Intervenção do deputado
António Filipe

Sobre a situação da Justiça

20 de Janeiro de 2000


Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

A convicção de que a Justiça entrou em colapso é hoje compartilhada pela generalidade dos cidadãos portugueses, não apenas na base de um qualquer sentimento difuso de que as coisas não funcionam, ou que funcionam devagar e mal, mas na base concreta de factos bem conhecidos que nos interpelam a todos.

A decisão judicial, cujo mérito não está aqui em discussão, de considerar prescrito o chamado “processo do aquaparque” - e que se encontra ainda sob recurso - constituiu, para a generalidade da opinião pública, um sinal de alarme quanto ao estado da Justiça em Portugal, por razões que são bem compreensíveis. Está em causa a morte de duas crianças e é insuportável pensar que o julgamento sobre eventuais responsabilidades por tão trágico acontecimento não ocorra, por atrasos imputáveis ao funcionamento moroso, ou à inércia, do aparelho judiciário. Acresce ainda que, depois deste caso ter vindo a lume, chegou ao conhecimento público a iminência de novas prescrições em catadupa, a somar a conhecidas situações de arquivamentos e de processos que se arrastam de recurso em recurso, sem fim à vista, até à prescrição final.

O processo do “aquaparque” reuniu circunstâncias que geram justificada perplexidade entre os cidadãos quanto ao funcionamento da Justiça. Uma morosidade que não se entende. Um pedido de aceleração processual que foi recusado. Um Governo PSD que alterou o Código de Processo Penal em 1987 e não adequou o Código Penal à nova estrutura do Processo, propiciando a corrente jurisprudencial que esteve na base da decisão de considerar prescrito, este, e porventura muitos outros processos ocorridos entre 1987 e 1995.

Não propusemos este debate para dissecar nenhum caso em particular, embora pensemos que, em cada caso concreto, todos e cada um dos intervenientes devem ser chamados a assumir integralmente as suas responsabilidades.

O que suscita a nossa maior preocupação e justifica plenamente este debate é que não estamos perante um caso isolado. A prescrição de processos, que deveria ser uma situação absolutamente excepcional e da qual deveria decorrer sempre a averiguação de eventuais responsabilidades, aumentou de tal modo na última década que ameaça tornar-se, se é que não se tornou já, uma rotina decorrente do mau funcionamento do sistema.

Segundo dados vindos a público, enquanto em 1992 prescreverem 569 processos, o número de prescrições em 1998 terá sido de 11 920, culminando um aumento impressionante de ano para ano. Em cinco anos, entre 1993 e 1998, quase 40 mil processos terão ficado por julgar por terem sido ultrapassados os prazos legais.

O problema não está nos prazos de prescrição, que nada têm de absurdo ou desproporcionado. O problema está num sistema que não consegue funcionar dentro de prazos minimamente razoáveis.

Poderemos legitimamente interrogar-mo-nos sobre algumas das causas deste estado de coisas. Não estará o nosso sistema judicial demasiado dependente de um formalismo endémico excessivo que permite eternizar processos com prejuízo para a realização da Justiça? Não será o nosso sistema judicial demasiado permeável a chicanas processuais da parte de quem possui meios económicos para as suportar? A forma como são feitas as inspecções no âmbito do sistema judicial será a mais adequada?

Estas são questões que podem, e do nosso ponto de vista, devem, ser debatidas.

Mas o que não nos oferece qualquer dúvida é que não há sistema de Justiça que funcione quando 132.000 processos crime estão parados só no distrito judicial de Lisboa, à espera que sejam feitas notificações.

Não há sistema de Justiça que funcione quando os juizes trabalham sem as mínimas condições de apoio técnico e administrativo e são obrigados a perder um tempo inimaginável com tarefas meramente burocráticas.

Não há sistema de Justiça que funcione quando a Polícia judiciária continua a braços com um déficit reconhecido de centenas de funcionários e com um atraso injustificado de muitos anos na aprovação da respectiva Lei Orgânica.

