Intervenção do Deputado
João Amaral

Liberdade religiosa

30de Março de 2000



Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

Vinte e cinco anos após o 25 de Abril, e 23 anos após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, quanto à liberdade religiosa e à laicidade do Estado, vive-se uma situação contraditória.

É positivo, após o 25 de Abril:

É negativo:

Há hoje uma aguda consciência da insustentabilidade destas situações (normas inconstitucionais; situações de favor; discriminações entre confissões religiosas). Há um consenso (incluindo com as igrejas e outras comunidades religiosas) sobre a necessidade de rever esta situação. Esse consenso corporiza-se designadamente na ideia de aprovação de uma lei de liberdade religiosa e de revisão da Concordata com o Estado do Vaticano.

(Em parêntesis: não é uma necessidade absoluta a existência desta lei. As normas constitucionais - artigos 13º, 41º e 43º, são directamente aplicáveis; a liberdade de associação tem os limites definidos na CRP e na lei; isenções e deduções fiscais podem figurar nas leis tributárias e na lei do mecenato; ficaria de fora só a regulamentação da objecção de consciência e do direito de antena). (Mas a existência da lei permite definir a atitude do Estado perante as igrejas e as outras comunidades religiosas. Permite resolver questões ligadas à fiscalidade, ensino religioso, protocolo, e outras. A lei é clarificadora e por isso positiva para a concretização da liberdade religiosa e do princípio da separação entre o Estado e as religiões).

Assente a necessidade de nova lei da liberdade religiosa e de revisão da Concordata e consensualizada a oportunidade de o fazer, foi aberto um problema prévio, metodológico, com a apresentação da proposta de resolução do PS para início do processo de revisão da Concordata.

O problema resume-se assim: o que deve ser feito primeiro: a elaboração da nova lei ou a revisão da Concordata, que, como instrumento de direito internacional prevalece na ordem interna? Com a invocação desta última situação, defendeu-se a tese de que a revisão da Concordata é que era essencial e prioritária.

A situação que se cria corresponde na posição do PCP a uma inversão do processo tal como deverá ocorrer no respeito da soberania portuguesa.

O Estado português deve definir livremente e no uso dos seus poderes soberanos como regula a liberdade religiosa e os problemas conexos (liberdade de organização das igrejas e outras comunidades religiosas, separação entre o Estado e as igrejas, protocolo, fiscalidade, desenvolvimento do princípio da igualdade de tratamento, etc.). Aprovada a lei, levantam-se vários problemas à sua aplicação. Um desses problemas é a Concordata. O processo de revisão é feito dentro das balizas definidas pelo Estado português. Não pode ser assumido à partida que vai ser um Estado estrangeiro, o Estado do Vaticano, a definir na negociação com o Estado português qual o conteúdo de uma lei da República.

Há duas observações que são feitas para defender a tese "primeiro a Concordata". Uma é a de que - falemos com franqueza - o texto do projecto de lei do PS reflectiria precisamente os pontos de vista da Igreja Católica, pelo que, votar esta lei seria votar, sem a luta possível numa negociação sobre a Concordata, aquilo que é "imposto" ao Estado português. Aceitar este argumento seria aceitar que o papel da Assembleia quando vota uma lei é de mera certificação notarial. O projecto do PS, que é no essencial o projecto preparado no Ministério da Justiça por uma Comissão na Legislatura passada, tem de ser sujeito ao crivo de uma apreciação na especialidade. E, ao lado do projecto do PS, deve estar nessa apreciação na especialidade, o projecto do BE como outra visão do problema que deve ser posta em confronto com as soluções do projecto do PS, não só na generalidade, mas também na especialidade. E ao lado estarão ainda certamente propostas de alteração, pelo menos da nossa parte, PCP, apresentaremos um vasto conjunto de propostas.

É este debate que deve conformar a versão final da lei, que, de qualquer forma, só poder ter uma matriz, a própria Constituição da República. Propor o contrário desta metodologia, isto é, propor que primeiro o Governo faça a negociação da revisão da Concordata, isso é que seria pôr a Assembleia a reboque da Concordata e espartilhar irremediavelmente o debate e a decisão parlamentares.

O segundo argumento é o de que se se aprovar primeiro a lei, a sua exequibilidade quanto à Igreja Católica ficaria dependente da boa vontade do Vaticano na revisão da Concordata. Na nossa opinião, não será assim. A lei que aqui se aprovar certamente que será uma lei conforme ao espírito da Constituição Portuguesa, com correspondência nos sentimentos dominantes na sociedade portuguesa e com um tratamento adequado das igrejas e outras comunidades religiosas, designadamente com a aplicação do princípio da não discriminação. A lei corresponderá à vontade soberana de Portugal. São bons argumentos para apresentar a todos os que estão sinceramente interessados numa vivência consensual no seio de uma comunidade nacional sem divisões artificiais ou politiqueiras.

