Debate da Proposta de Lei nº 104/VII, que estabelece os princípios em que se baseia a verificação da morte
Intervenção da deputada Odete Santos
27 de Março de 1998

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados

Em 1993 a Assembleia da República aprovou a lei 12/93 relativa aos transplantes, na qual se quebrou o silêncio legislativo , consagrando-se o critério de morte cerebral.

Tal consagração não foi mais do que a aquisição de um padrão que já era corrente, como o reconhece o Parecer da PGR nº 74/85 publicado no DR II Série de 26 de Novembro. Na verdade com os avanços da medicina na prestação de cuidados intensivos, a morte cerebral foi substituindo, mesmo no senso comum, o critério tradicional da paragem circulatória cardíaca e respiratória.

Este novo critério resultou de um debate permanente desde o momento em que o Comité Harvard em 1958 suscitou o problema, tendo-se seguido o estabelecimento pela Harvard Medical School dos critérios de morte cerebral total.

Depois disso, legislações de vários países foram substituindo o critério tradicional de verificação da morte, o critério da paragem cardíaca, circulatória e respiratória, pelo critério de morte cerebral.

De tal maneira que pode concluir-se que a conclusão da comunidade científica se apoia num consenso legal e ético de que, se todas as funções cerebrais estão mortas, o ser humano está morto. Porque se todas essas funções estão destruídas não existe respiração espontânea e a paragem cardíaca ocorre em breve espaço de tempo.

Entre os mais resistentes à aceitação deste critério encontra-se a Dinamarca - que só muito recentemente aceitou na legislação a coexistência dos dois critérios - apresentando, em consequência, baixas taxas de transplantes . Clara demonstração de que o conservadorismo nesta, como noutras matérias, restringe o acesso aos cuidados de saúde e aos extraordinários avanços da Medicina.

Mas até o Japão, onde, por motivos religiosos e filosóficos não se procede a transplantes, anunciou há poucos meses a aceitação do critério de morte cerebral em simultâneo com o critério tradicional.

Muitos outros países rejeitaram entretanto o tradicional conceito de morte, e produziram legislação identificando morte com a cessação irreversível de todas as funções do encéfalo. Como acontece com a lei 578 de 29 de Dezembro de 1993 da Câmara dos Deputados e do Senado da República Italiana. Que salienta no seu artigo 2º, que a paragem cardíaca e a cessação das funções respiratórias e circulatórias são sinais ( e não critérios) de morte, apenas quando tenham determinado a perda irreversível de todas as funções do encéfalo. Mais uma vez, a reafirmação do critério da morte cerebral constante do artigo 1º da lei.

Como acontece também no Código de Saúde Pública Francês que estabelece que a paragem cardíaca e respiratória persistente não são só por si sinais de morte suficientes, devendo ser acompanhados para a certificação da mesma da verificação da ausência total de consciência e de actividade motora espontânea, da abolição de todos os reflexos do tronco cerebral e da ausência total de ventilação espontânea.

O debate permanente sobre esta questão, existente na comunidade científica internacional, permite concluir que o legislador pode transpor para a lei o ponto de convergência daquela comunidade.

Essa convergência centra-se na conclusão de que a morte de todo o cérebro, isto é, de todos os neurónios, assinala o fim da existência humana.

Basta reler as actas de simpósios internacionais, como os que decorreram em Havana em 1992 e 1996 e que reuniram cientistas de todo o mundo, para concluir que a morte é a morte cerebral, porque é esta que determina a perda da unidade somática do corpo e a perda da consciência da pessoa humana.

É claro que os debates dentro deste critério continuam a verificar-se. Mas não no sentido de repor o critério tradicional. Sim no sentido de saber se o critério de morte cerebral deverá corresponder à cessação de todas as funções cerebrais, se à cessação das funções do tronco cerebral,- isto é, em qualquer destas duas teses, à morte do corpo e não do organismo - ou como outros defendem à morte neocortical adoptando a concepção filosófica de que a morte é a morte da pessoa como ser humano consciente.

Este é, no entanto, um debate a travar no futuro, dentro do conceito científica e filosoficamente estabelecido e adquirido na sociedade, de que a morte corresponde à morte do encéfalo.

A presente proposta de lei, nas condições que se consideram pacificamente aceites é nada menos do que decepcionante.

Na verdade, a proposta de lei, contra tudo o que se esperava, vem consagrar simultaneamente o critério tradicional - o critério da cessação irreversível das funções circulatória e respiratória - e o critério da morte cerebral.

Não se percebe por que motivo depois dos avanços que ocorreram nesta matéria mesmo no nosso País, vem o Governo colocar-nos ao lado daqueles países, como a Dinamarca, em que a medicina e os cidadãos se viram limitados por pressões irracionais que finalmente começaram a ceder.

Este debate surge extemporaneamente, mas será no sentido de confirmar o que já se encontra na lei 12/93:

A morte coincide com a cessação irreversível das funções cerebrais, e a cessação irreversível das funções cardio - circulatória constituem apenas alguns dos sinais dessa morte, que não o seu critério, a juntar a outros que a Ordem dos Médicos estabelecerá de acordo com os avanços da Medicina.

Esta é a mais importante questão que deve merecer acolhimento nas alterações a introduzir na especialidade.

Para que a lei seja , de facto, uma lei consensual, como se exige num diploma que toca profundamente o ser humano, por definir o momento da cessação da sua existência.

Disse.