Debate do Programa do XV Governo Constitucional
Intervenção do Deputado Lino de Carvalho
17 de Abril de 2002

 

Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-ministro
Senhores Membros do Governo
Senhores Deputados,

Este é um programa há muito anunciado desde que o PSD e o CDS/PP foram chamados a formar Governo. Um programa que, se nalguns sectores, é a continuidade de políticas definidas, executadas ou anunciadas anteriormente pelo Partido Socialista, nem por isso deixa de ser um Programa de claro retrocesso social onde as opções conservadoras e neo-liberais, de desresponsabilização do Estado anunciadas em todos os domínios, não vão resolver nenhum problema do País e dos portugueses, mas pelo contrário agravá-los a todos.

São sobretudo três as áreas onde esta opção é mais visível:

a) uma dramatização da situação das finanças públicas para justificar medidas restritivas e o aperto do cinto aos portugueses;

b) uma transferência para o sector privado de funções estratégicas que ao Estado cumpre assegurar no plano económico, social e cultural;

c) um ataque a direitos sociais e laborais dos trabalhadores que, nalguns casos, constituem património civilizacional conquistado por duras lutas ao longo de gerações:

O Governo, tal como, aliás, o PS tinha de algum modo feito igualmente na campanha eleitoral, empola o desequilíbrio das contas públicas mas depois não ataca onde se impunha que o fizesse, na receita fiscal. É verdade que o PS tem responsabilidades na situação herdada por este Governo. O desequilíbrio já verificado neste primeiro trimestre não constitui, para nós, nenhuma surpresa. A verdade é que no próprio debate do Orçamento de Estado para 2002 nós logo criticámos o facto das receitas que o Governo então apresentou estarem claramente sobreavaliadas e as despesas subavaliadas para o Governo poder apresentar um déficit final completamente artificial. Estimámos mesmo que essa sobreavaliação, só em IRC e IVA seria da ordem dos 109 milhões de contos. São estas operações de engenharia e criatividade contabilística a que têm conduzido os sacrossantos indicadores do Pacto de Estabilidade (aceites pelo PSD e pelo PS), em particular o percurso para um déficit zero em 2004, que o Governo nem sequer, num único momento questiona - como já o fazem países como a França ou a Alemanha - sabendo como sabe que tal valor é completamente arbitrário, desadequado dos níveis de desenvolvimento de cada Estado membro, rígido em relação a períodos de contracção ou crise económica e sabendo ainda que tal valor só seria possível atingir com uma intolerável compressão das despesas sociais, do investimento público, das condições de vida dos portugueses, da conflitualidade social. Os resultados estão à vista com a execução orçamental referente ao primeiro trimestre deste ano. Esta é uma questão que, obviamente, ao PS compete esclarecer. Contudo também não restam dúvidas que o Primeiro-ministro e a Ministra Manuela Ferreira Leite estão a dramatizar o desequilíbrio das finanças públicas, para depois poderem aparecer, no final deste ano, como os campeões da sua recuperação e da redução do déficit e poderem apresentar boas contas a Bruxelas, sem ter em conta os interesses nacionais. Mas para terem também uma justificação para a política de diminuição da despesa, em particular das despesas sociais e dos salários dos trabalhadores da administração pública bem como para o recuo das políticas públicas.

