Divórcio por mútuo consentimento e divórcio litigioso
Intervenção da deputada Odete Santos
9 de Junho de 1998

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

Quando comparamos a evolução da história do casamento, das proibições e restrições à dissolubilidade do vínculo, com as transformações permanentes da célula familiar e do papel atribuído a cada um dos membros do agregado familiar, podemos aperceber-nos da incidência das transformações económicas na modelação e transformação das relações familiares.

São estas transformações que empurraram e empurram o Direito de Família para novas definições do casamento, para a perda da exclusividade do mesmo como fonte da instituição família, para um novo estatuto dos membros do agregado familiar.

Foram e são aquelas transformações que reforçaram e reforçam a individualidade dos seus membros, o direito, dentro da família, à liberdade e à autonomia individual, o direito à felicidade que não se compadece com a concepção já ultrapassada de uma instituição, onde, em seu nome se sacrifica aquela felicidade.

De facto, podemos aperceber-nos na evolução do direito da família, como o modelo da instituição familiar desenhado como uma forma de defesa da patrimónios, sacrificou direitos fundamentais, nomeadamente no que concerne ao sexo feminino.

O Código Civil de Seabra é uma fonte inesgotável de exemplos de sacrifícios impostos à mulher e aos filhos. Em nome da autonomia familiar, sacrificou-se a autonomia individual dos membros do agregado familiar, conferiu-se à mulher um estatuto de menoridade aviltante, aviltantes se tornaram laços familiares, a que se chamou de ilegítimos. E em nome dessa autonomia individual que se dizia querer ver defendida das intromissões do Estado, o Estado invadiu a privacidade impondo, por exemplo, à liberdade individual, o carácter perpétuo do vínculo matrimonial.

Assim aconteceu no Código Civil de Seabra.

As transformações sociológicas entretanto operadas, por força das transformações económicas, por força do desenvolvimento do liberalismo, conferindo à Mulher um novo Estatuto no mercado de trabalho, a progressiva transformação da família de unidade económica em unidade de consumo, acabaram por introduzir alterações na própria instituição casamento. O qual perdeu o carácter perpétuo, imposto pelo Estado, para passar a ser apenas presuntivamente perpétuo, como aconteceu na República.

E se embora a 1ª República, pelo seu carácter burguês, não conferiu à mulher o Estatuto de plena cidadania, a verdade é que a nível de direito da família, muitos direitos estabelecidos nas leis da família vieram conferir uma nova dignidade na família às mulheres e às crianças. O carácter apenas presuntivamente perpétuo do casamento trouxe inevitavelmente a estatuição legal do divórcio como causa de dissolução do casamento. Prosseguindo-se assim, o objectivo de atingir a verdade nas relações familiares, com o que se ganhou muito em termos de compreensão da conjugalidade como factor da felicidade individual. O Estado abdicava assim do seu papel de interventor em defesa de relações familiares familiares degradadas, em nome de um pseudo interesse público na defesa da família como Instituição. Caminhava-se para uma menor publicização do direito da família.

A história é, no entanto, feita de fluxos e refluxos. E também nesta matéria a história fez-se com a regressão a que se assistiu no regime fascista.

Confundindo-se o Estado com a Igreja, a proibição de dissolução dos casamentos católicos celebrados de pois da Concordata com a Santa Sé, viria a ser de tal forma causa de convulsões sociais, de infelicidades, de discriminações de que foram especialmente vítimas as crianças e as mulheres, que um poderoso movimento nacional pró- divórcio afrontou o regime, reivindicando o direito de casais, não unidos entre si pelo vínculo matrimonial, à felicidade. O direito das crianças a não serem tituladas de ilegítimas ou de filhos de mães incógnitas.

O Código Civil de 1966 trouxe algumas modificações positivas ao estatuto da mulher na família. Como era inevitável. Mais uma vez as transformações económicas acompanhadas pela guerra colonial, catapultaram as mulheres para um novo estatuto na sociedade, e aceleraram a transformação da família numa unidade afectiva e de consumo.

