Intervenção do Deputado
Bernardino Soares

Declaração política sobre a gravidade
das medidas do Governo

17 de Outubro de 2002

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Nenhum incidente, nenhuma manobra nos afastará do debate e da denúncia da gravidade das medidas do Governo e de trazê-los a esta Câmara.

Em vésperas de debate orçamental, aparece claro aos olhos de cada vez mais portugueses o verdadeiro carácter da política do governo. Passaram os tempos da grande ilusão das promessas eleitorais, aqui e ali salpicadas de demagogia populista. Agora no Governo, fazem-se promessas sempre com prazos bem dilatados, não vá alguém lembrar-se de pedir contas ainda nesta Legislatura.

Propõe-se o alargamento da escolaridade obrigatória para o 12º ano de escolaridade mas com a certeza de que a calendarização de tal objectivo, se for de facto sincero, só será conhecida algures nos próximos anos mas, entretanto, não se vislumbram os meios que permitissem iniciar o caminho para aquela decisão.

Propõe-se a convergência das pensões com o Salário Mínimo Nacional para daqui a 7 ou 8 anos, o que já estava e melhor consagrado na Lei de Bases em vigor e entretanto não se vislumbra tal preocupação no Orçamento proposto para 2003.

O Governo e a maioria bem gostariam que na Assembleia da República não se discutissem as questões que mais afectam o país, que mais preocupam a população. Bem gostariam que a cortina de fumo da demagogia geral do seu discurso fosse suficiente para esconder a gravidade do caminho que querem impor ao país e aos portugueses. Mas não terão essa sorte.

O Governo invoca repetidamente a estafada justificação da pesada herança, aliás já utilizada no passado, mas não conseguirá esconder que ela é pesada mas para os portugueses e as portuguesas e que com o actual Governo se produz um severo agravamento das dificuldades existentes.

O Governo dramatiza a situação do país no que respeita às contas públicas, apresentando-nos à beira de uma hecatombe orçamental, que nem por isso conseguirá esconder que os sacrifícios que pede à generalidade dos portugueses não se aplicam aos beneficiados de sempre.

O Governo repete a bafienta proclamação de que está cá não para dialogar, mas para decidir, que nem assim esconderá a sua falta de flexibilidade democrática para discutir com os trabalhadores, os sindicatos, a sociedade as suas políticas. Diz o Primeiro-Ministro que o país precisa não de greves, mas de concertação; mas não há margem para concertação quando o objectivo de uma das partes é destruir património fundamental da outra.

A resposta dada ontem pelos trabalhadores da Administração Pública à política que o Governo lhes propõe foi sem dúvida de clara e inequívoca rejeição. O caso não é para menos. Está em marcha uma tentativa de destruição do vínculo de emprego público, dos direitos dos trabalhadores deste sector e da própria Administração Pública como garante de direitos dos cidadãos e do funcionamento do Estado.

O Governo enfraquece o Estado quando atrofia os serviços ao proibir as contratações ou renovações de contratos, criando reais dificuldades de funcionamento, nalguns casos tendo em vista facilitar operações de privatização. A isto se juntam os constrangimentos orçamentais que certamente criarão acrescidas dificuldades ao funcionamento dos serviços.

O Governo enfraquece o Estado e desrespeita os trabalhadores da Administração Pública quando os atira para um novo quadro de disponíveis, agora chamado de supranumerários, ofendendo a sua dignidade e os seus direitos fundamentais enquanto trabalhadores

O Governo enfraquece o Estado quando se prepara para destruir o vínculo de emprego público, empurrando os trabalhadores da Administração Pública para o contrato individual de trabalho, o que significará certamente em muitos sectores, como é o caso da saúde, a destruição ou minimização das carreiras.

O Governo enfraquece o Estado quando, apesar de os empurrar para a situação de disponíveis, nega a dezenas de milhares de trabalhadores os direitos e expectativas existentes em relação à sua aposentação, chegando ao cúmulo de querer fazê-lo de forma retroactiva.

O Governo enfraquece o Estado quando, como discutiremos brevemente, pretende condenar mais um ano, os trabalhadores da Administração Pública à diminuição real dos seus salários, com a agravante de querer fazer dos sindicatos os seus capatazes e de empurrar para eles a responsabilidade de repartir o que o Governo não quer dar.

O Governo usa da demagogia e da hipocrisia quando utiliza, de forma mais ou menos visível, a táctica da divisão dos trabalhadores. Quer dividir os trabalhadores do sector público e do privado, os desempregados e os empregados, os jovens e os menos jovens, os precários e os efectivos. Quer fazer crer que os trabalhadores da Administração Pública têm direitos a mais em relação aos do sector privado. Mas os trabalhadores sabem que a ofensiva contra os direitos de quem trabalha visa todos, e que a diminuição dos direitos e dos salários dos trabalhadores da Administração Pública é sempre uma alavanca para uma maior exploração no sector privado. Sabem que uma política de destruição e privatização dos serviços públicos é uma política que lesa todos os trabalhadores e toda a sociedade.

Mas seria injusto não dizer que a contenção governamental em relação à Administração Pública tem excepções. É que sempre que se trata de inundar o aparelho de Estado com os seus rapazes, sejam do PSD ou do CDS, não há restrições. Veja-se o incrível caso dos 18 directores distritais da segurança social, demitidos de uma vez só. Veja-se quem são os seus substitutos, em geral com cartão do PSD e do CDS, e que reúnem também requisitos adicionais como já terem sido preteridos para outros cargos públicos, numa estranha lógica de compensação, ou como recompensa da disponibilidade para candidaturas autárquicas, ou até para compensar solidariedades em questões partidárias internas. Um escândalo. E nem vale a pena vir invocar a prática anterior de governos socialistas, que igualmente criticámos, porque, e para utilizar linguagem bem compreendida por este sector do governo, não se expia um pecado com outro de sentido contrário.

E há ainda mais excepções.

É particularmente chocante que, ao mesmo tempo que o Governo exige sacrifícios salariais e de direitos aos trabalhadores da Administração Pública, tenha metido na gaveta a diminuição dos benefícios e regalias dos administradores e gestores públicos.

De facto, o Governo fez grande alarido da intenção de limitar esses benefícios, aprovando na generalidade um Decreto-Lei sobre esta matéria a 1 de Agosto. Pois bem este diploma nunca foi sequer enviado para as organizações sindicais para consulta, nem retomado em Conselho de Ministros. O Governo fez o número só para efeito público.

Nem conseguem já passar despercebidas outras utilizações do aparelho de Estado para fins partidários, como a escandalosa convocatória dirigida aos directores dos centros de saúde e seus colaboradores para estarem presentes numa iniciativa do PSD e do CDS, feita pela sub-região de saúde do Porto e pelo seu coordenador, que tanto quanto sabemos ainda está em funções.

Não menosprezamos os problemas da Administração Pública mas não confundimos a necessária modernização com a anunciada liquidação. Neste momento estão em causa importantes direitos dos trabalhadores. Mas está também em causa a defesa do Estado e da Administração Pública como garante da soberania, da prestação de serviço público, do assegurar das funções que lhe estão atribuídas.

Disse.