«Neoliberalismo, Capitalismo e Democracia» A. J. AVELÃS NUNES Lisboa, 15 de Novembro de 2003 |
1. – Vem sendo cada vez mais frequente, nos vários domínios das ciências sociais, a análise das relações entre neoliberalismo e direitos humanos. Trata-se, ao fim e ao cabo, de tentar compreender em que medida são compatíveis, à luz do nosso tempo, as políticas neoliberais e a democracia. Questão central, se tivermos presente que o neoliberalismo é o núcleo da matriz ideológica da política de globalização que vem marcando a actual fase do capitalismo à escala mundial.
Procurarei mostrar como das concepções neoliberais decorrem posições que põem em causa direitos fundamentais tão importantes como os relacionados com a liberdade sindical e os abrangidos na estrutura do estado-providência e que trazem no seu bojo propostas tendencialmente totalitárias.
2. - A rejeição da lei de Say e do mito do pleno emprego constituem pontos fulcrais da obra de Keynes, a par da tese segundo a qual as situações de equilíbrio com desemprego involuntário são situações inerentes às economias capitalistas.
Para explicar as situações de desemprego involuntário (no sentido de que há pessoas sem emprego desejosas de trabalhar por um salário real inferior ao praticado), Keynes lança mão do conceito de procura efectiva, (o montante das despesas que se espera a comunidade faça, por ter capacidade para as pagar, em consumo e em investimento novo). Se esta procura efectiva não for suficiente para absorver toda a produção a um preço compensador, haverá desemprego de recursos produtivos.
Isto significa que, ao contrário do que defendiam os “clássicos”, o nível de emprego não depende do jogo da oferta e da procura no mercado de trabalho, antes é determinado por um factor exterior ao mercado de trabalho, a procura efectiva.
E significa também que é o volume do emprego que determina, de modo exclusivo, o nível dos salários reais, e não o contrário.
Keynes sublinhou, por outro lado, a importância do estado e a necessidade do alargamento das suas funções para salvar da “completa destruição as instituições económicas actuais” [leia-se: capitalistas]. E como as crises e os seus efeitos perniciosos se fazem sentir a curto prazo, Keynes veio defender que a política económica tem que adoptar uma perspectiva de curto prazo: “a longo prazo estaremos todos mortos”, como escrevia em 1923.
Desde a famosa conferência de 1924 sobre The End of Laissez-faire que Keynes advogou:
- a necessidade de uma certa coordenação pelo estado do aforro e do investimento de toda a comunidade;
- a necessidade de “uma acção inteligentemente coordenada” para assegurar a utilização mais correcta do aforro nacional;
- a necessidade de “uma ampla expansão das funções tradicionais do estado”;
- a necessidade da “existência de órgãos centrais de direcção” e de uma certa socialização do investimento.
Sobretudo na Europa, as políticas de inspiração keynesiana asseguraram, durante os trinta anos gloriosos (1945-1975), um bom ritmo de crescimento económico sem oscilações significativas da actividade económica, com baixas taxas de desemprego e taxas aceitáveis de inflação. Alguns chegaram mesmo a falar de “obsolescência dos ciclos económicos.” (Arthur Okun)
3. – No início da década de 1970, porém, começaram a verificar-se situações caracterizadas por um ritmo acentuado de subida dos preços (inflação crescente), a par de (e apesar de) uma taxa de desemprego relativamente elevada e crescente e de taxas decrescentes (por vezes nulas) de crescimento do PNB. Começava a era da estagflação.
Os neoliberais souberam aproveitar o desnorte dos keynesianos, surpreendidos com o “paradoxo da estagflação” (J. Stein), confusos perante o “dilema da estagflação” (Samuelson). Hayek veio proclamar que a inflação é o caminho para o desemprego. Começou então a “contra-revolução monetarista” e o “ideological monetarism” passou a ser “sistematicamente difundido a partir do outro lado do Atlântico por um crescente grupo de entusiastas que combinam o fervor dos primeiros cristãos com a delicadeza e a capacidade de um executivo de Madison Avenue.” (Nicholas Kaldor)
Os monetaristas vieram recuperar a velha lei de Say, segundo a qual não são possíveis crises gerais de sobreprodução: porque, visando a produção a satisfação das necessidades, a oferta cria a sua própria procura; e porque as crises parciais serão sempre temporárias, uma vez que as economias de mercado tenderiam sempre para uma situação de equilíbrio com pleno emprego.
E vieram também relançar a tese de que o desemprego é sempre desemprego voluntário: se o mercado de trabalho funcionar sem entraves, quando a oferta de mão-de-obra for superior à sua procura o preço da mão-de-obra (salário) baixará até que os empregadores voltem a considerar rentável contratar mais trabalhadores. As economias tenderiam para uma determinada taxa natural de desemprego, que traduziria o equilíbrio entre a oferta e a procura de força de trabalho, qualquer que fosse a taxa de inflação.
Com efeito, as teses monetaristas representam um regresso às concepções pré keynesianas, que identificavam a parte substancial do desemprego como desemprego voluntário, no sentido de que a existência de trabalhadores não empregados significa que, perante uma situação de salários reais demasiado elevados, os trabalhadores não aceitam uma redução do salário real suficiente para que a sua remuneração iguale a produtividade marginal do seu trabalho e os empregadores tenham interesse em os contratar. Por outras palavras: quem não tiver emprego poderá sempre encontrar um posto de trabalho, se aceitar um salário mais baixo que o corrente. Se o não aceitar é porque prefere (escolhe) continuar sem emprego, optando por procurar um novo posto de trabalho.
Um dos teóricos do desemprego voluntário vai mesmo ao ponto de afirmar que os despedimentos são um ‘véu’ cuja aparência é enganadora: os trabalhadores que são despedidos perdem o emprego por, implicitamente, rejeitarem a opção que lhes seria oferecida de continuarem a trabalhar por um salário mais baixo. Antecipando a objecção de que estas situações são muito raras na prática, A. L. Alchian alega que tal acontece porque a experiência ensinou aos empregadores que não teriam êxito quaisquer propostas e negociações com esse objectivo...