Mas estes aspectos foram acompanhados pelo reforço da presunção da perpetuidade do casamento, restringindo o Estado o direito ao divórcio, que só por vias ínvias se podia conseguir. Através da obtenção da separação judicial de pessoas e bens que só posteriormente podia ser convertida em divórcio. Desta feita se reforçava a intromissão do Estado nas relações familiares. Ao mesmo tempo, o Código continuou a assegurar através do Estado o carácter perpétuo do casamento católico.

A realidade sociológica da instituição família, comprovava, no entanto, o afastamento das soluções legais em relação àquela.

E foi com os diplomas de 1975 e 1976, diminuindo o papel do Estado na sua intromissão nas relações familiares, que se correspondeu à necessidade de conferir transparência e verdade àquelas relações. Surgindo a conjugalidade mais relacionada com o seu objectivo de prossecução da felicidade individual.

A transparência e a verdade foram prosseguidas nomeadamente com a alteração da Concordata com a Santa Sé.

Foram também prosseguidas com o retorno ao divórcio ruptura, que impede a manutenção das relações familiares quando é óbvio que as mesmas já não traduzem laços de afectividade.

A reforma do Código Civil de 1977 manteve, no essencial, o quadro legislativo post 25 de Abril.

Entretanto os indicadores demográficos a nível de Portugal e da União Europeia no seu conjunto, traduzem a realidade por todos apreendida. A diminuição da taxa de nupcialidade é acompanhada de um aumento da taxa de divorcialidade. Na União Europeia, no seu conjunto, 1/3 dos casamentos arriscam-se a terminar em divórcio.

Esta realidade demonstra que os casais entendem o casamento e a família daí resultante, como uma forma de realização pessoal através da afectividade, que deverá terminar quando a família assim constituída já não represente a unidade que traduz a afectividade.

O Projecto de Lei em debate reflecte as mutações havidas. Dá mais um passo no sentido de uma menor intromissão do Estado no direito à intimidade da vida familiar.

As soluções preconizadas merecem, no geral a nossa concordância.

Concordamos que não seja preciso o requisito da duração mínima do casamento para que se possa requerer o divórcio por mútuo consentimento.

Concordamos com a redução do prazo da separação de facto de 6 para 3 anos.

Não concordamos porém que o prazo de reflexão no divórcio por mútuo consentimento seja aumentado de 3 para 6 meses. Não há efectivamente nenhuma razão para tal aumento. A não ser a preocupação de não se sofrer o ataque dos antidivorcistas.

A verdade é que são raros os casos em que, após proposta uma acção, se dá a reconciliação entre os cônjuges. Um período de reflexão de 3 meses, acrescido ainda por cima do prazo que os Tribunais demoram a marcar a 2ª conferência, é período suficiente para ponderação.

Dúvidas se nos oferece a solução encontrada para uma nova causa de constatação da ruptura do divórcio. Estou a referir-me à proposta para que o divórcio possa ser decretado com base na separação de facto por um ano, se não houver oposição do outro cônjuge.

É claro que se entende que na base desta proposta está a tentativa de superar as dificuldades colocadas ao divórcio por mútuo consentimento, pela necessidade de acordo em relação à regulação do poder paternal, à casa de morada de família, à pensão de alimentos, à relação de bens.

Mas esta forma de dissolução do casamento se destina a fazer gorar a resolução mais célere de alguns problemas, e sendo certo que no caso de não haver acordo, sempre algumas das questões são solucionadas à margem do processo de divórcio (como a regulação do exercício do poder paternal, as pensões de alimentos e a casa de morada de família) então seria preferível a instauração oficiosa de incidentes destinados a resolver as questões não acordadas. Excepto quanto à relação de bens que nos parece poder ser dispensada dada a possibilidade de recurso ao arrolamento e ao inventário, não se inviabilizando, desta forma, o divórcio por mútuo consentimento, menos traumatizante do que o litigioso.

O que vem proposto parece-nos menos transparente e com vocação para determinar improcedência de acções.

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

O neoliberalismo provoca alterações profundas nas famílias.

Provocando a máxima exploração, acaba por determinar, contra a sua própria vontade, a reivindicação do direito à dignidade, inseparável dos direitos individuais. E nessa consciência surge também a consciência de que o direito à felicidade assenta na conjugalidade baseada no afecto, e não no interesse do Estado.

E, por isso mesmo, não serão estas, seguramente as últimas alterações a introduzir no Direito de Família.

Disse.