Encerramento da campanha do Referendo
"Pelo Sim à despenalização da IVG"
Intervenção de Carlos Carvalhas
26 de Junho de 1998
Empenhámos as nossas forças na luta por esta causa justa, de corpo inteiro,
de cara levantada e assumindo claramente as nossas responsabilidades.
Procurámos a pedagogia, o esclarecimento, a mobilização de consciências, respeitando
as opções de cada um, mas também procurando sem tibiezas e com firmeza responder
às mistificações e às ofensas feitas à dignidade da mulher.
Privilegiámos as sessões de esclarecimento em detrimento dos grandes comícios,
precisamente para informar e para através do diálogo e da argumentação convencer
e ganhar as consciências.
Fizemos uma campanha serena, mas não ficámos insensíveis a todos aqueles que
com imagens intoleráveis procuraram culpabilizar retroactivamente as mulheres
que foram obrigadas a abortar.
Fizemos uma campanha sabendo e compreendendo os constrangimentos de muitos cidadãos
em falarem deste assunto, mas procurando dizer a todos que, nem o referendo
nem a nossa intervenção teve o propósito de invadir legitimamente áreas reservadas
da vida dos cidadãos e que, no centro do referendo e das nossas preocupações
o que esteve e que está em causa é um grave problema de saúde pública, um grave
problema social e humano que a todos e a todas diz respeito.
Ao contrário de outros falámos verdade e combatemos e afrontámos a falsidade.
Ainda esta manhã, uma rádio anunciava que o líder do CDS-PP iria esta noite
fechar a campanha chamando a atenção para que uma vitória do «não» teria a grande
vantagem de obrigar o Estado a enfrentar com eficácia as causas sociais do aborto.
É o que se chama começar uma campanha com hipocrisia e cinismo e acabá-la com
cinismo e hipocrisia.
Começaram a campanha com o truque de se declararem muito satisfeitos com a lei
em vigor que agora declararam justa, equilibrada e responsável mas contra a
qual votaram há 14 anos considerando-a então injusta, desequilibrada e irresponsável
e mesmo homicida.
E querem agora acabar a campanha fazendo passar a ideia que com a vitória do
«não» é que se vai passar a fazer tudo aquilo a que, em matéria de resposta
às causas sociais do aborto, sempre se opuseram e sempre sabotaram ao longo
dos últimos 14 anos.
O líder do PP e outros dirigentes da campanha do «não» são os primeiros a saber
que a vitória do «não» só teria duas consequências essenciais: a primeira é
que deixaria tudo na mesma – isto é, uma injusta e obsoleta criminalização da
mulher e a conservação do aborto clandestino; a segunda é que permitiria que
os mais inflamados promotores da campanha do «não» regressassem a mais uns bons
anos de feliz e tranquila convivência e insensibilidade com o drama do aborto
clandestino, enrolassem rapidamente as bandeiras e cartazes do «direito à vida»
que só voltariam a sair das arcas, das despensas e dos armazéns quando um dia
se voltasse a falar da despenalização do aborto.
É também uma realidade que os principais promotores da campanha do «não» despejaram
sobre os eleitores quilómetros de prosa e quilos de discursos sobre princípios,
concepções e doutrinas mas bem se pode dizer que raramente se viu tanta conversa
fiada esforçadamente debitada apenas para fugir ao que realmente está em debate
neste referendo, apenas para esconder o que é verdadeiramente essencial, e apenas
para lançar a confusão.
E, por isso, a maior força do nosso apelo final aos eleitores consiste em pedir-lhes
que reparem bem no que lhes está a ser perguntado, reparem bem que ninguém nos
está a perguntar qual é a nossa opinião sobre o aborto, reparem bem que o «sim»
ou o «não» que podem usar é relativo à despenalização do aborto e à possibilidade,
que só será usada por quem quiser, de realizar uma interrupção da gravidez até
às 10 primeiras semanas, em condições de assistência médica e de segurança.
