamos claros. Nas condições em que eventualmente o venha a anunciar (se o conseguir, apesar de todos os truques) não há lugar à abertura de qualquer garrafa de champanhe. Pelo contrário. O conjunto de opções desnecessárias e erradas tomadas desde Maio podem satisfazer o ego do Primeiro-ministro e da Ministra das Finanças mas estão longe de constituírem um verdadeiro processo de consolidação orçamental e vão-se traduzir, em particular no ano de 2003, em nefastas consequências para a economia, para todos quantos dependem dos rendimentos do seu trabalho, para o mundo empresarial, especialmente para as micro e as pequenas empresas.

A verdade é que o Governo se enganou em todas os cálculos de receitas fiscais que apresentou no Orçamento rectificativo de Maio passado. No final deste ano teremos provavelmente menos cerca de 620 milhões de euros do que as previsões e isto se se mantiver em Dezembro a mesma curva de receitas idêntica à do passado. Assegurou aumentar o IRC em 5,6%. Iremos atingir o final do ano com menos 5,2%! Aumentava o IRS em 2,4%. No final será exactamente o inverso, menos 2,4%! E assim é também no IVA (apesar do agravamento em dois pontos percentuais), no Imposto Automóvel ou no Imposto de Selo. O único que vai gerar receitas superiores às projectadas é o ISP, à custa em grande parte do aumento efectivo do respectivo Imposto.

Face à evidente derrapagem das receitas fiscais – que tanto o Governo e em especial a Ministra das Finanças criticavam ao Partido Socialista – aí fomos sofrendo os efeitos desse comportamento esquizóide do Governo com medidas desesperadas e irracionais que não preparam, pelo contrário hipotecam, o futuro e vão transformar já 2003 num ano negro para os portugueses. Começou pela dramatização do discurso sobre o estado das finanças públicas lançando, só com isso, a inquietação e a retracção no País. Ficaremos, aliás, na história da União Europeia, como o único País que implorou, por meras e inaceitáveis razões de combate político interno, para que lhe agravassem o défice das contas públicas que tinha apresentado e o penalizassem por isso. A seguir tivemos a venda do património do Estado ao desbarato, sem nenhuma programação, sem muitas vezes se dar conta, sequer, do que estava a vender a rastos de barato, contrariando tudo quanto a própria Ministra das Finanças, então deputada, tinha criticado ao Governo do PS em Setembro de 2000. Como esta operação se revelou um fracasso congelou-se metade – no Estado – e 80% nos Serviços e Fundos Autónomos, de forma cega, das verbas ainda disponíveis para despesas até ao final do ano, colocando em colapso o funcionamento de muitos serviços e adiando para o ano de 2003 o pagamento de dívidas aos fornecedores, e amputaram-se brutalmente as despesas de investimento, seguramente acima de 20%. Como tal não se revelou suficiente criou-se um novo perdão fiscal que também tanto o PSD tinha criticado no passado. Renegociou-se a dívida de Angola em condições que estão longe de estar esclarecidas. Obriga-se grandes empresas com capitais públicos a antecipar por conta o pagamento de IRC. Vendeu-se a correr a rede fixa de telecomunicações da PT que, em 1994, o mesmo PSD tinha decidido manter na propriedade do Estado por razões de interesse nacional. Veremos se dentro de algum tempo este bem público não estará também em mãos não nacionais. E, finalmente, aí temos o último coelho tirado da cartola, contra todas a promessas do PSD, a reposição de portagens na CREL com a respectiva antecipação de receitas a pagar pela BRISA. Esta última medida, pelo seu carácter totalmente irracional, tem merecido, e bem, o protesto generalizado das populações e dos autarcas, incluindo alguns ilustres eleitos do PSD. Com tal decisão o Governo sacrifica ainda mais as já penalizadas populações das zonas limítrofes de Lisboa, prejudica a economia da região como, ao arrepio de todo o bom senso em matéria de planeamento e ordenamento rodoviário, vai atirar de novo para dentro de Lisboa com muito do tráfego que hoje circula pela CREL. Mas mais do que isso. Tudo aponta que com esta operação de financiamento junto da Brisa quem fez um excelente negócio, altamente lucrativo para si própria, foi a Brisa, como, aliás, foi indiciado ontem pelo Ministro Valente de Oliveira. O Governo tem, pois, muito ainda a esclarecer sobre os verdadeiros contornos do negócio e de como se chegou, com base em que estudos de tráfego, à verba de 288 milhões de euros. Pela taxa de desconto, a contrapartida pela qual a Brisa se remunerou, que o Ministro ontem divulgou é legítimo afirmar desde já que, com esta operação, o Estado perde, pelo menos, um valor idêntico ao que se propõe encaixar.

Mas feito isto tudo sobra uma pergunta: e, agora, esgotados todos os números de ilusionismo, vendidos os anéis e os dedos, o que é que sobra para 2003, onde o Governo se propõe atingir um défice de 2,4% e a situação económica ainda vai ser pior ?

