Interpelação do PCP ao Governo sobre MOEDA ÚNICA
Intervenção do Deputado Carlos Carvalhas
19 de Março de 1997

 

Esta interpelação do PCP ao Governo, centrada na moeda única, realiza-se num momento em que grandes movimentações de trabalhadores se intensificam na generalidade dos países da União Europeia com o apoio e a compreensão das populações confirmando que a política de austeridade levada a cabo em toda a Europa comunitária, em nome da moeda única, se confronta com uma crescente oposição social. Na Alemanha, na França, na Bélgica, na Grécia, em Espanha ou em Itália, como também em Portugal.

O que fundamenta a oportunidade desta interpelação é que é num momento em que a opinião pública menos crê, mais questiona e mais duvida das alegadas virtudes de uma moeda única fundada nos critérios e orientações de Maastricht, que o Governo português mais quer acelerar a marcha silenciosa e forçada, na prática habitual dos factos consumados, de modo a submeter o País às decisões monetaristas e neoliberais e a aprisioná-lo no quadro da "gangrena" da moeda única, a partir de 1 de Janeiro de 1999.

Por isso nós acusamos o Primeiro-Ministro e o Governo de, em nome dos critérios de Maastricht e da participação no núcleo duro da moeda única, prosseguirem e aprofundarem uma política que trava e funciona contra o crescimento económico, o investimento e o emprego no nosso País.

Acusamos o Primeiro-Ministro e o Governo de conduzirem uma política económica subjugada pela prioridade absoluta da moeda única que se traduz numa política de regressão social, de aumento do desemprego e na eliminação de direitos duramente conquistados pelos trabalhadores ao longo de muitas dezenas de anos.

Acusamos o Primeiro-Ministro e o Governo de com a sua fé cega nos dogmas de Maastricht e da participação na moeda única espoliarem o País do poder soberano de utilizar os instrumentos monetário e orçamental para enfrentar situações de crise, impondo assim que todos os custos recaiam inevitavelmente sobre os trabalhadores, através do aumento do desemprego e do congelamento ou reduções salariais; sobre os reformados e sobre muitos e muitos pequenos e médios empresários.

Acusamos o Primeiro-Ministro e o Governo de, através da moeda única, pretenderem amarrar Portugal a uma evolução federalista da União Europeia, sem que para tal tenham mandato dos portugueses.

E acusamos o Primeiro-Ministro e o Governo de, pela recusa de um referendo sobre a moeda única e sobre o Tratado da União Europeia, se concertarem com a direcção do PSD para deliberadamente manterem os cidadãos à margem de uma decisão que, indisfarçavelmente, afectará profundamente o futuro dos portugueses e do País. Aliás não constando sequer do Tratado da União Europeia o Governo aceitou há poucos meses o chamado "Pacto de estabilidade" que prevê sanções que poderão ser muito lesivas para o nosso país que tem uma economia frágil, sem qualquer debate prévio e sem qualquer mandato do povo português. Um "Pacto" imposto pela Alemanha que subserviente e levianamente o Governo assinou em nome dos portugueses e de Portugal.

E quando se questiona o Governo sobre as consequências para o nosso aparelho produtivo, para as pequenas e médias empresas não exportadoras, ou sobre quem vai pagar os custos operativos da introdução do "Euro", cada Banco, ou mesmo no pequeno comércio a resposta é inevitavelmente a mesma: não há outro caminho, não há outra solução.

Depois quando o desemprego explodir e ele já é bem superior ao que as manobras estatísticas revelam, então lá teremos as desculpas dos constrangimentos externos...

Estas acusações senhores Deputados, consubstanciam os motivos fulcrais desta interpelação do PCP ao Governo do eng. António Guterres e do Partido Socialista.

Importa, e exige-se, que durante este debate o Primeiro-Ministro e o Governo interpelados respondam às nossas acusações e às nossas interrogações e propostas com a mesma seriedade e sentido de responsabilidade com que as formulamos nesta interpelação.

A perspectiva de passagem à moeda única não é nem pode ser, uma questão exclusivamente para especialistas, como pretende o Governo português.

Pelo seu significado e implicações, ela tem de ser colocada à apreciação e submetida ao juízo da opinião pública.

Esta é uma questão democraticamente incontornável.

A política para a moeda única tornou-se uma fonte de interrogações, de inquietações para um número crescente de portugueses que cada vez mais, e bem, estabelecem uma relação directa entre tal opção com a sua vida quotidiana e reivindicam o direito democrático de serem informados em debate contraditório e de serem consultados.