E apelamos aos eleitores para que reparem bem que a mais pura, a mais incontornável
e a mais indiscutível das verdades é que, com a pergunta que está no boletim
de voto, responder «não» significa manter na lei a pena de prisão até 3 anos
de cadeia para as mulheres que recorram ao aborto e significa continuar a empurrá-las,
sem qualquer outra alternativa realista, para o aborto clandestino que só no
ano passado levou muitos milhares de mulheres a entrar nas urgências dos hospitais,
a correr risco de vida e a passar por sofrimentos e sequelas a que ninguém devia
ser insensível.
E porque não somos insensíveis queremos ainda dar voz neste final de campanha
não apenas à justa indignação que nós próprios sentimos mas também à viva indignação
que muitos cidadãos nos transmitiram, declarando que não é possível deixar de
referir que, no essencial, o que marcou a campanha de muitos partidários do
«não» não foi só a cantilena repetitiva de alegados princípios ou convicções
mas foi sobretudo uma baixeza de métodos e uma mesquinhez de argumentos como
talvez nunca a democracia portuguesa ainda tivesse conhecido.
O recurso sem vergonha a filmes e imagens propositadamente chocantes sobre fetos,
a terrível agressão que com eles foi desencadeada contra todas as mulheres que
já recorreram ao aborto, a repugnante violência que é a sua transmissão em tempos
de antena emitidos a horas acessíveis às crianças portuguesas (e são estes senhores
que andam sempre a dizer-se muito preocupados com a violência na televisão),
uma campanha toda ela baseada nas imagens de bebés e nos seus supostos apelos
que mostra que o «não» confia menos nas ideias e argumentos dos adultos e preferem
instrumentalizar vergonhosamente a inocência das crianças – é tudo isto e muito
mais que merece protesto, que merece denúncia e que verdadeiramente acaba por
dar o verdadeiro retrato moral e humano daqueles que a fizeram.
E, como se tudo isto não bastasse, da campanha do «não» ainda veio, talvez em
desespero de causa, o argumento rasteiro e primário de que não querem que os
seus impostos sirvam para financiar a realização das interrupções de gravidez
nas unidades do Serviço Nacional de Saúde.
Por esta lógica egoísta e absurda, só lhes falta virem dizer que os impostos
também não devem financiar a assistência médica que o Serviço Nacional de Saúde
garante às milhares de mulheres, vítimas de complicações derivadas do recurso
ao aborto clandestino e que tem repercussões sobre o funcionamento dos serviços
de saúde maiores que as que resultarão da aplicação de uma lei de despenalização.
E as figuras públicas que, fazendo campanha pelo «não», não foram capazes de
se demarcar destes baixos métodos e destes chocantes argumentos, não podem queixar-se
se ficarem também abrangidos pela nossa acusação de que os principais dirigentes
da campanha do «não» enchem a boca de princípios e de valores espirituais mas
afinal têm a cabeça vazia de escrúpulos e cheia da ideia de que, na gulodice
de ganhar votos, é legítimo ultrapassar todas as fronteiras da ética e da decência.
A nossa campanha, pelo «sim», repito, não recorreu nem a ilusões nem a manobras
de diversão sobre o que realmente está em causa.
E é por isso que não temos medo de afirmar que nem nós nem ninguém está em condições
de oferecer o caminho todo ou uma solução mágica e imediata para a erradicação
do aborto enquanto fenómeno de massas.
A diferença está em que, enquanto outros preferem fechar os olhos à realidade
e anestesiar as suas consciências com a repetição obsessiva de fórmulas e palavras
em torno dos seus princípios que querem ilegitimamente impor aos outros, nós
preferimos agir sobre a realidade, dar passos e abrir um caminho que pelo menos
sejam um progresso em relação à situação actual.
E reafirmamos que é do mais elementar bom senso perceber que será sempre um
progresso a transferência do aborto da esfera da clandestinidade, da insegurança
e dos altos riscos para a saúde e a vida das mulheres para a esfera da legalidade,
da segurança e da assistência médica.
Nós entendemos que, por comparação com a situação actual, será mesmo um importante
passo e um importante progresso. Podem outros discutir se é um passo pequeno
ou grande. Pouco importa. É que pequeno ou grande, consoante as opiniões, é
um passo, enquanto que os promotores do «não» não têm nenhum passo para oferecer,
nenhum progresso para desenhar, nenhuma alternativa melhor para propor porque
a única coisa que realmente propõem é a triste e resignada manutenção da desumanidade
e da indignidade que está intoleravelmente estampada na situação hoje existente.