Se fosse caso para fazer ironia, dir-se-ia que as situações de desemprego não passariam, nas palavras amargas de dois Prémios Nobel, de situações de “férias voluntárias” (Robert Solow) ou de epidemia de “preguiça contagiosa” (Franco Modigliani).
4. – Assim desvalorizado o problema do desemprego, compreende-se que as políticas de inspiração monetarista concedam prioridade absoluta ao combate à inflação, secundarizando o objectivo do pleno emprego (ou da redução do desemprego). Por entenderem que a inflação é sempre e em qualquer lugar um fenómeno exclusivamente monetário (resultante de um aumento da quantidade de moeda em circulação em maior medida que o aumento da produção), procuram combater a inflação essencialmente com base na redução do crescimento da oferta de moeda, provocando a contracção da actividade económica e o aumento do desemprego. Os neoliberais esperam que daqui resulte uma redução dos salários reais capaz de assegurar às empresas uma taxa de lucro suficientemente elevada para estimular o aumento dos investimentos privados e o relançamento posterior da economia, com o consequente aumento do volume do emprego. Essencial é que se entregue a economia ao livre jogo das ‘leis do mercado’, se reduza a intervenção do estado na economia e se anulem os “monopólios sindicais.”
Em consonância com o seu conceito de inflação, o monetarismo teórico não culpa directamente os sindicatos pela inflação. Mas considera-os responsáveis pelo desemprego, dada a resistência que oferecem à baixa dos salários nominais.
É a este propósito que o pensamento neoliberal faz entrar a crítica ao fortalecimento do ‘poder monopolista’ dos sindicatos, à legislação que impõe o salário mínimo, à instituição dos subsídios de desemprego e outras contribuições da segurança social em benefício dos desempregados.
Os neoliberais insistem também nos malefícios resultantes da existência do sistema público de segurança social, sustentando que da existência desse sistema resulta uma diminuição do custo relativo do lazer perante o trabalho, exactamente porque as pessoas temporariamente sem emprego continuariam, durante um período de tempo mais ou menos longo, a ver satisfeitas as suas necessidades básicas, o que lhes permitiria aguardar mais tempo sem procurar novo posto de trabalho e ser mais exigentes na aceitação de novos postos de trabalho.
De acordo com este raciocínio, a maior mobilidade e o grau crescente de exigência dos que procuram emprego é que seriam responsáveis pelo aumento das taxas de desemprego. Também por esta via chegam os monetaristas à conclusão de que o desemprego seria, substancialmente, desemprego voluntário, sustentando que, em mercados de trabalho concorrenciais, o emprego e o desemprego efectivos revelariam as verdadeiras preferências dos trabalhadores entre trabalhar e dedicar o seu tempo a usos alternativos.
5. – Uma análise atenta das suas concepções leva nos à conclusão de que os neoliberais regressam à velha tese de que a diminuição dos salários reais é a condição indispensável e decisiva para que possa reduzir se o desemprego e possa promover-se o (pleno) emprego. Fora desta condição, as políticas assentes na expansão da procura global apenas gerariam inflação sem criarem postos de trabalho suplementares.
Ao fim e ao cabo, o que os monetaristas pretendem é que, como nos primeiros tempos do industrialismo, o reequilíbrio (com o inerente pleno emprego, acreditam eles) se faça à custa da diminuição dos salários reais.
A verdade, porém, é que o liberalismo económico funcionou nas condições históricas dos séculos XVIII e XIX, consideravelmente diferentes das actuais. Vejamos:
a) a tecnologia industrial era relativamente rudimentar e adaptada a empresas de pequena dimensão;
b) a concentração capitalista era inexistente ou pouco relevante;
c) os trabalhadores não estavam organizados (ou dispunham de organizações de classe de existência precária, débeis e inexperientes) e não gozavam da totalidade dos direitos civis e políticos (o que lhes dificultava e reduzia o acesso ao aparelho de estado e ao poder político e, consequentemente, a obtenção das regalias económicas e sociais de que hoje desfrutam);
d) os governos – imunes às exigências e aos votos populares – podiam, por isso mesmo, ignorar impunemente os sacrifícios (e os sacrificados) das crises cíclicas da economia capitalista, qualquer que fosse a sua duração e intensidade.
É claro que a ‘solução’ de impor aos trabalhadores o ónus de ‘pagar a crise’ só funcionou porque o capitalismo era então, sem disfarces, como salienta Samuelson, “um sistema em que os que não podiam trabalhar também não podiam comer.”
Resta saber se esta ‘solução’ — uma espécie de “solução final”, que, como se vê, apesar de resultar das ‘leis sagradas’ do mercado, não é ‘natural’, nem ‘automática’, nem ‘neutra’ — fará sentido em economias que usam tecnologias avançadas. A resposta afirmativa não faz qualquer sentido. Com efeito, ninguém admitirá que uma unidade de produção informatizada e utilizando robots e outras técnicas de automação vai deitar fora os equipamentos (caríssimos) compatíveis com estas tecnologias apenas porque, conjunturalmente, os salários estão baixos. E ninguém admitirá que um empresário responsável vá lançar um novo empreendimento com tecnologia trabalho-intensiva ultrapassada, apenas porque, conjunturalmente, os salários estão baixos.
Parece inegável, por outro lado, que, à medida que os trabalhadores foram conquistando o direito ao sufrágio universal e a generalidade dos direitos civis e políticos (liberdade de expressão, direito de associação, liberdade sindical, etc.), o laissez faire começou a experimentar dificuldades crescentes, que culminaram com a Grande Depressão dos anos 1929-1933 e o risco de um colapso iminente do próprio capitalismo.