Assumiremos assim uma posição clara: "primeiro, a lei". Mas concordamos que é necessário sinalizar desde já a vontade do Estado português, de abrir o processo de revisão da Concordata. A fórmula que o PS propõe contém o pressuposto "primeiro, a Concordata", que não aceitamos. Por isso, o PCP apresenta uma proposta de substituição, onde se manifesta essa vontade de abrir o processo de revisão mas se clarifica que a concretização dessa revisão deve ser precedida da aprovação da lei.

Na opinião do PCP, o que é assim essencial é apresentar as diferentes visões do problema, procurando abrir espaço para um debate de especialidade aprofundado, participado e cuidado. Para que esse debate seja transparente e profícuo, deve ser aberto. Apresentaremos assim a proposta de um debate público, que deve durar o tempo suficiente para permitir uma intervenção alargada, não só das comunidades religiosas, mas também das universidades, associações de defesa dos direitos fundamentais, e personalidades e especialistas que se tenham debruçado sobre estas questões.

Procurarei sumariamente abordar três questões: as posições do PCP sobre a matéria; a apreciação do projecto do PS; a apreciação do projecto do BE.

Quanto às posições do PCP. No nosso Programa, defendemos: "a liberdade de consciência, de religião e culto, incluindo o direito de organização e exercício do culto e do ensino religioso no âmbito da respectiva confissão, com reconhecimento da objecção de consciência".

Identificamo-nos assim com os princípios constitucionais, constantes designadamente do artigo 41º da Constituição da República Portuguesa. Isto é: separação entre o Estado e as igrejas e outras comunidades religiosas; liberdade destas, de organização e no exercício das suas funções e do culto; liberdade de consciência, de religião e culto; neutralidade religiosa do Estado, que não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas; aconfessionalidade do ensino público; liberdade de ensino religioso; liberdade de utilização de meios de comunicação próprios; não discriminação por motivos de convicção ou práticas religiosas; reserva de intimidade e direito de sigilo sobre convicções religiosas; direito à objecção de consciência; proibição do uso na denominação dos partidos de expressões directamente relacionadas com quaisquer religiões ou igrejas, ou de símbolos religiosos.

Estes princípios deslegitimam obviamente não só o proselitismo religioso do Estado, como o proselitismo agnóstico e anti-religioso. Por outro lado, neutralidade não é sinónimo de indiferença absoluta ao fenómeno religioso, não só como fenómeno social, mas também como expressão da pessoa humana e dos seus direitos individuais.

É neste quadro que o PCP aborda as principais questões do conteúdo da lei. Assim, consideramos que o financiamento das actividades estritamente religiosas não cabe ao Estado mas sim aos membros dessa religião. Isto não contende com os apoios públicos a actividade não religiosas mas de solidariedade social nos termos regulamentados em geral para instituições desse tipo. Nem contende com a possibilidade de fixar isenções fiscais pelo exercício estrito da actividade religiosa, impedindo que esta seja fonte de receita para o Estado. Como não contende com a possibilidade (aliás já prevista na lei do mecenato aprovada aqui o ano passado) de os doadores puderem deduzir o montante das doações para efeitos de IRS, considerando assim que esses rendimentos transferidos para as comunidades religiosas, também elas não devem gerar receitas para o Estado. O princípio é: não há financiamentos públicos das actividades partidárias, mas também não há produção de receita ao Estado por essas actividades.

Quanto ao ensino religioso, e face à situação actual, o PCP defende que ele possa ter lugar na escola pública nas seguintes condições: a comunidade religiosa invocar não dispor de lugar ou lugares suficientes e adequados; carácter garantidamente opcional; regime e horário post-escolar; aplicação a todas as religiões sem discriminação; suportado financeiramente pela respectiva comunidade religiosa; ministrado por quem a comunidade religiosa indicar, que não poderá pertencer ao corpo docente da turma escolar.

Quanto ao protocolo de Estado em cerimónias oficiais, o princípio geral deve ser, no nível nacional, o de que nelas não cabem actos religiosos ou qualquer simbologia ou posição protocolar expressão de posições religiosas. Este é princípio geral pode que defendemos. Admitimos que excepcionalmente ela possa ser matizado a nível local e de acordo com usos e tradições.

