Lei de Finanças Locais
Intervenção do deputado Luís Sá
8 de Junho de 1998

 

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhores Deputados,

O regime financeiro das autarquias foi sempre motivo de grandes lutas. Na verdade, as autarquias foram eleitas pela primeira vez em Dezembro de 1976 sem estar definido um regime de finanças locais. Foram alvo de favores e desfavores consoante a cor política. Só através de muitas lutas e com o apoio de sempre do PCP conseguiram a aprovação da Lei 1/79 de 2 de Janeiro. A aprovação foi unânime, mas só depois de um combate constante. E, mostrando a hipocrisia de muitos, foram muitos os anos em que não foi cumprida. Nos anos do bloco central surgiu uma nova lei, que pretendia fazer pagar às autarquias, e através delas, às populações, o custo da austeridade.

A Lei de Finanças Locais actualmente em vigor foi positiva e desempenhou um papel importante. Para além disso, o método da sua elaboração foi exemplar. Assentou na participação e colaboração estreita com as autarquias. O grande problema verificado foi mais uma vez o seu incumprimento, apesar da aprovação por unanimidade. Ao mesmo tempo, regressaram figuras de financiamento discriminatório e sem critérios transparentes e objectivos. Mais uma vez, às autarquias restou lutar, e lutar constantemente, sempre com o apoio do PCP. O que se vai passar aqui hoje é mais um episódio desta luta.

Recordo que o PCP acompanhou o movimento para a sua revisão surgidos dez anos depois, na base dos ensinamentos do passado. Apresentou um projecto sério, realista, tecnicamente apurado, mas firmemente descentralizador como contribuição para o procedimento legislativo aqui desencadeado.

O Governo e o PS, pelo contrário, adoptaram em 1997 uma postura fechada em vários aspectos. Aconteceu isso em especial no montante de verbas e na estreita ligação que pretenderam estabelecer entre as verbas das autarquias e novos encargos com as atribuições e competências.

Hoje, ao discutirmos esta proposta de lei, temos presentes os mesmos objectivos fundamentais, que anunciámos em 1997, e que aliás continuam a coincidir estreitamente com as aspirações dos municípios e freguesias. Podemos resumi-los em cinco pontos:

1. A afectação aos municípios de um montante que visa caminhar determinadamente para repor o nível de meios financeiros que correspondem ao que teria resultado da aplicação da lei de finanças locais em vigor. Continuamos a pensar que seria ilegítimo e condenável que o processo de elaboração de um novo regime de finanças locais viesse a construir-se sobre os escombros de sucessivos incumprimentos do regime em vigor.
2. A adopção de um novo critério de variação do FEF que garanta uma maior e melhor equidade na repartição das receitas públicas e que o defenda de factores que acentuem a sua vulnerabilidade face a determinadas conjunturas.
3. A opção por critérios simplificados, consolidados, mais claros e transparentes para a distribuição do FEF pelos municípios, por forma a assegurar uma mais correcta redistribuição dos recursos.
4. O reforço da capacidade financeira das freguesias, traduzida não apenas no aumento substancial dos recursos postos à sua disposição mas também através da autonomização plena dos mecanismos de transferência, que passam a ficar directamente dependentes do Orçamento do Estado.
5. A consagração de disposições que impedem a transferência forçada e compulsiva de novos encargos para as autarquias, bem como a redução das suas receitas através do recurso à multiplicação de isenções sobre receitas cuja arrecadação é pertença das autarquias.

Seria absurdo e pouco sério aproveitar o processo de criação de um novo regime de finanças locais para, ainda que aumentando os recursos financeiros das autarquias, associar-lhe uma transferência de responsabilidades que se traduzisse não na elevação da sua capacidade real de realização e investimento, mas num mecanismo de redução prática da sua capacidade financeira.

Há aspectos em que o Governo revela agora ter retido alguns pontos do debate travado. Não temos nenhum problema em reconhecê-lo e assinalá-lo. Podemos sublinhar, por exemplo, a autonomização deste problema em relação à transferência de novas atribuições e competências ou a adopção de uma "arquitectura" do sistema de finanças locais mais próximo do projecto de lei do PCP já aprovado oportunamente. Este sistema pode criar uma situação menos vulnerável às flutuações da conjuntura económica. Assinalamos também a autonomização do financiamento das freguesias em relação aos municípios.

Há, no entanto, outros aspectos que são importantes e em que a proposta de lei se revela claramente insuficiente.

Em primeiro lugar, embora do ponto de vista das verbas a transferir a nova proposta de lei seja um avanço em relação à proposta de 1997, continua longe de caminhar para a recuperação da capacidade financeira do Poder Local, afectada pelo incumprimento da lei de Finanças Locais.

A repartição financeira entre a Administração Central e Local assente na média aritmética do IRS, IRC e IVA merece a nossa concordância. Mas a percentagem está longe de garantir a recuperação. Seria preciso aumentar a percentagem de 33,5% para valores superiores, mesmo admitindo situações de transição.

A exigência defendida é realista, na medida em que não implica a necessidade de aumento da carga fiscal. E, se for essa a preocupação, nem sequer comprometerá os objectivos de convergência europeia.