Por isso, é preciso começar por dizer que ao contrário do que anda a ser afirmado, o problema do País em matéria de finanças públicas não é essencialmente o problema da despesa mas da receita. A despesa corrente primária em Portugal é, aliás, inferior á média da União Europeia em cerca de 4 pontos percentuais quando, pelo contrário, até se justificaria que fosse superior tendo em conta o atraso de muitos dos nossos indicadores em matéria de acesso à saúde e à educação, de baixos salários e pensões de reforma, de falta de investimento na modernização da Administração Pública e na valorização e qualificação dos seus trabalhadores. Isto não quer dizer que ignoremos o que se passa nesta matéria. Mas aqui a orientação que deve ser prosseguida é o combate ao laxismo, ao desperdício em áreas como a gestão do património do Estado, à duplicação de estruturas da Administração Pública, como os institutos, associações e fundações não justificáveis, que o Governo também anuncia combater (e com o qual estamos de acordo) mas em que é preciso recordar que se trata não só de uma herança do PS mas também dos anteriores Governos do PSD e de Cavaco Silva. É este o combate que é preciso travar. Nunca o combate contra os já débeis salários dos trabalhadores da Administração Pública e a estabilidade do emprego. Mas é na área da receita que se deveria desencadear o combate mais profundo. Ora, o Governo recusa-se claramente a abordar este problema na sua dimensão total porque, evidentemente, isso tocaria os grandes interesses económicos e financeiros e esses são os que estão, nos tempos que correm, sentados à mesa do Governo e do Orçamento. É isso que explica que o Governo nada diga sobre o escândalo da pouco mais que nula tributação do sector segurador e bancário; que, ao contrário do que tinha prometido o agora Primeiro-ministro, nada tencione fazer para reduzir os benefícios totalmente ilegítimos e irracionais obtidos por actividades financeiras e especulativas nos off shores; não ataque os benefícios fiscais não justificáveis e, pelo contrário, revogue a tributação das mais valias que, diga-se em abono da verdade, o Partido Socialista já tinha suspenso no OE para 2002. Que a nada se comprometa para reforçar os meios da Administração Tributária. Portugal vai continuar a ser assim uma espécie de paraíso fiscal onde é maior a fuga e a evasão fiscal em toda a zona da União Europeia. Este é o caminho que qualquer Governo, seriamente preocupado com o estado das finanças públicas, deveria escolher como primeira prioridade. Este é o caminho que o Governo do PSD/CDS não escolhe, por razões óbvias, preferindo apertar o cinto aos portugueses e aumentar os impostos, designadamente o IVA como a Sra. Ministra das Finanças já indiciou. Nas eleições foram as promessas de diminuição de impostos. Agora é a realidade do seu aumento. É isto, senhor primeiro-ministro, é isto senhores deputados, que está na base da desconfiança dos portugueses em relação à vida política por causa dos Partidos, como o PSD e o CDS/PP, que tudo prometem nas campanhas eleitorais mas que tudo esquecem quando chegam ao Governo.

