Forum "A situação das Mulheres
no limiar do Século XXI"

Intervenção de Carlos Carvalhas

23 de Janeiro de 1999



Caros amigos e camaradas,

Em nome do PCP queria começar por agradecer a todas e a todos os que tornaram possível e deram corpo e vida a esta importante iniciativa e permitam-me uma referência especial a todos e a todas que não pertencendo ao nosso Partido nos enriqueceram com as suas sugestões e questões levantadas, quer na preparação quer nos painéis de hoje.

Simone de Beauvoir no seu livro "O segundo sexo" tem na abertura uma citação de Poulaine de la Barre que diz mais ou menos isto: "tudo o que é escrito pelos homens sobre as mulheres deve ser suspeito porque eles são ao mesmo tempo juiz e parte".

Não querendo ser juiz nem suspeito, embora seja naturalmente parte, queria dizer-vos que os testemunhos e as questões que aqui foram levantadas, desde as mais consensuais às mais polémicas são um importante contributo para a nossa reflexão e acção partidária e para a tomada de decisões nos mais diversos domínios.

Todos reconhecemos os significativos avanços positivos verificados após o 25 de Abril no plano dos direitos e da participação da mulher na vida económica, social, política, sindical, científica, cultural, desportiva mas também sabemos o muito que há a percorrer.

Particularmente quando vemos ainda no fim deste século as políticas assentes nos dogmas neoliberais na defesa do "modelo americano" a serem determinantes, quer nos governos de direita, quer nos que se reclamam da social democracia, naturalmente com diferenças na retórica e no acessório. O resultado é o "triunfo das desigualdades", com as mulheres a pagarem a parcela mais elevada das injustiças sociais, como agora também se verificou, dramaticamente na crise capitalista que vai atingindo cada vez mais largas regiões geográficas.

Também no nosso país, à igualdade formal e à retórica social sempre consoladora nos discursos de circunstância, oficiais e governamentais, segue-se a prática quotidiana das discriminações, com a sua tradução na feminização da pobreza, na exclusão social, na exploração, no desemprego e até na idade da reforma que aumentou dos 62 para os 65 anos, por decisão do PSD com o argumento cínico de que se estava a promover a igualdade com os homens.

Cinismo que foi consagrado pelo governo PS ao rejeitar o projecto de lei do PCP, que repunha aquele direito.

E falando da hipocrisia dos que tanto falam dos problemas e direitos da mulher e tanto actuam ao contrário, queremos chamar vivamente a atenção de todos os cidadãos, de todos os trabalhadores e em especial das mulheres trabalhadoras para a autêntica agressão e provocação que constitui a aprovação do projecto lei sobre o exercício do direito a férias.

A ideia central é a de ligar o grau de acessibilidade dos trabalhadores ao número de dias de férias, com o supremo escândalo de faltas legalmente reconhecidas como justificadas passarem entretanto a dar motivo para a redução do número de dias de férias a que os trabalhadores têm direito.

Entre muitos outros exemplos, basta dizer que as baixas por doença que num ano ultrapassem os dez dias já levarão à redução do tempo de férias...

E escândalo dos escândalos, o mesmo acontece com as faltas por assistência à família que como sabemos atingem quase sempre em maior grau as mulheres – mães de filhos pequenos, filhas de pais idosos – .

O PCP voltará dentro de dias a este assunto. Mas há duas coisas que não poderão ficar para amanhã:

  • o apelo que aqui fazemos a uma vasta mobilização social e cívica contra este vergonhoso retrocesso social;
  • e a plena garantia que aqui, damos perante o país, que o PCP travará uma grande batalha, na rua e no parlamento, que atire este projecto lei para o único lugar que ele merece: o caixote do lixo das obras primas de assassinato dos valores de esquerda, da bajulação e subserviência face ao grande capital e da displicência e desprezo em relação aos interesses de quem trabalha.
São infelizmente muitos os exemplos que põem em contraste a propaganda, a retórica discursiva e a prática governamental.

Ainda na comemoração do 8 de Março, do ano passado, a nossa camarada Odete Santos, se referia à lei de 1991, a lei da protecção das mulheres contra crimes violentos, que continuava a aguardar regulamentação nalguns dos seus importantes artigos e "denunciava" a desigualdade nascida da exclusão das mulheres do mundo do trabalho, profundamente sentida num país que apresenta se não a mais alta, pelo menos uma das mais altas taxas da união europeia, da actividade feminina. E sublinhava as questões dos baixos salários, do desemprego e da precariedade do trabalho que tocam particularmente as mulheres; a falta de alternativas profissionais para as jovens, nomeadamente as licenciadas e os não raros casos em que as mulheres "continuam a esconder a gravidez até aos limites do possível", para não verem rescindidos o seu contrato de trabalho a prazo.

