Despenalizar: uma questão de Estado

Artigo de Odete Santos
no «Semanário»

25 de Junho de 1998



Notas de um diário de campanha pelo "sim" à despenalização do aborto.

Como se previa, as mulheres tiveram dias difíceis nesta campanha sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Os problemas mais íntimos das mulheres foram lançados na praça pública. Houve quem as culpabilizasse, quem reafirmasse, por vezes de uma forma brutal, a exigência de que se tornem numa mera máquina de reprodução, especialmente obrigadas a elevar os índices demográficos.

Mas à medida que a campanha foi avançando, houve mulheres que se libertaram do medo e afirmaram publicamente: "Eu abortei."

1. Os Relatórios da Conferência do Cairo sobre Desenvolvimento e População (1994) e da Conferência de Beijing (1995), sobre a situação das mulheres no mundo, dizem-nos que as mulheres arriscam a vida, as mulheres morrem, as mulheres sofrem perfurações no útero, as mulheres ficam inférteis (muitas vezes para toda a vida) em consequência do aborto clandestino. A despenalização, baixa as taxas de mortalidade das mulheres. Melhora a saúde das mulheres, melhora a saúde das famílias. Da criminalização resulta precisamente o oposto. Para resolver os graves problemas de saúde pública, é preciso alterar a lei que criminaliza as mulheres.

2. À saída de um debate em Espinho, alguém me dizia que sob o ponto de vista do Direito Penal a argumentação do "sim" era imbatível. E, de facto, assim é. Porque na sociedade não existe a consciência de que interromper uma gravidez no 1º trimestre é um crime, muito embora tal comportamento possa ser considerado não moral. As próprias mulheres que interrompem a gravidez têm a consciência de que se trata de um mal, mas não têm a consciência de que se trata de um crime. Se fosse crime, as mulheres não abortariam. A sociedade denunciaria as mulheres que interrompem a gravidez (e não o faz). Os polícias iniciariam uma devassas em casa das parteiras (e não o fazem). Os juízes julgariam severamente as mulheres (e não o fazem). A lei penal é completamente ineficaz para proteger o embrião e o feto. Porque os abortos clandestinos fazem-se aos milhares. A lei penal não cura da moral; não cura do pecado. Foi bom que se recordasse S. Tomás de Aquino (artigo de fr. Bento Domingues no PÚBLICO, ainda que sem tomar posição relativamente à pergunta): "Em plena cristandade medieval, S. Tomás de Aquino perguntava: "Caberá à lei humana proibir todos os vícios e preceituar todas as virtudes?" (Summa Theologiae) A resposta é claramente negativa."

3. Sempre que o "sim" aborda as questões do direito à vida, o "não" entra em desnorte. Aconteceu num debate na Universidade de Aveiro. É que, nesta matéria, não temos de tomar partido sobre o início da vida. Nem seria preciso citar Carl Sagan, famoso cientista da NASA, que explica cientificamente a falácia do argumento de que a vida começa na concepção. O que interessa é constatar que há várias concepções sobre o início da vida. Religiosas, científicas e filosóficas. Assim sendo, não pode o Estado erigir uma delas como a única credível e impô-la a toda a sociedade. É isso o que o "não" quer. Porque tem uma visão totalitária, quer impor às mulheres o aborto clandestino. Do lado do "sim" nada se impõe. Apenas se quer garantir a liberdade de optar.

4. 0 "não" partiu nesta campanha à descoberta das maravilhas da educação sexual e do planeamento familiar. Mas todos sabem que é no "não" que se encontram os que mais combateram o planeamento familiar, advogando como métodos morais apenas os métodos naturais. Os que mais abortos clandestinos causam. Mas todos também sabemos onde se encontram os que consideram a sexualidade um tabu. A quem cabe afinal a culpa de não ter sido implementada a educação sexual, depois de ter sido aprovada em 1984, a lei nascida de um projecto de lei do PCP?

5. Nos debates nas universidades, com os jovens, a óptica que estes privilegiam é a dos direitos da mulher. O interesse do Estado na protecção do embrião e do feto não conhecerá restrições, em nenhuma fase da gravidez, perante os direitos da mulher? Apetece sempre citar Blackmun (juiz do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América em 1973, e em 1992): "Quando um Estado restringe o direito da mulher a pôr termo a uma gravidez, priva a mulher do direito a tomar as suas próprias decisões acerca da reprodução. [...] Porque a maternidade tem um impacto dramático nas expectativas de formação educacional das mulheres, nas oportunidades de emprego, no direito à autodeterminação, as leis restritivas do aborto privam-nas do mais elementar controlo da sua vida."

Os estudantes, rapazes e raparigas, entenderam. Vítimas dos tabus sexuais, para eles trata-se de uma questão de liberdade.

6. Se olharmos o silêncio que se gerou entre Fevereiro de 1997 (data do 1º debate sobre a despenalização) e Fevereiro de 1998, relativamente aos problemas das mulheres, relativamente à educação sexual e ao planeamento familiar, podemos aquilatar do grau de intensidade dramática de muitas das compunções, que hoje se exprimem em torno da realidade sofrida das mulheres.

E se nos recordarmos de quem estava no Governo nos anos de 1993, 94 e 95, podemos perguntar-lhes, a eles que agora descobriram as maravilhas da actual lei de despenalização: por que é que não obrigaram os hospitais a aplicar a lei. Por que é que, naqueles anos, apenas se fizeram nos hospitais do Continente, respectivamente, 227, 295 e 265 abortos legais?

E por que é que os hospitais têm capacidade para atender cerca de 11 mil mulheres que por ano são internadas em consequência do aborto clandestino e não respeitam a lei?

7. Chocante a afirmação de que o aborto se banalizaria, nomeadamente entre as jovens.

Que desconhecimento sobre as mulheres! A mulher só recorre ao aborto como último recurso. Quando, por não ter acesso aos métodos contraceptivos, engravida, e não pode levar a gravidez até ao fim. Quando o método contraceptivo falha.

As mulheres sabem que o aborto não é um método contraceptivo.

8. Falsos os números apresentados pelos defensores do "não" relativamente aos abortos nos países onde ocorreu a despenalização. As estatísticas oficiais de França, de Itália, do Reino Unido, da Noruega, dos Estados Unidos da América, da Holanda, dizem-nos que o número de abortos vem diminuindo. E a Organização Mundial de Saúde, no seu relatório de 7 de Abril de 1998, afirma que não há relação directa entre as leis de despenalização e o número de abortos.

9. O "não" parece agora muito preocupado com o que o "sim" pensa relativamente à situação da mulher perante a justiça penal, depois das 10 semanas de gravidez. Depois das 10 semanas o projecto de lei não prevê a legalização a pedido da mulher.

Mas está o legislador livre de, posteriormente a esse prazo, isentar de pena a mulher que recorra ao aborto fora dos casos previstos na lei. Continuando a reprimir penalmente os que, na mira do lucro, praticam o aborto na mulher.

10. A decisão difícil de abortar pode ser uma decisão moral. Assim o foi para aquela mulher de mais de 70 anos, que, no distrito de Aveiro, me disse que para defender a qualidade de vida do único filho que tinha, fizera três abortos. E disse-me que votaria "sim". Para que as mulheres pudessem decidir livremente, sem a sujeição à indignidade da clandestinidade. São mulheres como esta que mais sofrem porque, de parcos recursos, não podem ir a clínicas privadas. São mulheres como estas as mais discriminadas. Por estas, mas também por todas as mulheres, todas elas discriminadas porque vêem mutilados direitos de cidadania.

É preciso votar "sim", no próximo dia 28 de Junho.