Resta saber, por isso mesmo, se aquela ‘solução final’ será compatível com a realidade social e política dos actuais países capitalistas industrializados, em que os trabalhadores assalariados constituem a grande maioria da população e dominam (talvez só numericamente...) os ‘mercados políticos’. Se se respeitarem as regras democráticas (entre as quais o reconhecimento das liberdades sindicais), os governos, dependentes do voto popular, não poderão continuar alheios às vicissitudes do ciclo económico. Não falta quem defenda que uma das marcas do génio de Keynes residiu, precisamente, no reconhecimento da necessidade (e na tentativa) de conciliar a democracia política com a economia de mercado capitalista, função última do welfare state.
Ignorando as lições da história, porém, os neoliberais vêm insistindo na necessidade de expurgar o mercado de trabalho das “imperfeições” que lhe foram sendo introduzidas: o subsídio de desemprego, a garantia do salário mínimo, os direitos decorrentes da existência de um sistema público de segurança social.
6. – Num outro plano, os neoliberais imputam aos sindicatos toda a responsabilidade pela criação das condições para o pleno emprego: enquanto houver trabalhadores desempregados, os sindicatos têm de aceitar a redução dos salários nominais. Este seria o único meio de forçar a mobilidade da mão de obra entre as indústrias e de elevar as margens de lucro, redistribuindo os trabalhadores de modo a que a distribuição da oferta de mão de obra acompanhe a distribuição da respectiva procura, favorecendo assim o aumento desta por parte das empresas.
Colocada assim a questão, um pequeno passo basta para concluir pela necessidade de domesticar (desmantelar) os “agressivos monopólios sindicais”. Milton Friedman acusa-os de, ao exigirem salários elevados, contribuirem para restringir o número de postos de trabalho. Por isso, não hesita em proclamar que “as vitórias que os sindicatos fortes conseguem para os seus membros são obtidas acima de tudo à custa dos outros trabalhadores.”
Outra linha de ‘argumentação’ é a defendida por Gottfried Haberler:“os sindicatos começam a tornar-se incompatíveis com a economia de livre empresa”, pelo que, “se se quer preservar o sistema de livre empresa, será necessário (...) reduzir o poder monopolístico dos sindicatos operários.” O fantasma da ‘ingovernabilidade’ (que sempre justifica o apelo a um qualquer leviathan) vem sendo agitado contra os sindicatos.
Hayek ataca por outro flanco quando considera “especialmente perigoso” o poder alcançado pelos sindicatos, poder que, a seu ver, se traduz na “coerção de homens sobre outros homens”, na “coerção de trabalhadores pelos seus companheiros trabalhadores”. Só porque se tem admitido que eles exerçam um tal poder de coerção é que estes se tornaram capazes de exercer igualmente uma poderosa coerção sobre os empregadores. “Pessoalmente – conclui Hayek –, estou convencido de que o poder dos monopólios sindicais é, juntamente com os modernos métodos de tributação, o principal factor de desencorajamento do investimento privado em equipamento produtivo.” Parece que bastaria proibir os sindicatos e deixar de cobrar impostos sobre o rendimento do capital para termos o paraíso na terra.
Uma outra nota, igualmente realçada por Hayek. Segundo ele, a aceitação da pretensão dos sindicatos de aumentar os salários tendo em conta os aumentos da produtividade — hoje geralmente considerada socialmente justa e economicamente vantajosa — significa o reconhecimento do direito de expropriar uma parte do capital das empresas: Vejamo lo nas suas próprias palavras: “tal exigência é, sem dúvida, puramente socialista, (...) baseada no mais grosseiro tipo de socialismo, vulgarmente conhecido por sindicalismo.”
À luz do que fica dito, compreende se que Hayek pergunte “até onde se permitirá que os grupos organizados de trabalhadores industriais utilizem o poder coercivo que adquiriram de forçar no resto do país uma mudança nas instituições fundamentais em que assenta o nosso sistema económico e social.” E, perante uma tal subversão das instituições, compreende-se que responda: “Há um momento em que todos os que desejam a preservação do sistema de mercado baseado na livre empresa têm que desejar e apoiar sem ambiguidade uma recusa frontal daquelas exigências [as exigências sindicais], sem vacilar perante as consequências que esta atitude possa ter a curto prazo.”
Mesmo no Reino Unido, país onde o movimento sindical era tradicionalmente considerado uma instituição quase tão intocável como a realeza, a Srª. Thatcher, enquanto Primeira Ministra, não hesitou em acusar os sindicatos de quererem “destruir o estado”, erigindo os desse modo em inimigo interno sobre o qual toda a repressão se pretende legitimada. Tal como nos primórdios da revolução industrial, quando os novos assalariados industriais eram apontados e tratados como “bárbaros que ameaçam invadir a cidade”.
7. - Perante o descalabro da Grande Depressão e a consequente miséria de milhões de pessoas em todo o mundo, Keynes lembrou que as situações de desequilíbrio e de crise são inerentes às economias capitalistas, nas quais as situações de pleno emprego são “raras e efémeras”. Por isso defendeu que estas economias precisam de ser equilibradas e podem ser equilibradas, o que implica que o estado assuma funções complexas no domínio da promoção do desenvolvimento económico, do combate ao desemprego e da promoção do pleno emprego, da redistribuição do rendimento e da segurança social.
Na era da produção em massa, o consumo dos ricos (mesmo que esbanjador) não consegue assegurar o escoamento de toda a produção. O aumento do consumo dos pobres (entre eles os trabalhadores), o consumo de massas é visto como uma necessidade, resultante do próprio desenvolvimento tecnológico proporcionado pela ‘civilização burguesa’. Assim surge a sociedade de consumo.
Um dos méritos de Keynes foi ter compreendido e enquadrado teoricamente esta problemática. Para assegurar mais estabilidade às economias capitalistas, de modo a evitar sobressaltos como o da Grande Depressão, é necessário que os desempregados não percam todo o seu poder de compra (daí o subsídio de desemprego), que os doentes e inválidos recebam algum dinheiro para gastar (subsídios de doença e de invalidez), que os idosos não percam o seu rendimento quando deixam de trabalhar (daí o regime de aposentação, com a correspondente pensão de reforma).
