Sim, de facto
Artigo de Ruben de Carvalho
no «Diário de Notícias»
12 de Junho de 1998
A crónica da semana passada sobre o referendo da IVG mereceu um número record de e-mails: 54 para ser exacto. Justificam-se algumas observações. Uma é de o número de mensagens em apoio ao "sim" que defendi ser largamente superior aos contrários: 36 contra 18. A situação não será insólita na medida em que todas as sondagens têm apontado uma maioria favorável à despenalização, mas revela um aspecto que julgo conter alguns factores novos. Em situações anteriores que dividiram a opinião pública verificava-se que a conservadora se manifestava publicamente a nível pessoal com maior vigor que a progressista. Cartas para jornais, protestos juntos da RTP e órgãos de soberania, demandas judiciais. 50 anos de repressão tinham criado na esquerda o reflexo de prudência que contrastava com a óbvia impunidade (quando não provento) da manifestação da concordância com os universos salazaristas e afins. Basta visitar a maioria das empresas portuguesas para saber que a coacção não desapareceu. Mas poderá dizer-se que uma maior intervenção cívica a nível individual por parte, lato senso, de esquerda reflecte positivamente um consolidar da democracia, a evolução social e cultural e maior capacidade de expressão própria. Mas interessará também reflectir se este fenómeno positivo não revelará igualmente perda da capacidade de representatividade que a opinião de esquerda lucidamente sempre preferiu fortalecer pela intervenção colectiva e organizada. O individualismo propagandeado durante uma década de cavaquismo, as frustrações sucessivas geradas pela eterna duplicidade do PS arvorando esperanças na oposição e concretizando desilusões no Governo, as alterações económicas e sociais (desindustrialização e desemprego nomeadamente) e do panorama político mundial que geraram mutações profundas na classe operária, com reflexos nas formações políticas e de classe a ela ligadas, não serão certamente alheias a um sentimento de necessidade de maior intervenção individual. A acção transformadora sobre a sociedade, o combate à exploração, à pobreza, à exclusão, o aprofundamento da democracia, não podem ignorar esta tendência e que a indispensável acção colectiva pode e tem de contar com uma cada vez maior vontade e capacidade de intervenção individual. Um segundo aspecto no correio recebido é a elevação cívica. Não seria de esperar que quem subscreve ideias aqui defendidas o fizesse de forma rude ou agressiva, mas sabe-se que com os adversários da IVG o equilíbrio não costuma ser traço saliente. Também aqui sublinhe-se que o sucedido com estas mensagens não destoa de uma preocupação em manter um tom geral contrastante com episódios e radicalismos do NÃO bem mais vivos ainda quando da aprovação da primeira legislação. Há excepções virulentas, sem dúvida, mas o seu número e a condenação que merecem talvez sejam afinal mais uma positiva consequência do crescente enraizamento dos valores de respeito pela liberdade e pela dignidade humanas que sustentam afinal a tendência para a vitória do "sim". Finalmente (nas limitações do espaço de que disponho, recorrerei ao e-mail em alguns casos) três curtas observações aos que discordaram do que escrevi. Insisto, não está em causa ser-se favorável ou contrário à IVG: está em causa acabar com a sua criminalização, por um lado, e, mediante essa despenalização (não liberalização, note-se bem) contribuir para alterar e melhorar radicalmente do ponto de vista clínico e assistencial as condições a que milhares e milhares de mulheres se vêm forçadas. Não têm, por outro lado, a menor sustentação os argumentos de que a despenalização "fomentará" o aborto, tal como não a têm as afirmações de que diminuirá a procura do Planeamento Familiar e do recurso a outros métodos contraceptivos (não aconteceu num único país da Europa e na Comunidade apenas a Irlanda mantém a criminalização). Poderá ter alguma justificação o comentário que me dirigiu um leitor segundo o qual quem beneficiará sobretudo com a despenalização serão mulheres com meios económicos para recorrerem a clínicas especializadas. Mas o problema aqui, caro leitor, não é da despenalização - é da sociedade. As condições de ricos e pobres são diferentes como o são nas suas casas, no seu trabalho, nas suas doenças, no seu vestir ou no seu comer. A luta seguinte - a luta de sempre - é para que todas, mas todas as mulheres, independentemente dos proventos, possam ter o apoio necessário mediante um serviço de saúde público preparado. Mas para o exigir é necessário despenalizar, porque não se pode exigir a um serviço de saúde pública que apoie uma mulher na prática de uma decisão pela qual uma legislação medieval lhe impõe uma pena de três anos de cadeia. E é por isso que combater a despenalização é apoiar o aborto clandestino. Nenhuma transformação na vida das sociedades resolveu jamais todos os problemas. Muitos se resolveram, mas decididamente essencial é a vontade e decisão da Humanidade para concretizar transformações que a tornem melhor e mais justa. E porque partilho essa vontade e essa decisão irei, de facto, votar "sim".