Quem não se recorda das posições do Secretário-Geral do PS e da humilhação porque passou o respectivo grupo parlamentar, que mal tinha acabado de festejar efusivamente a aprovação do projecto de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, se via obrigado a ter que submetê-la a referendo por acordo de bastidores entre as cúpulas do PSD e do PS...

O PCP pode estar de cabeça levantada, não se sente derrotado ou arrependido por ter travado aquela batalha.

Em primeiro lugar, porque o objectivo é justo e para nós mais importante do que as vitórias ou derrotas está a justeza das causas em que nos empenhamos. Depois o PCP sabe também, que as conquistas se conseguem com luta e perseverança, que o caminho se faz caminhando e só não apresenta agora um novo projecto de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez para não ser confundido com algum intuito eleitoralista, mas compromete-se desde já a que esta questão seja uma das primeiras medidas a apresentar na próxima legislatura.

Em segundo lugar, porque nos sentimos dignificados por termos travado aquela batalha e porque entendemos que os que deviam estar arrependidos são todos aqueles que, numa campanha terrorista se diziam os grandes defensores da vida e dos fetos e que depois do referendo passaram a dormir tranquilos e hoje continuam a tratar das suas vidinhas enquanto as mulheres se vêem obrigadas a recorrer ao aborto clandestino nas mais deploráveis condições de saúde e de apoio psicológico e com todos os medos e sofrimentos.

O PCP não desiste nem se conforma com a manutenção do aborto clandestino e por isso voltará a este combate pela verdade contra a mentira e a hipocrisia, pelo humanismo contra esta desumanidade, que devia envergonhar a nossa sociedade à beira do século XXI. O PCP continuará também fora das instituições e na Assembleia da República a lutar para dar resposta a muitos problemas das mulheres, como o fez nos últimos tempos, por exemplo, em relação às reformas; à protecção das famílias em União de Facto; à criação de uma licença especial para a assistência a menores portadores de uma deficiência profunda; às garantias de alimentos devidos a menores; às garantias de igualdade de tratamento no trabalho, no emprego, etc., etc.

Em ano de eleições, para lavar o passado, nomeadamente a sua posição em relação ao aborto e à redução do horário de trabalho e tornar-se apresentável aos olhos do eleitorado feminino, o governo quer aprovar agora o estabelecimento das quotas obrigatórias de presença de mulheres nas listas dos partidos para a Assembleia da República, julgando assim mostrar preocupação com a promoção dos direitos da mulher.

E tudo isto do mesmo governo que dá o seu acordo a um pacote laboral com leis particularmente lesivas para as mulheres, que foge ao alargamento público do pré-escolar e que com a sua política de concentração da riqueza, agrava condições de trabalho e as discriminações das trabalhadoras.

Esta questão das quotas é polémica mesmo entre as "feministas". É conhecido o debate entre as "diferencialistas" e as "universalistas" e o debate sobre a paridade e a questão central que é a da igualdade. O PCP deverá tomar uma posição formal, muito em breve sobre esta questão.

Mas desde já quero adiantar que nós consideramos que a realização da democracia é indissociável da participação em igualdade dos homens e das mulheres, na vida social e política. E queremos dar sinais e impulsionar e pugnar por uma mais equitativa representação e responsabilização das mulheres nos centros de decisão em todas as instâncias e a todos os níveis, sem também ter ilusões que as medidas neoliberais não serão mais tolerantes ou benévolas, nem conduzirão à igualdade pelo facto das suas mentoras ou protagonistas serem mulheres, nem a opressão de classe, como foi sublinhado neste Fórum, será menos violento se exercido por um homem ou por uma mulher.

E sem desconhecer que para as trabalhadoras e sobretudo para as de menores rendimentos, a questão da dupla jornada de trabalho e dos "papéis", atribuídos às mulheres em nome da diferença sexual são obstáculos de monta que não se vencem apenas com decisões administrativas.

Como aqui afirmou a Fernanda Mateus, apesar do PCP estar claramente à frente de outros partidos em relação à participação política das mulheres, nos diversos níveis de decisão, não estamos satisfeitos com a situação. Temos que estar mais atentos e mais determinados em superar condicionalismos que dependam da nossa vontade e a contribuir para uma dinâmica positiva na sociedade, quer no combate a preconceitos, tabus e atitudes discriminatórias, quer nas acções culturais, políticas e legislativas que promovam a participação em igualdade.

E também estamos de acordo com aquelas e aqueles que afirmam "as mulheres não têm que exigir direitos porque são metade da humanidade, mas sim porque são seres humanos de parte inteira".

A luta pela libertação da classe operária implica também a libertação da mulher. E a luta pela emancipação da mulher é para nós parte integrante da luta pelo aprofundamento da democracia em todas as suas vertentes, política, económica, social e cultural. Nós não nos contentamos com uma igualdade formal. A luta para que as leis sejam traduzidas na vida, a luta pela igualdade económica e social da mulher e a luta pela transformação social estão também interligadas.