8. - Na General Theory Keynes apontou os dois “vícios” mais marcantes das economias capitalistas: a possibilidade da existência de desemprego involuntário, e o facto de que a “repartição da riqueza e do rendimento é arbitrária e carece de equidade.” E defende que a correcção destes ‘vícios’ constitui a principal responsabilidade do estado.
No que toca ao segundo vício apontado, Keynes defende que a acentuada desigualdade de rendimentos contraria mais do que favorece o desenvolvimento da riqueza, negando assim uma das principais justificações sociais da grande desigualdade de riqueza e de rendimento: “Podem justificar se, por razões sociais e psicológicas, desigualdades significativas de riqueza, mas não desigualdades tão marcadas como as que actualmente se verificam.”
Ficava assim legitimada a intervenção do estado na busca de maior justiça social, de maior igualdade entre as pessoas, os grupos e as classes sociais. A “equação keynesiana” foi uma tentativa de conciliar o progresso social e a eficácia económica. E o discurso keynesiano tornou claro que a conciliação destes dois objectivos é, dentro dos parâmetros da democracia, uma necessidade decorrente das estruturas económicas e sociais do capitalismo contemporâneo.
A esta necessidade respondeu, a partir dos anos trinta, e, mais acentuadamente, a partir da Segunda Guerra Mundial, a criação do estado providência, assente na intervenção do estado na economia, na redistribuição do rendimento e da riqueza, na regulamentação das relações sociais, no reconhecimento de direitos económicos e sociais aos trabalhadores, na implantação de sistemas públicos de segurança social.
As bases (keynesianas) do welfare state são, pois, essencialmente, de natureza económica, ligadas à necessidade de reduzir a intensidade e a duração das crises cíclicas próprias do capitalismo, e motivadas pelo objectivo de salvar o próprio capitalismo.
Na verdade, estes novos agenda do estado não pretendiam subverter (nem subverteram) o sistema, nem visavam promover (nem promoveram) nenhuma revolução social (apesar de se falar de “revolução keynesiana”), antes se enquadram na lógica do capitalismo e da sua racionalidade intrínseca.
Daí que eles não tenham resolvido o problema do ‘subdesenvolvimento’; não tenham impedido o alargamento do fosso entre ‘países desenvolvidos’ e ‘países subdesenvolvidos’; não tenham acabado com as crises cíclicas do capitalismo; não tenham posto cobro à desigualdade na distribuição do rendimento, cujo agravamento leva a que, há já alguns anos, se fale da necessidade de incluir no elenco dos direitos fundamentais o direito a uma igualdade razoável; não tenham acabado, evidentemente, com o regime do salariato e com a relação de exploração que lhe é inerente.
Os neo-keynesianos, embora não escondendo alguma frustração acerca dos resultados das políticas de redistribuição do rendimento e mesmo algumas críticas ao desempenho do estado providência, mantêm se fiéis ao princípio da responsabilidade social colectiva, que inspira o estado de bem-estar, sobretudo na Europa. Como observa Paul Samuelson, “são poucos aqueles que propõem que o relógio da história volte para trás, de regresso ao regime sem compaixão do capitalismo puro.”
9. – Diferentes são as concepções dos monetaristas e dos neoliberais em geral acerca da economia e da sociedade e, de modo particular, acerca do papel do estado perante a economia e perante a sociedade. Fiéis ao ideário liberal do laisser-faire, da mão invisível e da lei de Say, defendem que as economias capitalistas tendem espontaneamente para o equilíbrio de pleno emprego em todos os mercados, pelo que não precisam de ser equilibradas, sendo desnecessárias as políticas anti-cíclicas e sendo desnecessárias e inconsequentes as políticas de combate ao desemprego, que não conseguem eliminá-lo e geram inflação.
Mais longe ainda vão os monetaristas da segunda geração, defensores da chamada teoria das expectativas racionais. Segundo eles, os agentes económicos privados dispõem da mesma informação que está ao alcance dos poderes públicos, e, comportando-se como agentes económicos racionais, antecipam plena e correctamente quaisquer políticas públicas. As políticas económicas sistemáticas deixariam, pois, de ter qualquer efeito sobre a economia, restando aos governos ‘enganar’ os agentes económicos através de medidas de surpresa, incompatíveis com o cientismo e a programação de que se reclama a política económica.
Desta neutralidade da política económica passa-se, quase sem solução de continuidade, à defesa da morte da política económica, porque esta seria desnecessária, perniciosa e sem sentido. Assim estamos de regresso ao velho mito liberal da separação estado/economia e estado/sociedade: a economia seria coisa exclusiva dos privados (da sociedade civil, da sociedade económica), cabendo ao estado tão somente garantir a liberdade individual (a liberdade económica, a liberdade de adquirir e de possuir sem entraves), que proporcionaria igualdade de oportunidades para todos.
10. - O ideário liberal rejeita o objectivo de redução das desigualdades, em nome de um qualquer ideal de equidade e de justiça: as políticas que buscam realizar a justiça social distributiva são sempre encaradas como um atentado contra a liberdade individual.
Milton Friedman é muito claro: “a este nível, a igualdade entra vivamente em conflito com a liberdade”. E ele escolhe a liberdade. Porque “uma sociedade que põe a liberdade em primeiro lugar acabará por ter, como feliz subproduto, mais liberdade e mais igualdade.” E porque “uma sociedade que põe a igualdade à frente da liberdade acabará por não ter nem igualdade nem liberdade”.
Neste domínio da filosofia social, o neoliberalismo exclui da esfera da responsabilidade do estado as questões atinentes à justiça social, negando, por isso, a legitimidade das políticas de redistribuição do rendimento, orientadas para o objectivo de reduzir as desigualdades de riqueza e de rendimento, na busca de mais equidade, de mais justiça social, de mais igualdade efectiva entre as pessoas.
