Intervenção da
deputada Luísa Mesquita

Protecção às mulheres vítimas de violência

18 de Março de 1999



Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados:

O debate que hoje nos ocupa, a propósito de um projecto de lei do Partido Ecologista "Os Verdes" e de um projecto de resolução do CDS-PP, não pode correr o risco, na nossa opinião, de particularizar a discussão relativamente a algumas formas de violência sobre a mulher, geralmente as mais visíveis, ignorando outras, tão ou mais graves e que um Estado de direito democrático não pode ignorar, quer pelo silêncio, quer pela passividade.

Bem sabemos que os números e as estatísticas são pobres; perdendo em subjectividade e causas o que ganham em objectividade muitas vezes gritante.

Mas, mesmo reconhecendo essas limitações, é importante ouvir o peso de alguns números, quando chegam até nós depois de tantos tratados, conferências, resoluções, directivas comunitárias, planos de acção, cimeiras governamentais, etc., etc..

Hoje, era de todas as tecnologias, "As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. (...) Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aqueles que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava de ideal da democracia."

Afirmou-o Saramago perante a Academia Real Sueca e os números estão aí para o reafirmar.

As mulheres constituem cerca de 60% da população rural pobre do mundo, que ultrapassa mil milhões de pessoas e esta percentagem continua a aumentar.

Dos 905 milhões de analfabetos que se registavam em 1990, 587 milhões (65%) eram mulheres.

As mulheres representam actualmente 40% dos adultos infectados com o HIV.

Todos os anos, pelo menos meio milhão de mulheres morrem por complicações provocadas pela gravidez e mais de 100 mil abortos praticados sem condições de segurança.

Nos Estados Unidos da América, em cada 18 minutos, uma mulher é agredida; por ano são agredidas entre 3 a 4 milhões de mulheres.

Os salários das mulheres são 30 a 40% inferiores aos que os homens auferem por um trabalho semelhante.

Em Portugal, confirma-se a regra. Não há uma única excepção. Só que a realidade não é medível. Não se conhecem os verdadeiros números. Mas vê-se todos os dias. Ouve-se permanentemente.

Estas são também formas de violência, de não desenvolvimento, de exploração de uma sociedade cada vez mais injusta, menos solidária, onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres são cada vez mais pobres.

E é neste quadro social que se devem julgar as diferentes formas de violação dos direitos humanos.

E é neste contexto que se deve avaliar e tomar medidas, protegendo a mulher da violência física, psicológica e sexual que ocorre na família, na sociedade e também aquela que é perpetuada e ou tolerada pelo Estado.

E não só entender a violência contra as mulheres como resultante de padrões culturais que perpetuam de geração em geração o ainda reduzido estatuto que lhes é atribuído na família, no local de trabalho, na comunidade e na sociedade.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados:

As práticas violentas resultam sempre em elevados custos sociais, quer a curto, quer a médio prazos.

Por isso, a construção de uma sociedade mais justa e simultaneamente a concretização de medidas de prevenção e de protecção são o único percurso capaz de dissuadir as motivações de violência.

No entanto, neste quarto de século de regime democrático, apesar de uma razoável listagem de instrumentos legislativos, que levados à prática, regulamentados e melhorados sempre que necessário teriam dificultado a permanência da violência contra as mulheres, também muito tem sido feito ou tem ficado por fazer no sentido exactamente inverso.

Quando os poderes instituídos silenciam ou ignoram as mais diversificadas formas de violência, abrem as portas à sua existência, motivando a exercê-la todos os que da sociedade têm uma única leitura - a exploração do ser humano, particularmente, quando ele é mais fraco.

E mais grave que o alheamento do Estado é o facto deste se outorgar o direito de o fazer também.

Quando não se regulamentam leis durante quase dez anos como a Lei nº 61 de 1991, que garante protecção adequada às mulheres vítimas de violência, nos casos em que a motivação do crime resulte de atitude discriminatória, estando, nomeadamente, abrangidos os casos de ofensas corporais.

Quando não se cumprem as leis de protecção da maternidade, ignorando o seu valor social eminente, quer no sector público, quer no sector privado.

Quando se permite que a mulher trabalhadora grávida possa ser despedida ou possa ser sujeita a situações de trabalho que ponham em causa a sua saúde ou a do nascituro.

Quando o Governo entende, ao arrepio da lei, que uma gravidez de risco, quando não sujeita a internamento, é uma doença e as faltas dever-se-ão justificar com atestado médico.