Quanto à relevância de alguns actos religiosos, particularmente o casamento, ela deve ser admitida (com respeito do princípio da não discriminação), mas a validade civil deve depender do acto de transcrição para a Conservatória.

Deve haver respeito nas instituições públicas e nas empresas pelas tradições religiosas, incluindo feriados e alimentação. Esta é de resto uma demonstração típica de que a garantia da liberdade religiosa pode implicar mais que neutralidade e omissão de opção, pode implicar medidas positivas para permitir o exercício dessa liberdade.

Quanto à assistência religiosa em certas situações (por exemplo, Forças Armadas) ela deve ser permitida, criando-se as condições para a sua efectivação, mas com absoluto respeito do princípio da não discriminação de qualquer confissão religiosa, e sem carácter oficial, sem integração hierárquica e sem integração na vida militar em geral.

Quanto à possibilidade da taxa social única dos ministros das confissões religiosas ser reduzida, deve ser o OE a transferir o montante correspondente para o orçamento da Segurança Social.

Uma nota sobre o registo das confissões religiosas. A considerar-se necessário esse registo (e pode sê-lo, por exemplo, para efeitos de distribuição dos tempos de antena) então ele não pode depender de apreciação de autoridades administrativas. O registo deve ser feito, e, havendo fundamento (por exemplo, violação dos limites constitucionais do artigo 46º da CRP) deve ser impugnado judicialmente sendo a decisão transitada em julgado a definitiva sobre a matéria.

Uma nota ainda sobre a Concordata. Admitindo-se que, no quadro e no respeito da Constituição e da Lei a Igreja Católica possa ter um Acordo específico, o mesmo terá que ser admitido para qualquer outra confissão religiosa.

Uma palavra final sobre o Acto Missionário. Absolutamente caduco com o fim do Império, não se entende como é que formalmente subsiste. Há por aí algum resquício de aplicação? Se há, não deve haver. O sinal imediato que deve ser dado neste processo é a denúncia e a revogação desse instrumento da política colonial de Salazar.

Estas são posições que traduziremos, na especialidade, em propostas concretas para debate.

Sobre os projectos.

Quanto ao projecto do PSD, sem desprimor para os seus autores e para o seu conteúdo, ele não tem nada a ver com o que aqui nos traz, e que é traduzir para a lei os preceitos constitucionais relativos à liberdade religiosa, que entre nós é um direito fundamental garantido pela Lei Fundamental. O projecto do PSD funciona neste processo como a cereja cristalizada no pudim. É bonita, mas só serve para enfeitar. Não atrasa nem adianta nada ao debate que aqui fazemos. Nós votamos favoravelmente as disposições constitucionais sobre liberdade religiosa, o que aqui se propõe não tem cabimento neste debate.

Quanto ao projecto do PS, as discordâncias do PCP resultam claramente do enunciado de posições que acima foi feito. Ainda assim, importa sublinhar outros dois pontos de discordância. O primeiro é a distinção entre confissões religiosas radicadas e não radicadas, assente designadamente na história da sua existência em Portugal, com um mínimo de 30 anos (ou a partir do 25 de Abril). Trata-se de uma distinção que introduz discriminações que, na posição do PCP, não podem ser aceites. Só podia ter paralelo numa norma que dividisse os partidos políticos (que também contêm ideologias) em radicados e não radicados, o que apareceria patentemente inconstitucional. Aplicada às confissões religiosas, tem a mesma falta de fundamento. O que distingue as confissões religiosas é terem mais ou menos aderentes.

A segunda discordância refere-se à Comissão da Liberdade Religiosa, à sua composição e poderes. Admitir que determinadas confissões religiosas fazem juízos juridicamente relevantes sobre outras não é aceitável.

Quanto ao projecto do BE, se não vem nenhum mal ao mundo dos excessos proclamatórios, também é verdade que não vem nenhum benefício de fazer dessas proclamações a razão de ser de uma lei. Quanto aos conteúdos, depois das alterações que foram sendo sucessivamente anunciadas, há cada vez menos a apontar. Mas fica sempre uma espécie de deriva hostilizante, que é matéria de convicções pessoais e não matéria de Lei.

Mas, na nossa opinião, os dois projectos, o do PS e o do BE, devem os dois prosseguir, para o trabalho de comissão. A posição de princípio do PCP é a de nos abstermos nos dois projectos. Mas reveremos esta posição se do nosso voto favorável depender a passagem na generalidade de qualquer dos diplomas.

Disse