No que toca à obrigatoriedade dos descontos para a segurança social, os neoliberais consideram-na um atentado contra a liberdade individual. E sustentam que esse atentado é tanto mais grave e intolerável quanto é certo que, na sua perspectiva, o seu objectivo ficará melhor acautelado se cada pessoa o assumir, como responsabilidade própria, tomando, em conformidade, as medidas adequadas.
Milton Friedman não hesita em classificar o princípio da responsabilidade social colectiva como “uma doutrina essencialmente subversiva”, cuja influência mais nefasta “é o efeito maligno que exercem sobre a estrutura da sociedade. Eles enfraquecem os alicerces da família; reduzem o incentivo para o trabalho, a poupança e a inovação; diminuem a acumulação do capital; e limitam a nossa liberdade. Estes são os principais factores que devem ser julgados.”
Coerentemente, Friedman defende a necessidade de “derrubar definitivamente este estado providência, advogando a ideia de que, em vez dele, “é altura de as democracias ocidentais retomarem os incentivos para produzir, empreender, investir”, convicto de que esse derrubamento aumentaria o incentivo para a procura de trabalho, aumentaria o rendimento nacional, estimularia a poupança individual e conduziria à formação de taxas de capital mais elevadas e a uma taxa de crescimento do rendimento mais acelerada.
Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura democrática e igualitária da época contemporânea, caracterizada não só pela afirmação da igualdade civil e política para todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os indivíduos no plano económico e social, no âmbito de um objectivo mais amplo de libertar a sociedade e os seus membros da necessidade e do risco, objectivo que está na base dos sistemas públicos de segurança social.
Estamos longe da visão de Keynes, que, em “The End of Laissez Faire”, doze anos antes da publicação da General Theory, escreveu este ‘discurso’ contra os princípios “metafísicos” em que se fundamenta o laissez-faire: “Não é verdade que os indivíduos disponham de uma inquestionável ‘liberdade natural’ nas suas actividades económicas. Não existe nenhum ‘contrato’ que confira direitos perpétuos aos que têm ou aos que adquirem. O mundo não é governado a partir de cima de modo que os interesses privados e os interesses sociais sempre coincidam. E não é gerido a partir de baixo de modo que, na prática, eles coincidam. Não é uma dedução correcta dos princípios da economia que o interesse próprio esclarecidamente entendido opere sempre no interesse público. Nem é verdade que o interesse próprio seja em regra esclarecidamente entendido; a maior parte das vezes os indivíduos que actuam isoladamente para prosseguir os seus próprios objectivos são demasiado ignorantes ou demasiado fracos, mesmo para atingir estes objectivos. A experiência não mostra que, quando os indivíduos formam uma unidade social, sejam sempre menos esclarecidos do que quando actuam separadamente.”
11. – Segundo o modelo liberal, o capitalismo é uma economia de mercado livre, na qual a soberania do consumidor (a liberdade para escolher de que fala Milton Friedman) determina todas as escolhas — feitas livremente no mercado por cada um dos indivíduos que nele actuam —, decidindo, em último termo, à escala da economia como um todo, o quê, como e para quem se vai produzir.
No fundo, o mito da soberania do consumidor é um reflexo do mito liberal do contratualismo, que reduz toda a vida em sociedade a relações contratuais livremente assumidas por indivíduos isolados, livres, independentes e iguais em direitos, cada um dos quais dispõe de informação completa sobre todas as alternativas possíveis e sabe perfeitamente o que quer.
Para os defensores desta concepção, “a economia de livre empresa é a outra face da democracia”: “nesta grande e contínua eleição geral da economia livre –escreveu um autor - ninguém, nem mesmo o mais pobre, é privado do seu direito de voto: estamos todos a votar a todo o momento.”
Mas é claro que esta ‘leitura’ da realidade, este pseudo governo democrático da economia não resiste ao argumento decisivo (de Mark Blaug) de que ela ‘esquece’ o facto essencial de que no mercado se efectua “uma eleição em que alguns eleitores podem votar mais do que uma vez”, porque, no mercado livre, o peso (a influência) do voto de cada consumidor depende do que cada um gasta no mercado, o que, por sua vez, depende da riqueza e do rendimento de cada um.
E se não houver uma ‘justificação moral’ para as diferenças de rendimento e para a diferença de natureza do rendimento do trabalho e do rendimento do capital, é inevitável a conclusão de que a ‘votação’ do mercado está viciada à partida e conduz a resultados injustos, que reflectem e ajudam a perpetuar as estruturas (de poder) que geram e mantêm as diferenças de rendimentos
12. – A soberania do consumidor é invocada também para ‘legitimar’ os resultados do funcionamento das economias de mercado livre no que toca à distribuição da riqueza e do rendimento. A sua ‘legitimação’ deriva da ideia de que eles são livremente queridos e assumidos por todos e por cada um, através da livre escolha individual. Von Mises defende expressamente que, “numa sociedade capitalista, a riqueza só pode adquirir se e conservar se mediante uma atitude que corresponda às exigências dos consumidores. Assim, a riqueza de prósperos comerciantes é sempre o resultado de um plebiscito dos consumidores e, uma vez adquirida, a riqueza só pode conservar se se for utilizada da forma que os consumidores considerem mais benéfica para eles.”
Em sentido contrário, abona toda a lógica da sociedade de consumo, em que as necessidades são um mero pretexto para vender aquilo que se produz: se não há necessidades, inventam se, e os desejos ‘produzem se’ ao mesmo tempo que os bens. Os desejos dos consumidores deixaram de ser uma questão de escolha individual, tendo se tornado uma produção de massa: as grandes empresas criam necessidades e desejos, fabricam as modas, modificam os hábitos de consumo, praticamente à escala do planeta.