Relevando do estrito respeito da democracia, não é possível fazer desaparecer a moeda nacional, com todas as suas consequências políticas, económicas e sociais, sem que sobre isso previamente seja consultado o Povo português.

Continuando a recusar a possibilidade de um referendo sobre a questão central da União Europeia, sobre a Moeda Única, a posição do Governo, do PS e do PSD abrindo as portas à possibilidade de um referendo sobre matérias vagas e laterais decorrentes da revisão do Tratado não passa de uma desajeitada manobra de diversão, de um autêntico "referendo-ficção".

A verdade é que o Governo do eng. Guterres e o PS, irmanados com o PSD, decidiram desde o princípio que o País tem de querer a moeda única e o Tratado de Maastricht. E é a esse querer unilateral e autoritário que o eng. Guterres e o Governo apelidam de "desígnio nacional".

O que está justamente por apurar é a existência e a dimensão de um consenso dos portugueses sobre esse dito "desígnio".

Porque se há alguma coisa evidente nesta matéria é que a moeda única e o Tratado da União Europeia não são consensuais na sociedade portuguesa, e é crescente a angústia, a indignação e a preocupação dos que têm um vínculo precário, dos desempregados, dos trabalhadores e de muitos empresários que querem ser cabalmente esclarecidos e que querem pronunciarem-se sobre a matéria.

Porque é um facto que, para além daqueles que, como o PCP, se opõem clara e frontalmente aos critérios de Maastricht, à Moeda Única e a esta "União Europeia", há igualmente muitos portugueses que colocam justificadas reservas ao voluntarismo e ao artificial impulso federalista que mora em Maastricht e assenta as suas bases na moeda única.

O referendo é uma condição do esclarecimento popular e de ponderação nacional sobre o significado e as consequências de tal escolha.

Só a campanha do referendo poderá proporcionar o debate contraditório, generalizado e esclarecedor que é indispensável. E o interesse em participar na decisão levará a generalidade dos cidadãos a interessar-se pelo assunto e a decidir em consciência sobre uma opção tão decisiva para o futuro de Portugal.

As grandes decisões que, como esta, afectam profundamente o curso histórico do nosso País, carecem indubitavelmente de uma legitimação democrática qualificada.

Mas para matéria tão decisiva o tão celebrado «diálogo» já não faz parte dos atributos do Governo. Temos sim o diktat do "Pensamento Único" e dos compromissos do governo PS. É caso para perguntar: de que tem medo o PS? Que razões existem para tão grande falta de autoconfiança nas virtudes desse paraíso anunciado que vos leva a proibir, nos termos constitucionais, que o povo português seja chamado, por referendo - como o PCP propõe - a pronunciar-se sobre a moeda única? Se só temos vantagens com o "euro", se tudo é "cor de rosa", e "oásis" porquê ter medo que seja o povo a decidir?

Argumenta o Sr. Primeiro-Ministro com os mercados que fustigariam o escudo! Bela desculpa. Os mercados, Sr. Primeiro-Ministro, não são entidades abstractas, têm rosto, são os Bancos, é o capital financeiro. Têm rosto mas não têm certidão de eleitor. Ou será que o governo PS entende que os mercados devem decidir pelo povo português? Pela nossa parte rejeitamos a teologia economicista que confia aos "mercados" o Governo de Portugal.

Nenhum governo tem legitimidade ou está mandatado para suprimir a moeda nacional e substituí-la por uma moeda única da União Europeia imposta pelos interesses do eixo franco-alemão.

O Governo e o PS (tal como o PSD) não querem o referendo porque não querem o debate, e não querem o debate porque têm receio de que a sua propaganda seja contestada, porque sabem que aquilo que apregoam a favor do euro é uma mistificação, porque o seu diálogo, é um diálogo de sentido único, só para falarem mas não para ouvirem, e muito menos para considerarem o que ouvem.

Porque o PS (e o PSD) sabe que a moeda única e o caminho seguido põe em causa e subalterniza o princípio da "coesão económica e social", tem pés de barro e os ditos critérios não têm qualquer fundamento económico ou científico.

É um caminho para mais desemprego e sub-emprego, que fragiliza e põe em causa o aparelho produtivo nacional e o futuro soberano e democrático de Portugal.

A moeda única fragiliza e põe em causa o aparelho produtivo nacional.

É ou não verdade que a moeda única, um euro feito, como é inevitável, à imagem e semelhança do marco, super valorizado em relação ao curso normal do escudo, vai tornar ainda mais difícil a competitividade dos produtos portugueses nos mercados europeu e mundial quando confrontados com os nossos principais concorrentes, os países fora da zona do euro, os países asiáticos, os países do continente americano, com as suas moedas e taxas de câmbio próprias?