E, com o pretexto de reduzir a despesa e a presença do Estado mas também e, sobretudo, por clara opção ideológica, o Governo, aprofundando políticas anteriores, aposta na privatização de quase tudo que ainda há para privatizar na área económica e avança com um impulso novo para as áreas sociais. Este é, aliás, o principal traço que atravessa todo o Programa do Governo: desresponsabilização do Estado, entrega à voracidade dos interesses privados e da lógica do lucro de estratégicas empresas e sectores da economia nacional que, como tem acontecido acabam invariavelmente nas mãos de interesses transnacionais, retirando ao Estado qualquer possibilidade de intervir em áreas fundamentais para a defesa do interesse público e da própria soberania nacional: Galp Energia, TAP, sectores de transportes, entre outros. Mas vai mais longe. Sem nenhuma justificação avança para a consecussão de um enorme erro, porventura irreparável, que é a da privatização ou desaparecimento puro e simples de um dos canais da RTP e na RDP, que além do mais tem uma situação financeira estável, questiona a RDP 2 e propõe-se alienar a Antena 3, estações inquestionavelmente prestigiadas e que prestam um notável serviço público. Não só no mercado do audio-visual não há espaço para um novo canal de televisão privado - o que, só por si, condena a operação ao insucesso - como o Governo comprometendo ilegitimamente a sua e futuras administrações, demite-se do Estado ter uma política séria e plural de comunicação fazendo, aliás, o contrário do sentido em que vai a discussão pública nos outros países europeus. É, provavelmente, o exemplo de Berlusconi a atrair este nosso Governo da direita portuguesa, sempre pronta a imitar o pior que nos vem do lado de lá dos Pirinéus. Mas não satisfeito o PSD/CDS propõe-se igualmente avançar ainda mais na privatização dos serviços de saúde - o próprio Serviço Nacional de Saúde já é apresentado como um sistema misto entre o Estado, os privados e instituições sociais - na Educação e, especialmente na Segurança Social, avançando aqui com propostas contrárias à Lei de Bases recentemente aprovada neste Assembleia da República e contrárias aos próprios princípios constitucionais. Propostas de privatização, através do chamado plafonamento, de uma parte significativa da Segurança Social, acima dos cinco salários mínimos, de acordo com as posições públicas do Ministro Bagão Félix, e transferindo para os Fundos de Pensões uma parte substancial das poupanças dos trabalhadores portugueses. É a séria tentativa de levar para a frente aquilo que é um objectivo antigo do sector segurador e financeiro, de que o senhor Ministro Bagão Félix é reconhecidamente um destacado representante ao mais alto nível do Estado: a transformação de um sector solidário, universal e público, construído fundamentalmente com as contribuições do trabalho por conta de outrém, por um sistema ao serviço dos mercados financeiros, pondo em causa a sustentabilidade financeira futura do Sistema e, portanto, a sustentabilidade das próprias pensões de reforma e das restantes prestações sociais. É o que o Governo propõe ao País, com o anúncio da alteração da Lei de Bases e a redução do financiamento do Sistema Público de Segurança Social. Passariam a existir, nesta concepção, dois sistemas de segurança social: um, público, assistencialista, de pensões e prestações mínimas, onde ficariam os portugueses de mais baixos recursos. Um outro, privado, dos Fundos de Pensões, para onde se encaminhariam os privilegiados. Mas o Governo que se desengane: se concretizar o caminho que anuncia no Programa do Governo vai ter sem dúvida a forte oposição e luta dos trabalhadores portugueses e, aqui, na Assembleia da República, do Partido Comunista Português. Não aceitaremos a fragilização e desmantelamento de uma conquista civilizacional dos trabalhadores, de um direito social tão duramente conquistado.

Obviamente que este edifício teria de ser completado com a proposta de diminuição dos direitos laborais, expectativa antiga do grande patronato português. Em vez de se caminhar pelo caminho mais sensato e sério: a da valorização do trabalho e dos trabalhadores, da sua formação e remuneração, da melhoria da gestão e dos meios tecnológicos das empresas com vista a um incremento da competitividade e produtividade sustentados, o Governo anuncia-nos uma política centrada numa maior precariedade no trabalho e em baixos salários. Não uma orientação que convoque os empresários mais inovadores mas para um tipo de empresariado conservador e ultrapassado, sempre pronto a reclamar baixos salários e mais facilidades para despedir. É o que o Governo nos anuncia com as propostas de maior adaptabilidade e flexibilidade da organização do trabalho, eufemismos para anunciar mais facilidades nos despedimentos, com uma maior flexibilidade nos horários de trabalho, com o privilégio ao trabalho ao trabalho precário e a tempo parcial e com a generalização dos contratos individuais de trabalho na Administração Pública. Seria o reino da instabilidade e da desvalorização do factor trabalho. Seria porque também aqui o Governo terá de contar com a séria oposição e luta dos trabalhadores portugueses.

Senhor Presidente,
Senhores deputados,

Este é um programa que não serve os interesses do País e dos portugueses. Este é um Orçamento virado para a desvalorização do trabalho e para o privilégio do capital. Este é um Orçamento que opta pela desresponsabilização do Estado em relação às suas funções e privilegia a lógica dos interesses do mercado e do lucro, pondo em causa direitos mínimos dos portugueses. Por isso este Programa merece, como não podia deixar de ser, o voto negativo do PCP.

Disse.