13. - Joan Robinson põe o dedo na ferida quando escreve que a mainstream economics, “ao aclamar a ‘soberania do consumidor’, acaba por perder de vista o problema da distribuição do poder de compra entre a população.” É, mais uma vez, a fuga à realidade social e aos seus problemas.
J. K. Galbraith é um dos autores que, desde a década de 1950, mais lucidamente tem contribuído para a crítica do dogma da “soberania do consumidor”: o consumidor – diz ele - não é hoje ‘soberano’ em qualquer sentido útil.
Por isso, contra a lógica perversa da sociedade de consumo, muitos autores sustentam hoje que os direitos dos consumidores devem ser direitos constitucionalmente protegidos (o que já se verifica, aliás, em várias constituições), porque por aqui passa a liberdade e o bem-estar das pessoas e a própria vida democrática.
Num dos seus ensaios, Ralf Dahrendorf fala da necessidade de “transferência de alguns ganhos de produtividade para tempo, em vez de dinheiro, para tempo livre, em vez de mais rendimento.” Esta é, sem dúvida, uma das questões centrais em aberto neste tempo de contradições: o desenvolvimento da produtividade resultante do progresso científico e tecnológico permite que se disponha de mais tempo para as actividades libertadoras do homem, em vez de o afectar a produzir cada vez mais bens para ganhar cada vez mais dinheiro para comprar cada vez mais bens. Um dia virá em que o luxo há-de consistir em ter tempo. A ciência económica não pode continuar a adiar a busca de um outro padrão de racionalidade. A ciência económica tem de assumir-se de novo como economia política, como um ramo da filosofia social.
14. – O que está em causa, em última instância, é um dos pontos fundamentais do neoliberalismo reinante: a ideia de que o mercado é o único mecanismo racional de afectação de recursos escassos a usos alternativos, nele se realizando o princípio universal de racionalidade inerente à natureza humana, que o marginalismo imprimiu no código genético do homo oeconomicus como agente racional maximizador.
Os monetaristas vão mais longe e sustentam que o mecanismo dos preços é o único instrumento com base no qual se podem analisar e explicar todos os fenómenos sociais, reduzindo toda a vida humana a um problema de preços que o mercado resolve espontânea e naturalmente, da única forma racional (e justa). A teoria dos preços é, para eles, o único paradigma para explicar e regular toda a gama de fenómenos sociais. As leis eternas, objectivas e sagradas do mercado impõem-se a tudo e a todos!
Ora a história das sociedades humanas mostra que o mercado não é um puro mecanismo natural de afectação eficiente e neutra de recursos escassos e de regulação automática da economia. O mercado deve antes considerar-se, como o estado, uma instituição social, um produto da história, uma criação histórica da humanidade (correspondente a determinadas circunstâncias económicas, sociais, políticas e ideológicas), que veio servir (e serve) os interesses de uns (mas não os interesses de todos), uma instituição política destinada a regular e a manter determinadas estruturas de poder que asseguram a prevalência dos interesses de certos grupos sociais sobre os interesses de outros grupos sociais. “Longe de serem ‘naturais’, os mercados são políticos”, sustenta David Miliband. Quer dizer: o mercado e o estado são ambos instituições sociais, que não só coexistem como são interdependentes, construindo-se e reformando-se um ao outro no processo da sua interacção.
À luz do que fica dito, resulta que a defesa do mercado como mecanismo de regulação automática da economia não representa apenas um ponto de vista técnico sobre um problema técnico. Em boa verdade, a defesa do mercado é a defesa da concepção filosófica liberal da sociedade e da economia, que vê no mercado uma instituição natural, autónoma, soberana, capaz de uma arbitragem neutral dos conflitos de interesses, uma instituição que “não pode ser justa nem injusta, porque os resultados não são planeados nem previstos e dependem de uma multidão de circunstâncias que não são conhecidas, na sua totalidade, por quem quer que seja.” (Hayek) E é também a defesa da concepção liberal do estado, entendendo este como instância separada da economia e da sociedade civil e considerando a não-intervenção do estado na economia como um corolário da natureza do estado enquanto pura instância política.
Esta é uma concepção incapaz de compreender que a não-intervenção do estado na economia é apenas — como os diversos tipos de intervenção — uma das formas de o estado capitalista cumprir a sua missão essencial de garantir as condições gerais indispensáveis ao funcionamento do modo de produção capitalista e à manutenção das estruturas sociais que o viabilizam.
Vistas assim as coisas, a defesa do mercado veicula uma concepção acerca da ordem social que se considera desejável e consagra uma atitude de defesa da ordem social que tem no mercado um dos seus pilares. Tal como a crítica do mercado e do seu pretenso carácter natural (por parte de marxistas, keynesianos, radicais ou ecologistas) veicula um propósito de introduzir mudanças na ordem social estabelecida ou de a substituir por outra ordem social.
15. – Importa salientar, por outro lado, que as concepções individualistas e ‘laisser fairistas’ que informam os vários monetarismos não podem desligar se de certas correntes da filosofia política que acusam o “excesso de carga do governo” de ter conduzido à “ingovernabilidade das democracias” e o “excesso de democracia” de ter provocado a “crise da democracia”.
Para fugir ao dilema anarquia/Leviathan, a solução estaria no revigoramento de uma organização política assente no contrato, nos direitos individuais e na propriedade privada, cabendo ao estado apenas a função de proteger a ordem social assim fundada e orientada de acordo com o princípio egoísta de maximização de interesses individuais que a mão invisível conciliaria.
Os neoliberais dos nossos dias defendem que a liberdade económica é condição sine qua non da liberdade política. A economia de mercado livre impõe se, nesta óptica, não apenas pela superior eficiência económica que lhe é atribuída, mas também por razões de ordem política.