Quando o Governo se prepara para apresentar e defender uma proposta de lei que pretende consagrar, como legítimo, o que já acontece sem legitimidade, em alguns locais de trabalho; por exemplo, as grandes superfícies, onde o trabalho predominantemente feminino se impõe a tempo parcial, sem direitos, nem garantias, onde o subsídio de refeição se paga ou não e o trabalho suplementar é exigido mas não remunerado.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados:

Quando o Governo discrimina, liberaliza, desregulamenta, flexibiliza, atinge todos os trabalhadores, todas as trabalhadoras, mas, particularmente, as mulheres e os jovens.

Numa publicação da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, sobre Assédio Sexual no Local de Trabalho, afirma-se: "Nos contratos a prazo a situação da trabalhadora é muito vulnerável, pois é relativamente fácil à entidade patronal ou ao superior hierárquico apressar a extinção do contrato ou não o renovar. Esta situação é, noutros casos, particularmente delicada."

E estas atitudes têm nome - violência.

Violência que se repercute na vida familiar.

A falência de projectos de vida facilita e pode determinar a violência familiar.

Daí que não possamos deixar de tratar a realidade exactamente na mesma medida em que não devemos ignorar a totalidade das causas.

Noutros países, medidas têm sido tomadas para enfrentar estas situações, minimizando as consequências trágicas que se abatem sobre a mulher e os filhos, quando existem, mas as causas têm permanecido. De tal modo que na vizinha Espanha, em 1984, abriu-se a primeira casa de abrigo para mulheres vítimas de agressões conjugais, casa que se encheu no próprio dia em que se abriram as portas. Mas, hoje, em Espanha, existem mais de 100 instituições deste tipo e são insuficientes.

Outros países, que há mais de 20 anos, tomaram medidas de prevenção e protecção das mulheres vítimas de violência, como em Inglaterra, Holanda, Alemanha ou França, continuam a debater-se com insuficiência de meios perante o aumento permanente das vitimas.

Em Portugal, quer junto da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, quer junto da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima contam-se em milhares as mulheres que ocorrem a pedir ajuda, apesar do secretismo que, normalmente, envolve a violência sobre as mulheres.

Num estudo de 1997, realizado pela Universidade Nova de Lisboa afirma-se que a violência conjugal atravessa todas as classes sociais, embora assuma configurações diferentes consoante o estatuto da família, mas está sempre ligada ao desrespeito do outro, enquanto indivíduo, dotado de razão e vontade e sujeito de direitos.

O Serviço de Informação e consulta Jurídica da CIDM afirma que as vítimas narram situações gravíssimas de maus tratos físicos e não-físicos.

Dos insultos às humilhações, da expulsão de casa à proibição de sair, das agressões durante a gravidez ao impedimento de recurso ao médico, tudo é possível, mas não visível porque o medo do agressor, a falta de informação, a falta de meios, a vergonha, a ausência de confiança nas instituições impedem as queixas.

Em 1997, o Parlamento Europeu propôs aos Estados Membros que considerassem 1999 o ano da tolerância zero da violência contra as mulheres.

Mas as declarações de boa vontade são migalhas, quando a intervenção não acontece, quando as medidas de protecção social e jurídica não surgem e não se articulam com medidas de prevenção.

A exiguidade de respostas institucionais demostram claramente como é impossível abordar a violência exclusivamente no contexto familiar sem o alargar à sociedade e ao Governo, repartindo quotas de responsabilidade.

Porque as leis estão aí! Só é preciso cumpri-las!

A Lei nº 61/91, que resultou de um projecto de lei do PCP apresentado em 1989, propõe um conjunto diversificado de medidas capazes de proporcionar informação e prevenção que, postas em prática, reduziriam, certamente, as condutas violentas contra as mulheres.

Mas a regulamentação continua adiada.

Já se afirmou, publicamente, que a lei é para "deixar cair".

Provavelmente, o Governo prefere uma listagem de intenções, intitulada Plano para a Igualdade.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

Por tudo isto, estamos disponíveis para, em sede própria, continuar esta discussão e contribuir para uma análise mais aprofundada dos textos hoje apresentados.

Porque é cada vez mais urgente: E porque é cada vez mais urgente, é indispensável prever a existência de verbas no Orçamento de Estado.

Ou então esta sociedade continuará a ser para muitos e também para a mulher, como diz Teresa Beleza, "...um reduto de ilegalidade à semelhança de outras: plantações de escravos; penitenciárias; prisioneiros de guerra...".