Interpelação sobre o sector da Justiça
    Intervenção do deputado João Amaral
     15 de Abril de 1999
Senhor Presidente,
  Senhores Deputados,
  Senhores Membros do Governo:
  
  O debate que desta Interpelação mostra que a crise profunda do sector da Justiça 
  não pode continuar a ser encarada pelo Governo, como hoje sucede, de forma desatenta 
  e conjuntural. Não pode ser debelada com medidas avulsas e às vezes contraditórias, 
  como tem feito o Governo, criando novas instabilidades e desconfianças, dentro 
  do sector e no conjunto dos cidadãos.
  
  O debate evidencia que o sector da justiça exigia o que o Governo não tem feito. 
  Exigia que tivesse compreenda a gravidade desta crise, que mina um dos pilares 
  do Estado Democrático. Exigia que tivesse sido capaz de concretizar uma aprofundada 
  análise da crise, com todos os agentes da Justiça, com todos analisam a área, 
  com os outros órgãos de soberania, com a sociedade civil. Exigia finalmente 
  a disponibilidade dos meios necessários e a indispensável vontade política para 
  a adopção de um conjunto coerente de medidas de natureza diversa.
  
  Enquanto o Governo continuar a reagir como fez hoje, a crise permanecerá sem 
  horizonte de resolução. De facto, a resposta do Governo nesta interpelação não 
  é aceitável. Não basta exibir uns números, e umas medidas, mesmo que algumas 
  positivas, e anunciar algumas promessas, tudo com o ar de quem diz "está tudo 
  a andar".
  
  O Governo vem agora fazer um apelo, em forma de pacto. É positivo que reconheça 
  que devia ter olhado para esta área com outros olhos. Mas, agora no fim da legislatura, 
  o pacto não é uma oferta de trabalho, é uma desculpa de mau pagador de quem 
  não mostrou nestas anos vontade política e capacidade para responder ao real 
  problema que hoje é Justiça para o conjunto dos cidadãos.
  
  Foi pensando no cidadão que o PCP decidiu realizar esta interpelação. Não pensamos 
  que seja o bota-abaixo ou a política politiqueira que resolve os problemas. 
  Por isso, desde o início deixamos claro que não fazíamos esta interpelação focada 
  em polémicas que possam dividir os agentes da Justiça. Não estamos aqui para 
  escarafunchar feridas, estamos aqui com uma profunda preocupação, procurando 
  fazer uma vigorosa chamada de atenção ao nível do poder político, e apresentando 
  propostas, como se exige a um partido de projecto, como é o PCP. Para nós, comunistas, 
  as questões da Justiça e das garantias dos direitos são questões centrais da 
  organização do Estado Democrático. Não estamos acantonados, nem deixamos que 
  nos acantonem, nas questões, também essenciais, do mundo do social ou das relações 
  da economia com o poder político. Como partido político profundamente inserido 
  na sociedade portuguesa, damos à Justiça uma atenção profunda e permanente, 
  consideramo-la estruturante e intervimos com uma visão própria, mas com vontade 
  de cooperação na construção de uma Justiça melhor.
  
  Por isso, antes desta interpelação, dialogamos, em entrevista com o Presidente 
  do Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador Geral da República, o Bastonário 
  da Ordem dos Advogados, o Director Geral do Sistema Prisional ( com a visita 
  a Penitenciária de Lisboa ).
  
  Pensamos que as componentes essenciais desta crise estão determinadas, de forma 
  suficiente para se poder começar a agir.
  
  Em primeiro lugar, a morosidade da Justiça está a minar a sua credibilidade. 
  A morosidade resulta da falta de meios, da complexidade processual, da acumulação 
  de processos. À morosidade liga-se à prescrição de prazos, à ineficácia, à ideia 
  dos cidadãos da inutilidade dos seus esforços para obterem provimento para os 
  seus pedidos. No crime, a morosidade torna a pena muitas vezes desajustada.
  
  Em segundo lugar, a Justiça é cara, e por isso, a maior parte da população portuguesa 
  não tem acesso a uma justiça com a qualidade a que podem aceder os que têm posses. 
  Quando um bem essencial, que é um direito dos cidadãos, depende da sua capacidade 
  financeira, então é o direito que está a ser negado. Para alguns tudo é fácil, 
  incluindo o recurso a todos os truque dilatórios que permitem explorar as debilidades 
  do sistema, desde logo a brutal acumulação de processos, para irem ganhando 
  impunidade.
  
  Para uma larguíssima parte da opinião pública, a justiça aparece assim como 
  protegendo os ricos e castigando os pobres: uma justiça de classes! Este problema 
  não pode ser encarado com um sorriso, porque isso corresponderia à aceitação 
  de que os direitos fundamentais não são de exercício universal. Esta questão 
  é determinante para um Estado de democracia efectiva, e não apenas de palavras. 
  E conforma a imagem que os cidadãos têm da Justiça.
  
  Ao longo da Interpelação, abordámos também as questões do sistema prisional, 
  das penas alternativas, dos registos e notariado, da investigação criminal, 
  da formação e outras.
  