Não há sistema de Justiça que funcione quando o Laboratório de Polícia Científica tem mais de 15.000 perícias por fazer, solicitadas no âmbito de processos criminais e não dispõe de meios nem de pessoal que evitem demoras de três ou mais anos na realização de uma perícia.

Não há sistema de Justiça que funcione quando os Institutos de Medicina Legal de Lisboa e do Porto têm pendentes mais de 6.000 relatórios de autópsias, havendo casos de autópsias feitas há quatro anos sem que os respectivos relatórios tenham chegado aos magistrados.

Como é possível, senhor Ministro da Justiça, que estrangulamentos tão graves não tenham sido resolvidos, nem estejam sequer em vias de resolução? Como é possível que em questões como estas, que dizem exclusivamente respeito aos meios que o Governo tem obrigação de disponibilizar para a investigação criminal, o nosso país tenha chegado ao ano 2000 numa situação imprópria de um Estado de Direito que se preze?

Os problemas de fundo que conduzem ao funcionamento moroso e ineficiente do sistema judicial não se resolvem com fogo-de-artíficio mediático nem com uma deriva casuística destinada a pregar alguns remendos num tecido esburacado, como o actual Governo pretende fazer, a avaliar pela Proposta de Lei recentemente aprovada em Conselho de Ministros acerca do recrutamento extraordinário de magistrados judiciais.

A Justiça precisa de medidas estruturais. Não é com medidas casuísticas e de excepção, como estas, que se enfrenta a crise da Justiça. O problema das pendências acumuladas e do constante aumento de processos entrados nos tribunais não se resolve com a contratação transitória de mais alguns juizes, e ainda menos com medidas como as que retirariam ao Ministério Público competências na área da defesa dos direitos dos trabalhadores, que só enfraqueceriam o estatuto do Ministério Público e a defesa dos interesses que este, como defensor da legalidade democrática, representa.

Mas o PCP também não vai atrás daqueles que, a pretexto da crise da Justiça, pela qual são também largamente responsáveis, não perdem a oportunidade para pôr em causa a independência do poder judicial que constitui uma verdadeira trave mestra do Estado de Direito democrático, fazendo até por esquecer que o órgão que preside ao alegado “auto-governo” da magistratura judicial é composto na sua maioria por representantes designados pela Assembleia da República e pelo Presidente da República.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

O PCP, como Partido responsável que se preza de ser, não se exime a contribuir com as suas propostas para a resolução dos problemas cuja existência critica. Daí que, apelando à contribuição responsável de todos os intervenientes no sector da Justiça para a superação da grave crise que este atravessa, o PCP manifeste o seu total empenhamento para, em sede legislativa, contribuir para que sejam encontradas as melhores soluções.

É com esta postura que o PCP acaba de apresentar na Mesa da Assembleia da República um Projecto de Lei que visa dar concretização a uma alteração de fundo na orgânica do nosso sistema judiciário, prevista na Constituição mas ainda não concretizada, que se traduz na criação dos Julgados de Paz.

A consagração de uma Justiça de proximidade para as pequenas causas, dotada de informalidade, célere, desburocratizada, economicamente acessível aos cidadãos, procurando em primeira linha obter a composição pacífica dos conflitos, seria uma medida muito positiva e de enorme alcance, não apenas para o tão necessário alívio dos tribunais, mas acima de tudo para garantir aos cidadãos uma Justiça rápida e eficaz, no respeito pelos seus direitos, garantias e interesses legítimos. Não temos qualquer dúvida de que são muitos os milhares de processos que estão hoje acumulados nos tribunais e que poderiam, com vantagem para todos, ser melhor resolvidos através de Julgados de Paz.

Esta proposta do PCP não é uma invenção de última hora. Assenta no conhecimento de uma valiosa experiência lá levada a cabo noutros países, alguns deles bem próximos de nós em termos culturais e de tradição jurídica, e cuja aplicação em Portugal só peca por tardia.

Mais do que soluções provisórias, transitórias, ou de recurso, o que a Justiça portuguesa precisa é de medidas de fundo, tão audaciosas quanto a gravidade da situação exige. É esse o caminho que estamos dispostos e determinados a percorrer.

Disse.