De facto, uma participação de 35% para os municípios e 3,5% para as freguesias, no período de transição 1999-2000 representa um acréscimo de 60 milhões de contos, valor que ascenderá a 110 milhões de contos numa participação de 40% (municípios) e 3,5% (freguesias), ou de 83 milhões de contos numa participação de 37,5% e 3,5%. Tais aumentos representam menos de 2% do total da receita fiscal (IVA + Impostos sobre o Rendimento).

Há de resto um aspecto a destacar. Desconhecemos, em concreto, o Plano de Desenvolvimento Económico e Social. Mas são conhecidas as orientações estratégicas da chamada Agenda 2000 (Desemprego, Competitividade, Rede de Cidades). Este facto leva-nos a considerar que, de uma forma geral, as autarquias não verão reforçada a sua capacidade de cofinanciamento através dos instrumentos comunitários. Por isso, há uma luta a travar em torno dos fundos comunitários. Mas a elaboração de uma nova lei de finanças locais deve ter em conta a substituição de financiamentos comunitários por recursos nacionais.

Em segundo lugar, a proposta não garante o aprofundamento do carácter redistributivo do volume de transferências. Este factor será corrigido se a participação do Fundo de Coesão for superior.

Actualmente os 183 concelhos com menos de 20 mil habitantes cada, com um peso de 18% da população, recebem 36,89% do FEF. Passariam para 31,89%. Os 92 concelhos com 20 a 70 mil habitantes cada, com um peso de 34% da população, recebem 35,35% do FEF. Passariam para 38,11%. Finalmente, os 30 concelhos com mais de 70 mil habitantes, com um peso de 48% da população, recebem 27,76% do FEF. Passariam para 29,99%.

Estes valores apenas são corrigidos para 35,57%, 36,09% e 28,33% por força do nº3 do art. 33º (que define que, em 1999, nenhum município pode receber menos do que teria naquele ano por aplicação da actual Lei). Esta repartição tenderá a manter-se nos anos seguintes sensivelmente igual por força do nº5 do art. 13º, que prevê para cada ano um acréscimo equivalente ou superior à taxa de inflação. Só que a dimensão desta correcção retira objectividade aos critérios definidos do nº2 do art. 13º independentemente da análise que se venha a fazer sobre estes.

Em terceiro lugar, a proposta de distribuição de verbas entre receitas correntes e receitas de capital merece igualmente uma análise crítica. A concretizar-se esta proposta existiriam 154 concelhos cuja receita corrente diminuiria, num montante total de 9,2 m.c.. Existem mesmo concelhos onde essa redução nas transferências correntes ultrapassaria os 20%. Em Penafiel é mesmo de 45,6%. Esta drástica redução, a concretizar-se, teria efeitos profundamente destabilizadores, particularmente em matéria de trabalhadores das autarquias.

Pelo que já foi referido conclui-se que o conjunto de critérios não é o mais adequado.

O critério do número de lugares em detrimento do número de freguesias, por exemplo, prejudica claramente as regiões em que o povoamento é mais concentrado. Por outro lado, não se compreende a variação do numero de lugares operada em apenas um ano, em dados que foram fornecidos pelo Governo.

Há outros critérios que são questionáveis. Por exemplo, a população residente com menos de 15 anos prejudica seriamente os municípios com menos dinamismo populacional. O critério do conforto e saneamento, tal como está, prejudica os municípios que mais trabalharam nesta área.

A população residente com menos de 15 anos constitui um critério que favorece os concelhos com menor desertificação. Por outro lado, são também importantes as preocupações dos concelhos com um excessivo peso de população idosa.

Por outro lado, julgamos que sempre que o Governo decida conceder benefícios fiscais os municípios devem ser compensados, e não só quando o seu parecer é desfavorável.

Julgamos também que a retenção de transferências para pagamento de dívidas (Caixa Geral de Aposentações, ADSE, Serviços Sociais, Administração Fiscal) não deve ultrapassar os 10% e deve pressupor o reconhecimento da sua existência por ambas as partes. A existência desta possibilidade deve afastar a admissão da administração central lançar juros de mora sobre estas dívidas.

Também o regime de crédito deve adequada ponderação, tendo em conta as suas largas incidências na gestão das autarquias.

Finalmente, a regulamentação dos contratos-programa deve assegurar que estes só existam para o Poder Central comparticipar em obras do Poder Local. Não pode servir para, por mecanismos de chantagem, o Poder Local financiar o Poder Central. Nem deve haver, por carências de regulamentação, a possibilidade de favores e desfavores.

Estas são algumas das questões que a proposta de lei nos suscita.

A nossa postura crítica será também uma postura construtiva. Mas depende de o Governo e o PS darem sinais positivos claros de que terão abertura para, nos trabalhos na especialidade, assegurar uma lei que se aproxime das preocupações, objectivos e princípios que nos norteiam.

Se assim for, trabalharemos intensamente para, nas próximas semanas, dotar as autarquias, as populações e o País de uma nova lei de finanças locais. Uma lei que contribua para fortalecer o Poder Local. Uma lei que seja instrumento de justiça e de desenvolvimento. Uma lei que contribua para a qualidade de vida e para realizar os direitos das populações.