É com uma angustiada atenção e uma inquieta expectativa que tem de ser seguido o desenrolar do julgamento em curso na Maia em que, a par de acusados de integrarem um rede de aborto clandestino, figuram também dezassete mulheres acusadas de prática de aborto.
A verdade é que se trata de um caso em que a realidade veio a ultrapassar as piores previsões e as mais tranquilas garantias.
Com efeito, nos debates passados, os mais firmes defensores da despenalização do aborto, embora enfatizando principalmente outras perversas consequências da manutenção na lei do aborto como crime punível com prisão até três anos, sempre alertaram para o risco de essa penalização legal conduzir a processos a mulheres por esse motivo e a eventuais condenações judiciais.
Mas do campo dos adversários da despenalização a resposta que sempre vinha é que essa penalização só visava sinalizar uma fronteira entre "o bem" e "o mal" e que ninguém queria investigar, julgar ou condenar mulheres por essa corrente violação da lei.
Agora os factos vieram falar de uma forma bem mais brutal e dizem-nos, para nossa vergonha enquanto Estado, nação e povo (atenção que, quanto a responsabilidades, a conversa é menos geral e menos colectiva), que é possível no Portugal do início do terceiro milénio dezassete mulheres sentarem-se no banco dos réus sob uma tal acusação.
Rejeitando todo e qualquer calculismo, desejamos vivamente que venham a ser absolvidas, isto é, que o humanismo e sensibilidade social de quem é chamado a aplicar a justiça possa passar à frente de um estreito e cego positivismo jurídico.
E estamos certos de que será difícil encontrar muita gente que suspire pela condenação destas mulheres, pois os mais empolgados adversários da despenalização até conseguiram inventar essa suprema originalidade de, segundo eles, no aborto haver "crime" mas já não haver "criminosas", enquanto nós sempre preferimos dizer que se obviamente não havia "criminosas" então pela certa que não haveria "crime".
Conhecemos todos a dimensão social e humana do problema do aborto clandestino. Mas mesmo que a sentença, como é imperativo, venha a ser a absolvição, talvez baste meditar na penosa situação em que estas dezassete mulheres foram colocadas ao longo de meses e nas invasoras perguntas que tiveram de enfrentar, para se concluir que, se outras razões não houvesse - e há, só isso já é razão suficiente para evidenciar a indispensabilidade e premência da aprovação de uma lei de despenalização como a que, em 17.11.99, foi apresentada na AR pelo PCP.