Senhor Presidente
Senhores Deputados
Em 1993 a Assembleia da República aprovou a lei 12/93 relativa aos transplantes,
na qual se quebrou o silêncio legislativo , consagrando-se o critério de morte
cerebral.
Tal consagração não foi mais do que a aquisição de um padrão que já era corrente,
como o reconhece o Parecer da PGR nº 74/85 publicado no DR II Série de 26 de
Novembro. Na verdade com os avanços da medicina na prestação de cuidados intensivos,
a morte cerebral foi substituindo, mesmo no senso comum, o critério tradicional
da paragem circulatória cardíaca e respiratória.
Este novo critério resultou de um debate permanente desde o momento em que o
Comité Harvard em 1958 suscitou o problema, tendo-se seguido o estabelecimento
pela Harvard Medical School dos critérios de morte cerebral total.
Depois disso, legislações de vários países foram substituindo o critério tradicional
de verificação da morte, o critério da paragem cardíaca, circulatória e respiratória,
pelo critério de morte cerebral.
De tal maneira que pode concluir-se que a conclusão da comunidade científica
se apoia num consenso legal e ético de que, se todas as funções cerebrais estão
mortas, o ser humano está morto. Porque se todas essas funções estão destruídas
não existe respiração espontânea e a paragem cardíaca ocorre em breve espaço
de tempo.
Entre os mais resistentes à aceitação deste critério encontra-se a Dinamarca
- que só muito recentemente aceitou na legislação a coexistência dos dois critérios
- apresentando, em consequência, baixas taxas de transplantes . Clara demonstração
de que o conservadorismo nesta, como noutras matérias, restringe o acesso aos
cuidados de saúde e aos extraordinários avanços da Medicina.
Mas até o Japão, onde, por motivos religiosos e filosóficos não se procede a
transplantes, anunciou há poucos meses a aceitação do critério de morte cerebral
em simultâneo com o critério tradicional.
Muitos outros países rejeitaram entretanto o tradicional conceito de morte,
e produziram legislação identificando morte com a cessação irreversível de todas
as funções do encéfalo. Como acontece com a lei 578 de 29 de Dezembro de 1993
da Câmara dos Deputados e do Senado da República Italiana. Que salienta no seu
artigo 2º, que a paragem cardíaca e a cessação das funções respiratórias e circulatórias
são sinais ( e não critérios) de morte, apenas quando tenham determinado a perda
irreversível de todas as funções do encéfalo. Mais uma vez, a reafirmação do
critério da morte cerebral constante do artigo 1º da lei.
Como acontece também no Código de Saúde Pública Francês que estabelece que a
paragem cardíaca e respiratória persistente não são só por si sinais de morte
suficientes, devendo ser acompanhados para a certificação da mesma da verificação
da ausência total de consciência e de actividade motora espontânea, da abolição
de todos os reflexos do tronco cerebral e da ausência total de ventilação espontânea.
O debate permanente sobre esta questão, existente na comunidade científica internacional,
permite concluir que o legislador pode transpor para a lei o ponto de convergência
daquela comunidade.
Essa convergência centra-se na conclusão de que a morte de todo o cérebro, isto
é, de todos os neurónios, assinala o fim da existência humana.
Basta reler as actas de simpósios internacionais, como os que decorreram em
Havana em 1992 e 1996 e que reuniram cientistas de todo o mundo, para concluir
que a morte é a morte cerebral, porque é esta que determina a perda da unidade
somática do corpo e a perda da consciência da pessoa humana.
É claro que os debates dentro deste critério continuam a verificar-se. Mas não
no sentido de repor o critério tradicional. Sim no sentido de saber se o critério
de morte cerebral deverá corresponder à cessação de todas as funções cerebrais,
se à cessação das funções do tronco cerebral,- isto é, em qualquer destas duas
teses, à morte do corpo e não do organismo - ou como outros defendem à morte
neocortical adoptando a concepção filosófica de que a morte é a morte da pessoa
como ser humano consciente.
Este é, no entanto, um debate a travar no futuro, dentro do conceito científica
e filosoficamente estabelecido e adquirido na sociedade, de que a morte corresponde
à morte do encéfalo.
A presente proposta de lei, nas condições que se consideram pacificamente aceites
é nada menos do que decepcionante.
Na verdade, a proposta de lei, contra tudo o que se esperava, vem consagrar
simultaneamente o critério tradicional - o critério da cessação irreversível
das funções circulatória e respiratória - e o critério da morte cerebral.
Não se percebe por que motivo depois dos avanços que ocorreram nesta matéria
mesmo no nosso País, vem o Governo colocar-nos ao lado daqueles países, como
a Dinamarca, em que a medicina e os cidadãos se viram limitados por pressões
irracionais que finalmente começaram a ceder.
Este debate surge extemporaneamente, mas será no sentido de confirmar o que
já se encontra na lei 12/93:
A morte coincide com a cessação irreversível das funções cerebrais, e a cessação
irreversível das funções cardio - circulatória constituem apenas alguns dos
sinais dessa morte, que não o seu critério, a juntar a outros que a Ordem dos
Médicos estabelecerá de acordo com os avanços da Medicina.
Esta é a mais importante questão que deve merecer acolhimento nas alterações
a introduzir na especialidade.
Para que a lei seja , de facto, uma lei consensual, como se exige num diploma
que toca profundamente o ser humano, por definir o momento da cessação da sua
existência.
Disse.