No mercado comunitário, incluindo no mercado nacional, face à menor eficiência da nossa economia, os produtos portugueses ou aparecerão mais caros e as empresas terão dificuldades acrescidas na venda, ou terão preços semelhantes aos de outros países comunitários e as empresas portuguesas venderão com margens cada vez menores ou mais certamente pela redução relativa dos salários.

A moeda única é um instrumento de aprofundamento do mercado único e de desregulamentação das fronteiras. Muitas e muitas empresas, bem como os agricultores portugueses, que vendem para o mercado nacional, vão confrontar-se também com a aceleração das importações feitas com mais baixos custos cambiais e portanto com uma ainda maior substituição da produção nacional por produção estrangeira. O encerramento de empresas e a crise em muitos sectores serão a consequência lógica de tal processo. Seria por isso de grande interesse que o governo nos dissesse aqui como é que a economia portuguesa vai aguentar o duplo choque a que vai estar submetida: o choque da moeda única e o choque da crescente abertura ditada pela O.M.C.

A moeda única e os critérios de Maastricht são um factor de aumento do desemprego.

A livre circulação de capitais - facilitada e dinamizada pela moeda única - em condições de relativa aproximação média das taxas de juro, vai impulsionar a deslocalização do dinheiro, dos investimentos, das empresas, para as regiões da Comunidade Europeia com maiores produtividades e dinamismo económico.

A vantagem «comparativa» que o Governo do PS se prepara para oferecer é uma força de trabalho mais barata, com menos garantias sociais.

Aí virão os apelos e as chantagens sobre os trabalhadores para políticas ditas de moderação salarial, de aumento da desregulamentação das relações de trabalho, de mais precariedade, de maior facilidade de despedimento, de mobilidade dos trabalhadores, de menor protecção social. E isto num país onde os lucros das grandes empresas estão em alta e o investimento em baixa, onde cerca de 50% da mão de obra tem vínculos precários e onde se mantêm as artimanhas governamentais para que as 40 horas não sejam cumpridas!

Os casos Renault multiplicar-se-ão debaixo das lágrimas de crocodilo do eng. Guterres e do Sr. Santer, escondendo que as Renault são uma consequência inevitável e inerente à política de austeridade da moeda única. Como afirma o Relatório final pedido pelo Parlamento Europeu a várias Universidades europeias, sobre as «Consequências Sociais da UEM», as «piores consequências da convergência para a UEM far-se-ão sentir nas regiões menos favorecidas da União Europeia. A probabilidade de da UEM resultarem consequências sociais nefastas é maior na Grécia, Itália, Espanha e Portugal...». É uma evidência que com a liquidação de empresas e sectores o aumento do desemprego será uma realidade.

Não fomos nós que afirmámos ao J.N. (15.2.97) que «Empresas vão fechar e existe um risco de um aumento de desemprego», Victor Constâncio.

A moeda única não vai dar mais voz a Portugal

Bem pelo contrário. A moeda única vai entregar a condução da política monetária e cambial, da política fiscal e da política económica ao Banco Central Europeu, omnipotente e intocável, em cujas decisões executivas dominadas pelo eixo franco-alemão, Portugal não participa.

Por isso o estarmos no "pelotão da frente" como diz o PSD ou no centro das decisões como diz o PS - diferenças semânticas - não passa de milongas e de frases propagandísticas sem conteúdo concreto.

Como afirma recentemente um relatório do Conselho da Europa, o «défice democrático que existe no seio da União Europeia agravar-se-á de maneira intolerável».

Portugal perde um elemento constitutivo da sua soberania nacional. Como parente pobre e subalterno a voz do país não terá qualquer peso ou relevo significativo e andará a reboque dos interesses das grandes potências.

É sabido também que os níveis económicos e monetários tendem a aumentar o fosso entre as zonas mais desenvolvidas e as de menor desenvolvimento. A história mostra-nos que para compensar tal tendência os governos foram obrigados a reforçar através dos respectivos orçamentos as compensações a essas regiões. Mas no caso da União Europeia como é sabido, os países ricos recusam-se a reforçar o Orçamento comunitário e com o alargamento as pressões negativas ainda vão ser maiores. Chegou a falar-se de um Fundo para o efeito, mas tal foi abandonado.

É conhecido também a "blague" de que em qualquer deserto os critérios de Maastricht são rigorosamente cumpridos pela simples razão de que aí não há pessoas...