Na esteira de Hayek, proclama se que “a civilização é o resultado de um crescimento espontâneo e não de uma vontade”. Só a “ordem espontânea” consubstanciada no mercado asseguraria a free society. Qualquer propósito de intervenção do estado, mesmo que apenas para corrigir injustiças, é identificado como o caminho da servidão (título do livro famoso de Hayek, publicado em Chicago em 1944).
A este respeito, o Friedman de Capitalism and Freedom não hesita em colocar no mesmo plano os dois inimigos que ameaçam a preservação e a expansão da liberdade: o inimigo externo e o inimigo interno, bastante mais subtil, constituído pelos homens de boas intenções e de boa vontade que desejam reformar a sociedade.”
A história mostra que a necessidade de dar combate ao inimigo interno foi sempre a mola impulsionadora e a razão ‘legitimadora’ de todos os totalitarismos. Mas os neoliberais não querem saber da história e não vacilam perante as consequências prováveis da aplicação rigorosa dos seus dogmas. E insistem na defesa da solução que passaria pela privatização do sector empresarial do estado e dos serviços públicos, pela separação da esfera política (que competiria ao estado) da esfera económica (do foro exclusivo dos particulares), pela ‘libertação da sociedade civil’. E passaria, também, por um controlo social através de uma nova pedagogia de ‘disciplina’ dos professores, pelo controlo das fontes de informação, pela marginalização dos intelectuais nocivos e dos grupos que lhes estão próximos, como se propõe num Relatório apresentado há uns anos atrás à Comissão Trilateral.
É notório que esta lógica transporta no seu seio uma crítica à filosofia informadora e à prática concretizadora da democracia económica e social que ganhou foros de constitucionalidade em bom número de países, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. E é notório também que ela arrasta consigo projectos de orientação totalitária, considerados como que o fruto necessário do excesso de carga do governo e da ingovernabilidade das democracias, do excesso da democracia e da crise da democracia, mas considerados também – e talvez primordialmente – como a solução desejada para acabar com o ‘escândalo’ dos opressivos monopólios do trabalho por parte de quantos proclamam que “os sindicatos começam a ser incompatíveis com a economia de livre mercado”, e para abater os inimigos internos, i.é, todos aqueles que, embora cheios de boas intenções, cometem o ‘crime’ de querer reformar a sociedade, de pretender que o estado seja agente de transformações sociais no sentido de uma sociedade mais justa e mais igualitária.
16. – Esta é uma lógica particularmente preocupante, tanto mais que ela se desenvolve em sociedades nas quais se vão cristalizando, a todos os níveis das estruturas económicas, sociais, políticas e culturais, formas insidiosas que redundam naquilo que Bertram Gross designou por fascismo amigável (o fascismo de mercado, para cujos perigos advertiu Samuelson), apontado como a face política de um capitalismo governado em última instância pela oligarquia do grande capital, que tanto faz negócio com o Welfare como com o Warfare, dando sentido à designação de Warfare Welfare State (James O’Connor), e que carece da presença activa do estado, quer no plano interno quer no plano externo.
A ideologia da Nova Direita (que às vezes gosta de se chamar direita liberal), ao apontar como uma necessidade a redução do estado ao estado mínimo, a privatização de todos os serviços públicos, a desregulação das relações laborais, a limitação (eliminação) do poder dos sindicatos, a destruição do estado providência, não passa de mera cobertura da necessidade de realçar um novo estilo de actividade do Big Government, por certo contra os “opressivos monopólios do trabalho”, mas não contra o Big Business, os grandes monopólios empresariais, os poderosos conglomerados multinacionais.
É esta a lógica da política de globalização neoliberal que, neste nosso mundo unipolar, vem sendo metódica e persistentemente levada a cabo pelas potências dominantes e pelas agências e organizações por elas comandadas (FMI, Banco Mundial, OCDE, OMC, G7...), em consonância com interesses do grande capital financeiro.
17. – Neste tempo de angústias e de esperanças, todos temos a consciência de que o trabalho dos homens, após o advento do capitalismo, provocou um enorme desenvolvimento das forças produtivas, e, acima de tudo, um extraordinário desenvolvimento do próprio homem,
enquanto produtor e titular de ciência, de tecnologia, de informação. Este desenvolvimento das capacidades produtivas tem libertado o homem trabalhador do seu fardo milenar de ser besta de carga; tem proporcionado ao homem trabalhador condições de trabalho mais dignas; tem aumentado a produtividade do trabalho para níveis até há pouco insuspeitos; tem permitido a redução significativa da jornada de trabalho; tem oferecido melhores condições de vida a uma parte da humanidade.
Hoje sabemos que o conhecido aumento do número de famintos não apaga a certeza que temos de que a nossa capacidade de produzir alimentos — e mesmo a produção efectiva de alimentos — é superior às necessidades da humanidade. Se a fome existe (e até vai aumentando), não é porque os meios naturais, humanos e técnicos disponíveis não permitam a produção de alimentos suficientes para dar de comer a todos os habitantes do nosso planeta. O problema é outro. E Amartya Sen identifica-o com rigor: o facto de haver pessoas que passam fome — e que morrem de fome —, apesar da abundância de bens (ou pelo menos da existência de bens em quantidade suficiente), só pode explicar-se pela falta de direitos e não pela escassez de bens. O problema fundamental é o da organização da sociedade.
Comentando este ponto de vista de Sen, pergunta Dahrendorf: “porque é que os homens, quando está em jogo a sua sobrevivência, não tomam simplesmente para si aquilo em que supostamente não devem tocar mas que está ao seu alcance? Como é que o direito e a ordem podem ser mais fortes do que o ser ou não ser?”.
Para os que reduzem os homens ao fantasma do homo oeconomicus enquanto ser capaz de escolhas racionais, dir-se-ia que os homens, mesmo quando está em causa a sua sobrevivência, quando está em causa ser ou não ser, escolhem, racionalmente, não fazer nada, i. é, escolhem não tomar para si aquilo de que carecem em absoluto e que está ao seu alcance.