O País está, pois confrontado, com um conjunto de decisões tresmalhadas do Governo, sem uma estratégia sustentada para o futuro, com o único fito de conseguir receitas imediatas e a qualquer preço, da forma mais fácil e mais rápida, só para salvar a face da Ministra das Finanças. Mas estará o País numa situação de tal modo desesperada, à beira de um qualquer precipício, sob qualquer inevitabilidade de sanções externas que, em todo o caso, justificassem este desespero? Contra as ideias feitas que o Governo tem vendido e que muitos alegados analistas repetem até à exaustão é preciso responder claramente que NÃO. Primeiro, é visível, que depois do Conselho ECOFIN de Novembro, com a situação orçamental da Alemanha e da França e com os efeitos de uma conjuntura económica global desfavorável, a Comissão Europeia foi obrigada a reconhecer a “estupidez” do Pacto de Estabilidade e a introduzir mecanismos de flexibilização das suas regras. Não havia, pois, já lugar para nenhuma ameaça de sanção, mesmo que Portugal apresente no final de 2002 um déficit superior a 3%. Por outro lado se é necessária uma política de disciplina nas contas públicas nada, mas mesmo nada, na doutrina económica faz coincidir rigor com a necessidade a todo o transe de se atingir um défice de 3% ou menos, mais a mais em período de travagem das economias. De tal modo que começa já a fazer caminho a necessidade de determinadas despesas de investimento não contarem para o cálculo do défice corrente.

Mas se em 2002 a situação é já a que é devido a uma política económica e orçamental estupidamente restritiva e, ela própria recessiva, será no próximo ano, em 2003, que os portugueses irão sentir todo o peso de políticas erradas e socialmente desequilibradas. O aumento dos impostos aprovados pela maioria PSD/CDS-PP no Orçamento de Estado vão, como dissemos, abater-se em particular sobre os trabalhadores dependentes com o agravamento do IRS e as micro e as pequenas empresas com o aumento exponencial dos pagamentos especiais por conta e das liquidações no regime simplificado. Os primeiros aumento dos preços, muito acima da inflação oficialmente assumida pelo Governo no Orçamento já aí estão a ser anunciados: 2,8% na electricidade (quando em Espanha, por exemplo, o aumento não irá além de 1,6%, o que faz com que os preços da electricidade, em Portugal, para clientes domésticos e industriais fiquem, respectivamente, 17% e 5,8% mais caros que do outro lado da fronteira); 3,5% nas taxas de portagens; 5% nos medicamentos de custo inferior a € 5 e o mais que está para vir. A quebra do poder de compra dos portugueses já é visível agora, no Natal, e vai agravar-se para o próximo ano. A actividade económica, designadamente o comércio, já está e vai retrair-se ainda mais. O desemprego aí está a subir, com particulares consequências para os contratados a prazo. A taxa oficial do INE, que como sabemos está muito abaixo da realidade já está nos 5,1%, acima aliás da taxa com que o Governo se tinha comprometido no Plano Nacional de Emprego para 2002. Mas confirmando o que sempre temos dito é o próprio Secretário de Estado do Trabalho que afirmou recentemente que a verdadeira taxa de desemprego está 30% acima da taxa oficial o que a atira para a ordem dos 6,6%, isto é, para a ordem dos 360.000 desempregados. E para o ano, seguramente, aproximar-nos-emos da barreira dos 400 mil trabalhadores sem emprego. Contrariando todas as promessas – aqui como no resto – os aumentos de pensões de reforma e do salário mínimo nacional para 2003 são os mais baixos de sempre. Entretanto, todos os indicadores de confiança e projecções para 2003 perspectivam não uma recuperação mas o acentuar de uma grave crise económica e social.

Neste contexto a política do Governo, subordinada de forma extrema e fundamentalista à questão do déficit, é exactamente a oposta daquela que o País precisa. Corte no investimento público quando se exigia o contrário como alavanca de apoio à redinamização da economia. Agravamento de impostos para os sectores mais fragilizados e medidas desgarradas de perdão fiscal e, em contraste, alívio escandaloso da tributação dos rendimentos obtidos no offshore da Madeira, anulação definitiva da tributação dos ganhos em bolsa e das SGPS, ausência de uma política séria de combate à fraude e á evasão fiscal. Continuamos a ser o País da Europa onde 2/3 das empresas não pagam um tostão de imposto sobre os lucros, onde é maior a fuga nos Impostos Especiais de Consumo, onde cada trabalhador por conta de outrém paga, em média, 3 vezes mais de IRS que um profissional liberal e seis vezes mais que um empresário em nome individual. Em vez de se apostar em políticas que promovessem a competitividade por via da melhoria da organização e da gestão das empresas e da administração pública e ajudassem ao aumento da produtividade pelo lado da formação e qualificação profissional e da melhoria das políticas de educação e ensino a única medida visível que o Governo propõe é um Código Laboral que permita desregulamentar as relações de trabalho e reduzir ainda mais os custos de trabalho. Em suma, são sempre os mesmos a pagar a crise e a sofrer as opções erradas e de classe do Governo, acentuando-se as injustiças e as desigualdades sociais. Em consequência é inevitável a contracção do consumo, do investimento, da economia.

Se o PSD e o CDS-PP tivessem falado verdade aos portugueses durante a campanha eleitoral e tivessem divulgado metade que fosse das medidas que têm vindo a tomar seguramente que hoje não seriam Governo. Deve ser por causa da consciência pesada de que enganaram os portugueses que agora, quando abrimos o site da Direcção Geral do Orçamento temos música de Natal a acompanhar-nos. De tal modo intensa e permanente que até perdemos a vontade de ir consultar os negros números da execução orçamental. Não vá a ilusão perder-se.

Disse o Primeiro-ministro no final da semana passada que o Governo tinha metido travão às quatro rodas e invertido a marcha do País. Acreditamos que sim. Invertida a marcha a caminho de um desastre maior que pode e deve ser interrompida. E sê-lo-á. Com o movimento social de descontentamento e protesto, com a necessária convergência das forças que neste hemiciclo se opõem à derrapagem do País.