O PS sabe bem que tais critérios assim como a decisão de entrada no Euro são escolhas políticas que vão ser tomadas por maioria que é com quem diz pelos grandes!

Veja-se a contabilidade criativa do Eurostat sobre a dívida pública e a não inclusão dos juros para se abrirem as portas do "Clube do Euro" a certos países em dificuldades (Bélgica, Itália..).

Por isso não se pode deixar de ouvir com um sorriso a declaração enfática do Sr. Primeiro-Ministro, de que Portugal deixaria entrar a Alemanha no Euro mesmo que este país não viesse a cumprir os ditos critérios... e desde que tal não fosse estrutural... Consta que o Chanceler Khool que já não dormia há três dias por não saber qual seria a decisão do Eng. Guterres - teve ontem à noite um sono descansado e repousado! Portugal deixa a Alemanha entrar no Euro e não quer qualquer adiamento! O ridículo tem limites! Ou será que algum membro deste ditoso Governo está convencido que havia moeda única se o senhor Khool mudasse de opinião?

Para o PS do Eng. Guterres - ao contrário de outros partidos socialistas - não há reservas, nem em relação ao «nó duro» do Euro, nem a uma «zona alargada» do marco, nem há preocupações com o "Pacto de estabilidade", nem com a submissão a um Banco Central feito à medida do Bundesbank!

Ao contrário do que se quer fazer crer há outros caminhos. É possível uma outra construção europeia de paz e cooperação, de co-desenvolvimento, que faça do princípio da coesão económica e social o seu primeiro objectivo, que ponha em primeiro lugar o emprego e a convergência real das economias e não a convergência nominal. Uma Europa plural que ataque um dos seus mais graves problemas; o desemprego, o que passa por uma verdadeira cooperação monetária, pelo reforço do Orçamento Comunitário, pelo financiamento de projectos comuns, pelo aproveitamento dos recursos de cada país e pela solidariedade recíproca. Uma Europa social, harmonizando por cima em vez de nivelar por baixo ou pelo nível dos países do Terceiro Mundo as conquistas sociais.

A moeda única não é um projecto de cooperação Europeia, não é um projecto para o desenvolvimento das economias mais periféricas, e da economia portuguesa em particular.

A moeda única não é um projecto para mais e melhor emprego.

A moeda única é um projecto ao serviço de um directório de grande potências e de consolidação do poder de grandes transnacionais na guerra com as transnacionais e as economias americanas e asiáticas, por uma nova divisão internacional do trabalho e pela partilha dos mercados mundiais.

A moeda única é um projecto político que conduzirá a choques e a pressões a favor da construção de uma Europa federal, ao congelamento de salários, à liquidação de direitos, ao desmantelamento da segurança social e à desresponsabilização crescente das funções sociais do Estado...

O Primeiro-Ministro vai procurando enfeitar o seu febril fundamentalismo pela Moeda Única, pela Europa política, económica e monetária, com a referência vaga a uma dita Europa social.

Mas a Europa social que os trabalhadores e o povo português reclamam não pode resumir-se a meras frases vazias de conteúdo, nem à concepção de uma Europa social "complementar" e de disfarce da Europa comandada pelo capital financeiro em que o "social" apenas visa favorecer uma certa resignação dos trabalhadores à pretensa inevitabilidade da baixa dos custos do trabalho.

Essa concepção instrumental, subordinada e propagandística do "social" na Europa da moeda única é, aliás, perfeitamente comprovada com o facto de a menção do emprego como princípio de valor equivalente à estabilidade monetária ter sido rejeitada pelos governos dos quinze na Conferência Inter- Governamental. Ou como, mais cruamente, a pôs a nú o presidente do Bundesbank ao afirmar que "com a moeda única, o airbag social será suprimido".

"A coesão económica e social" deve ser o objectivo central de qualquer integração europeia e não uma vulgar opção que se junta em último lugar para tornar o todo publicamente apresentável. De nada representaria amanhã uma gota de "social" no oceano do desemprego, da pobreza, da desregulamentação, da flexibilidade, da liquidação de direitos e do tudo à economia de casino que é o que representa a Europa da moeda única.

É a própria lógica da actual construção europeia que está em questão.

Esperamos que neste debate o bom senso, a reflexão e a ponderação, triunfem sobre a propaganda, os dogmas do neoliberalismo e a arrogância do "Pensamento Único".

Esperamos que a arrogância e a política dos factos consumados cedam perante a exigência popular da realização de um referendo sobre a opção de aderir à moeda única. Portugal precisa de uma mudança, de rumo na sua política económica e social.