Mas é claro que o absurdo desta resposta deixa antever que a questão é outra. Esse comportamento explica-se pela falta de direitos (ou falta de poder). A organização económica das sociedades capitalistas representa uma determinada estrutura de poder, assente na propriedade tal como a consagraram as revoluções burguesas. E esta é uma propriedade perfeita, absoluta e excluente, consagrada pelo direito e garantida pela força coerciva do estado, que exclui os não proprietários do acesso ao que, embora ao seu alcance, eles não têm o direito (o poder) de tocar.
Porque o estado — como já os fisiocratas puseram em destaque — existe para “punir, pelo magistério dos magistrados, o pequeno número de pessoas que atentam contra a propriedade de outrem” (Dupont de Nemours), para garantir a propriedade “pela justiça distributiva e poder político ou militar” (Nicolas Baudeau).
Porque o estado, sublinha John Locke “não tem qualquer outro objectivo que não seja a preservação da propriedade”.
Porque o estado, na definição de Adam Smith, é instituído “com vista à defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou daqueles que possuem alguma coisa em detrimento daqueles que nada possuem”.
A questão fundamental é, afinal, a questão do poder. Mas esta é uma questão que os liberais não integram na sua análise da economia reduzida à pura lógica do mercado, e que excluem também da sua análise da sociedade.
Dahrendorf faz ainda outra pergunta: “o que seria preciso para modificar as estruturas de direitos, de modo a que mais ninguém tivesse fome?” A própria pergunta parece encerrar a resposta: é preciso modificar as estruturas de direitos, i. é, as estruturas do poder económico e do poder político, modificar a racionalidade que preside às economias e às sociedades capitalistas. É preciso rejeitar a lógica neoliberal, que deixa de fora da análise económica e social da realidade o poder, as relações de poder e as estruturas do poder, e sustenta que tudo aquilo de que a humanidade precisa é de um mercado livre, que o resto vem por si. Ao contrário: o mercado (e as suas pretensas leis ‘naturais’, aprioristicamente capazes de resolver todos os problemas da humanidade) é precisamente um dos mecanismos fundamentais da estrutura de direitos e de poderes que se admite ser necessário modificar.
Sobretudo num tempo em que, com a emergência dos problemas do ambiente, a ‘filosofia’ neoliberal e o império do mercado vêm transformando a própria vida em objecto de negócio, pondo em causa o próprio direito à vida.
A preservação da vida humana e o respeito pelos direitos fundamentais dos homens de carne e osso exigem cada vez mais uma sociedade diferente da que hoje conhecemos, um tipo de desenvolvimento radicalmente diferente deste “crescimento canceroso e sm sentido” (W. Weisskopf), um modelo económico que rejeite em absoluto a “mercantilização da vida” (R. Heilbroner), e que assuma como meta um paradigma de desenvolvimento que não identifique o mais com o melhor e o ser com o ter.
18. – A vida mostra que o homem não deixou de ser o lobo do homem.
A globalização neoliberal tem vindo a acentuar a natureza do capitalismo como “civilização das desigualdades”, ao mesmo tempo que os centros de produção ideológica ao serviço dos interesses dominantes e do ‘império’ totalitário vêm propagando a ideia de que a globalização e a concorrência de todos contra todos, como resultado inevitável dos desenvolvimentos tecnológicos no domínio das comunicações, da informática e dos transportes, torna inevitável, mesmo nos países desenvolvidos, o nivelamento por baixo dos salários e dos direitos históricos dos trabalhadores, o aumento das desigualdades sociais e o abandono do estado-providência.
Ao mesmo tempo, quando nos falam na ‘mão invisível’ do mercado como fonte inspiradora de todas as soluções para todos os problemas, sabemos que estão a esconder-nos a mão visível, omnipresente e omnipotente dos grandes conglomerados internacionais que governam o mundo e decidem da paz e da guerra.
No entanto, apesar das profundas contradições deste nosso tempo (tempo de grande esperança e de grande desespero), creio que temos razões para acreditar que podemos viver num mundo de cooperação e de solidariedade, num mundo capaz de responder satisfatoriamente às necessidades fundamentais de todos os habitantes do planeta.
O desenvolvimento científico e tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento meteórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que toca à capacidade de produção de riqueza e de bem-estar. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre as quais avulta o homem e o seu conhecimento, o seu saber e a informação acumulada ao longo de gerações) parece confirmar a utopia marxista da passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade, carecendo apenas de novas relações sociais de produção, de um novo modo de organizar a nossa vida colectiva. Um dia destes — que não será amanhã, porque o ritmo da história não pode medir-se pelo ritmo da nossa própria vida — talvez saibamos construir uma alternativa ao caos suicidário a que nos querem condenar. Ponto é que levemos a sério o aviso de que Christian Stoffaës: “a economia contemporânea precisa mais de filósofos do que de econometristas”.
19. – E os filósofos ensinam-nos que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização-fim-da -história.
Esta ‘globalização’ não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, é antes um projecto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e dominado pela ideologia dominante. Correspondentemente, a luta por uma sociedade alternativa pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir. Só assim, fazendo prevalecer a política sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado, é possível impedir que a globalização neoliberal, de uma armadilha para a democracia (H.-P. Martin e H. Schuman) que já é, se transforme em instrumento de morte da democracia.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Estas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas. Todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não pode anular a nossa confiança na acção colectiva das forças empenhadas em transformar o mundo, nem tem de matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.
Porque a utopia ajuda a fazer o caminho. Porque sonhar é preciso. Porque o sonho comanda a vida.
Porque “sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança/ como bola colorida/ entre as mãos de uma criança”.
Porque não podemos abdicar do direito de dizer a todos os que inventaram a tristeza neste nosso mundo o que o Chico Buarque diz na canção belíssima: “Foi você que inventou a tristeza!/ Pois então tenha a firmeza de desinventar!/ Apesar de você, amanhã há-de ser outro dia!”