Mas hoje estamos também mais armados para o aprofundamento da reflexão pelas diversas experiências históricas quanto a certos "esquematismos" e "determinismos" mecanicistas. De facto apesar de muitas mudanças radicais e de muitas mudanças positivas verificadas, não foi por se declarar, que a mulher se tornou de facto, nessas experiências, "membro pleno da sociedade". No mínimo temos que dizer que estas questões são muito mais complexas e mais demoradas do que o que julgávamos.

Como aqui foi afirmado as questões de classe e as contradições de classe são determinantes, mas não se podem subestimar as questões das "contradições do género", do exercício do poder, do peso das tradições, dos preconceitos, da cultura e da cultura cristã, dos papeis historicamente atribuídos, da pedagogia da igualdade, da imagem da mulher, da luta por novos valores, novas referências, a luta pela mudança de comportamentos e mentalidades.

Caros amigos e camaradas,

Que igualdade de direitos podemos falar quando milhares de famílias são excluídas de um nível de vida digno, quando a distribuição do rendimento nacional continua a desfavorecer os "rendimentos do trabalho", quando as mulheres são a maioria dos desempregados à procura do primeiro emprego, a maioria dos desempregados de longa duração e cerca de metade dos trabalhadores com contrato a prazo?

Oito anos após o Seminário que realizámos sobre "a participação das mulheres em igualdade" temos que reconhecer com verdade que as suas ideias fundamentais se mantém actuais, tal como se mantém actual o seu primeiro título "garantir às mulheres portuguesas o exercício da igualdade em todos os domínios da vida é um desafio para a sociedade, para as próprias mulheres", mas também para o PCP.

Como são actuais as linhas que sustentam que as "mulheres querem participar, em igualdade no mercado de trabalho, rompendo nomeadamente o círculo da subalternidade, dando-lhe iguais oportunidades no acesso à formação profissional e ao emprego"; "Que as mulheres têm capacidades e saberes que devem ser valorizados"; "Que as mulheres querem que a paternidade, tal como a maternidade, seja uma fonte de realização pessoal e igualmente assumida".

E por isso permitam-me que daqui saúde todas as mulheres que nestes anos e nos mais diversos sectores da nossa sociedade estiveram em luta por uma sociedade melhor.

Clara Zetkin disse um dia que as mulheres não faltariam ao seu dever quando se tratasse de se empenharem com tudo o que elas podem, com tudo o que elas são pela causa da paz, da liberdade e da felicidade humana. No nosso país não faltam exemplos.

Não poucas vezes nos campos, nas fábricas, nos escritórios, nas escolas, foram as mulheres que estiveram à frente das lutas com toda a abnegação e coragem. E pela sua duração e determinação gostaria aqui de salientar entre muitas outras, a luta das trabalhadoras têxteis pelas 40 horas, luta a que o PCP deu todo o apoio institucional e não institucional.

Neste ano em que se comemora os 25 anos do 25 de Abril, queremos também reafirmar neste "Fórum" a importância que damos e que temos que continuar a dar ainda com mais força à intervenção da luta organizada das mulheres, ao movimento feminino e à aplicação e concretização das leis que lhe dizem mais especificamente respeito.

E nestes 25 anos do 25 de Abril permitam-me ainda, que evoque e recorde aqui as palavras da escritora e da poetisa:

"Elas fizeram greves de braços caídos.
Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à Junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista.
Elas souberam dizer salário igual, creches e cantinas.
Elas vieram para a rua de encarnado.
Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água.
Elas gritaram muito.
Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.
Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua.
Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.
Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra.
Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho.
Elas tiveram medo e foram e não foram.
Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa.
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram o braço nas grandes assembleias.
Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos.
Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é.
Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte da casa fechada.
Elas estendem roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas dizem tu às pessoas com estudos e aos outros homens.
Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam.
Elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado.
São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas."

E se foi assim na Revolução de Abril também hoje numa outra situação e numa outra correlação de forças no plano interno e externo, em que a "globalização" e o "pensamento único", tradução a nível económico do "laisser faire, laisser passer" e do pensamento das classes dominantes a nível planetário, a intervenção e a luta do nosso Partido em convergência de acção com outras forças comunistas e progressistas pelos valores e ideias que aqui foram expressas é tão actual como ontem. Nós não consideramos que seja um avanço de civilização ou modernidade, o chegarmos ao século XXI com as mazelas, discriminações entre sexos, opressões de classe e chagas sociais com que os nossos antepassados chegaram ao século XX.

A riqueza das questões que aqui foram levantadas são de uma grande importância para as batalhas que vamos travar e para a luta que continua pela participação da mulher em igualdade.