  No seu conjunto, o que esta crise reflecte é que a Justiça em Portugal não incorpora 
  ainda a ideia de cidadania. A Justiça, pela sua morosidade, preço e distância, 
  não é ainda um instrumento ao alcance da generalidade dos cidadãos para melhoria 
  da situação individual e da sociedade no seu conjunto.
  
  Não por razões que se prendem estruturalmente com os agentes da justiça. Cabe 
  aqui uma palavra de respeito e incentivo, aos magistrados judiciais, aos magistrados 
  do Ministério Público, funcionários judiciais, corpo da Polícia Judiciária, 
  aos que trabalham nas prisões, nos registos. Nas difíceis condições em que se 
  encontram, não é na falta de dedicação e trabalho que radica esta situação, 
  pese embora a necessidade de continuar e aprofundar uma formação que possibilite 
  uma resposta tecnicamente melhor e uma visão da Justiça como serviço ao cidadão.
  
  A situação radica na ausência de resposta por parte dos Governos, incluindo 
  este, a este avolumar de problemas. Os problemas crescem mais depressa que as 
  respostas. É isto que está a matar a imagem e a capacidade da Justiça. É esta 
  lógica que tem de ser travada.
  
  Da nossa parte, PCP, não ficamos pelo diagnóstico ou pela crítica. Apresentamos 
  propostas. Vou referir quatro propostas que se inserem na lógica do combate 
  às causas desta crise.
  
  Propomos que se organize institucionalmente um Observatório da Justiça, na dependência 
  da Assembleia da República, que reuna as mais variadas instituições e representantes 
  de estruturas, de vária natureza, desde os poderes políticos, aos agentes de 
  justiça até aos utilizadores através das associações cívicas e outras. Esse 
  Observatório da Justiça fará anualmente um relatório, que será debatido nesta 
  Assembleia. E será um elemento importante no debate e reflexão sobre a crise 
  e a sua relação com o modelo estatuído e com as linhas de força de evolução 
  social.
  
  Propomos, em segundo lugar, um projecto para criação dos julgados de paz. O 
  objectivo é duplo: tornar a justiça dos pequenos casos bem determinados, mais 
  próxima dos cidadãos e descongestionar os tribunais desse tipo de casos, que 
  com vantagens podem ser julgados com um processo simplificado e compreensível 
  para os pleiteantes. Em termos gerais, assim se dá execução a uma figura introduzida 
  na Constituição, com imediatas melhorias dos atrasos processuais. É uma medida 
  concreta que combaterá assim a morosidade da Justiça.
  
  Uma terceira proposta tem directamente a ver com o acesso ao direito. O apoio 
  jurídico processual é para muitos portugueses um bem jurídico inacessível, se 
  o pretender com o mínimo de garantias. Mas é um direito constitucionalmente 
  prescrito. Perante as evidentes carências existentes, o poder político não pode 
  ficar indiferente. Vamos propor que seja criada a função de Defensor Público, 
  um quadro institucional adequado e com a precisão de uma carreira ajustada. 
  Devemos aqui salientar todo o trabalho que os advogados têm feito, e vão continuar 
  a fazer. Mas há que encontrar, juntamente com o escritório do advogado, novas 
  formas de concretizar o acesso ao direito, que respondam à alta percentagem 
  de portugueses sem garantia de acesso ao direito: a que título se obstará a 
  criação de uma função - o Defensor Público - que dará um impulso decisivo a 
  esse imperativo constitucional?
  
  O quarto projecto que entregaremos proximamente é um projecto de medidas para 
  descongestionamento nos tribunais.
  
  Estes projectos que referi inserem-se num vasto leque de acções que o PCP preconiza. 
  Saliento oitos pontos:
  
  1. A actualização da divisão judiciária, desdobrando círculos e comarcas onde 
  seja necessário;
  2. A criação de "bolsas" de magistrados judiciais para atender a situações de 
  acumulação;
  3. A simplificação processual, incluindo a reconsideração de prazos de recurso 
  (sem prejuízo dos direitos e garantias constitucionais);
  4.A desburocratização do aparelho judicial, com a melhoria da assessoria técnica 
  e dos meios informáticos e tecnológicos ao dispor do tribunal;
  5. As medidas que, com salvaguarda dos direitos constitucionais, reduzam as 
  possibilidades de manipulação dilatória da investigação e julgamento da alta 
  criminalidade, incluindo a económica;
  6. A concretização das alternativas às penas de prisão e ao excesso de prisão 
  preventiva, com medidas eficazes de apoio à reinserção;
  7. O reforço dos meios de investigações, incluindo da PJ;
  8. A dignificação do estágio de advogado.
  
  Com estas linhas de orientação, como com esta interpelação, agimos em defesa 
  da Justiça, de quem a administra e dos cidadãos a quem ela se destina.
  
  Vimos da parte do Governo o reconhecimento de que o que foi feito não é suficiente. 
  Vimos que a Assembleia participou activamente e que os representantes dos agentes 
  de justiça propoêm e a reclamar, como é seu direito, respostas para os problemas.
  
  Por tudo isto, para nós PCP, entendemos para valeu a pena esta interpelação.
  
  Esperemos agora que se passe das palavras aos actos.
  
  Assim o exigem todos, os que trabalham na área, os cidadãos e a própria democracia.
  
  Disse.