Por tudo isto somos pelo «sim». E somos também pelo «sim» porque somos pela
vida, porque amamos as crianças porque defendemos que a elas seja assegurado
o direito à protecção e a cuidados especiais, o direito ao amor e a serem desejadas,
o direito ao afecto, ao sonho e ao imaginário, o respeito pela sua identidade
própria, o direito à diferença, e o direito à dignidade social.
Somos pelo «Sim» porque defendemos o cumprimento efectivo da Lei de maternidade-paternidade,
o desenvolvimento dos cuidados primários de saúde materno-infantil, o desenvolvimento
da rede pública de estabelecimentos de Ensino Pré-escolar.
Somos pelo «sim» porque combatemos nas palavras e nos actos o trabalho, a mendicidade
e a prostituição infantil, porque apoiámos nas palavras e nos actos a marcha
global contra o trabalho infantil impulsionada por organizações não governamentais,
católicas e laicas.
Somos pelo «sim» porque combatemos a concentração da riqueza, o trabalho precário
e o desemprego, as reformas antecipadas e as reformas de miséria, porque consideramos
intolerável que havendo crescimento económico haja tantas famílias que se vêem
excluídas de um nível de vida digno, do acesso à habitação, à cultura, aos tempos
livres e às férias.
Somos pelo «sim» porque estivemos na luta com as trabalhadoras e os trabalhadores
do Têxtil, do Vestuário e do Calçado, na luta pela redução do horário de trabalho,
porque temos estado ao lado daqueles e daquelas que lutam pela justiça social,
por uma melhor repartição do Rendimento Nacional; porque combatemos o banqueiro
que não quer mulheres no seu banco e que como era de esperar financiou a campanha
do «não»; porque consideramos intolerável que na admissão ao emprego se pergunte
à mulher se está grávida ou se pensa ficar, ou se vai casar...
E qual é a atitude de muitos partidários do «não» sobre estas questões? De que
lado é que estão? Estão ao lado da vida dos privilegiados, do lado da vida dos
grandes senhores do dinheiro, do lado da vida das clínicas privadas de luxo
onde aí fazem vista grossa aos abortos feitos pelas senhoras endinheiradas chamando-lhes
apendicites.
Somos pelo «sim» porque defendemos a vida e a felicidade do ser humano, porque
não queremos conviver hipocritamente com o aborto clandestino e com os seus
dramas e porque inserimos esta nossa luta, na longa luta que há muito travamos
pela afirmação dos direitos das mulheres, na família, no trabalho e na sociedade,
pela resposta decidida aos seus problemas e aspirações pela construção de uma
sociedade mais progressista, mais justa e fraterna, mais liberta de humilhações
e chantagens que são incomportáveis com a dignidade da mulher.
À beira do fim da campanha, a par de um vivo apelo ao voto pelo «sim» dirigido
a todos os democratas, a todos os homens e mulheres que, independentemente das
convicções políticas, religiosas ou morais compreendem que é tempo de dar lugar
à verdade, à solidariedade e ao sentido da responsabilidade e que é tempo de
pôr fim ao reino da hipocrisia e da culpabilização das mulheres, dirigimos daqui
também um especial apelo a todos os que, onde quer que se encontrem, confiam
no Partido Comunista Português e comungam os seus valores e o seu projecto e
compartilham da sua luta.
Um vivo apelo para que participem massivamente no acto eleitoral e para que
dêem uma grande e marcante contribuição para a vitória do «sim», porque no dia
28 essa é a única forma de honrarem o património de luta do PCP e essa é a única
forma de serem coerentes com os grandes valores de progresso e transformação
social e com o espírito de responsabilidade cívica, de generosidade, de fraternidade
e solidariedade de que os comunistas portugueses legitimamente se orgulham.
É tempo de virar esta página de obscurantismo e hipocrisia na nossa sociedade.
Pela coragem de enfrentar o aborto clandestino, pela vitória do humanismo, da
liberdade e da responsabilidade, pela dignidade da mulher, por um Portugal mais
tolerante, mais solidário e mais progressista.
Votamos pelo SIM
Viva o Partido Comunista Português
Viva Portugal