«QUEREMOS PÃO E TRABALHO PARA OS
NOSSOS FILHOS» ENTREVISTA A ANTÓNIA DA GRAÇA LEANDRO por Miguel Patrício *
Encontrámo-la, por mero acaso, numa das ruas de Baleizão, momentos antes do início do desfile de grupos corais e do comício de homenagem a Catarina. Indiferente ao forte aguaceiro que caía sobre a aldeia, a velha camponesa não hesitou em falar com o repórter, debaixo de um frágil chapéu-de-chuva, manifestamente insuficiente para a resguardar. Durante o diálogo, o «aborrecimento da chuva» foi vagamente referido, mas minimizado pela nossa interlocutora. Não são três pingos de chuva que fazem desistir uma velha mas rija e determinada camponesa alentejana de relatar o que se passou «naquele dia» — como ela lhe chamou -, que ficou gravado na memória colectiva de um povo. Afinal, todas as oportunidades são poucas para continuar a denunciar o fascismo. Ontem indiferente às balas da GNR e, posteriormente, já na prisão, às ameaças e torturas da PIDE; hoje indiferente à chuva, Antónia Leandro disse-nos de sua justiça: «A gente, naquela época, ganhávamos 20 escudos por dia, na «aceifa». Depois, começaram a aparecer uns papelinhos, do Partido Comunista, a dizer para a gente fazermos greve, para pedirmos mais salários, porque ganhávamos muito poucochinho. E assim fizemos e fomos pedir ao agrário 24 escudos por dia. Fizemos greve e ficámos em casa. Entretanto, uma senhora, casada com um homem que tinha uma «courelinha» (pequena propriedade), tinha o marido no hospital, vivia mal e não tinha dinheiro para pagar às pessoas para ir ceifar, pediu-nos ajuda e nós fomos fazer essa esmola. Íamos a caminho dessa «courelinha», quando avistámos um grupo de pessoas, do Penedo Gordo, ceifando, na herdade onde a gente andávamos, antes da greve. Diz a gente assim: ‘Ah!, mas então assim não pode ser; então a gente estamos em greve e aquelas pessoas estão ali ceifando! Temos que ir falar com elas’. Viemos para casa, deixamos as foices e fomos falar com elas. Estávamos ali ao poço, à entrada da aldeia, quando chegam guardas, muitos guardas, e perguntaram o que é que a gente queria. A gente dissemos que queríamos falar com as pessoas, porque a gente ganha pouco dinheiro... Um dos guardas disse-nos para avançarmos alguns passos e pediu-nos para não armarmos barulho. Mas, a gente sabíamos que havia mais guardas mais à frente, no outro lado. Fomos. Nesse tempo era moça novinha, tinha 18 anos, e não sabia o que eram metralhadoras, não sabia nada dessas coisas de armas... Avançámos, conforme a gente subiu a valeta, ouvimos o barulho de uns tiros. A gente não sabíamos que eram tiros. Portanto, a própria guarda mandou a gente avançar e depois disparou. Mas não foi esse que nos deu ordem para avançar; esses ficaram cá à beira da estrada; o que disparou foi um que estava escondido atrás das favas. Estava escondido - a gente é que não sabíamos» E esse grupo de trabalhadores era constituído por quantas pessoas? Eram oito ou nove mulheres e três homens. Esse grupo de trabalhadores depois foi preso. Estivemos 18 dias na cadeia de Beja e depois respondemos. Como é que foi essa parte dos tiros? Depois, então, a gente subimos aquilo e diz a Catarina assim: «Esses tiros são do feitor, para meter medo à gente». Avançámos um pouquinho, até ao sítio onde agora está a foice [monumento erguido no local depois de 25 de Abril de 1974], quando agente vê sair aquele homem por detrás dos molhos das favas. E perguntou: «O que é que vocês querem, burras?» Entretanto, ele chegou ao pé da Catarina, que estava assim à frente da gente, e deu-lhe um estalo na cara. Ela deixou cair um lenço, apanhou-o e disse: «Queremos pão e trabalho para os nossos filhos» E ele repetiu: «Queres pão e trabalho para os teus filhos...” Levantou os pés da criança, que estava ao colo da mãe, encostou a arma à Catarina e deu-lhe dois tiros. Ela caiu, ele pegou no menino, que tinha a cara cheia de sangue, e disse a outra mulher «Pega no moço, deixa esta burra». Já com ela morta ainda lhe chamou burra. Depois, ia atirar à gente. A gente caímos de joelhos e gritámos: «Paz, paz, paz». Entretanto, chegou o dono do monte e disse: «Ó senhor tenente, então já matou uma mulher, o que é que está a fazer?» Ele então parou. Mas, depois, penámos muito, esse tempo todo: foi a prisão, as perseguições, foi a fome... Tanta fome que a gente passou. Penámos muito. Algumas pessoas mais novas, nascidas depois do 25 de Abril, nem querem acreditar. *in «Diário do Alentejo», de 26.05.2000 |