Tolerância

Artigo de João Amaral
no «Jornal de Notícias»

15 de Junho de 1998



A discussão sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (I.V.G.) merecia de toda a gente grande sentido da responsabilidade, muito respeito pelas opiniões alheias e muita cautela e comedimento de declarações. Infelizmente, alguns estão a violar estas exigências, e, assim, o debate ameaça ser radicalizado e degradado.

Sabemos o que está em discussão. Não se trata de votar a favor ou contra o aborto. Ninguém que diga SIM está por esse facto a dizer que concorda com o aborto. E quem disser NÃO pode ficar ciente que não é por isso que proíbe o aborto, ele vai continuar a verificar-se.

O que está então em discussão? Trata-se tão-só de saber se a lei deve considerar criminosa e ameaçar com a cadeia a mulher que, por sua decisão, fizer um desmancho até às 10 semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde oficialmente autorizado para o efeito.

Como se vê, se o aborto for feito fora destas condições, continua a ser penalizado. É portanto falso que o SIM signifique "abortos à balda". Há prazo até às 10 semanas, e tem que ser feito em estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido. Fora disso, é ilegítimo. Mas, o facto de, com o SIM, a mulher, que faça a interrupção voluntária da gravidez naquelas circunstâncias, deixar de ser considerada criminosa, não significa que o aborto passe a ser desejável. A questão é outra.

É que hoje fazem-se todos os anos milhares e milhares de desmanchos. Fala-se em números que vão entre os 20 mil e 190 mil abortos anuais!

Ora, todas essas mulheres têm de recorrer ao aborto clandestino, em parteiras duvidosas (se são mulheres sem posses, porque as que têm posses vão a "clínicas" devidamente organizadas, em Espanha e noutros países). No aborto clandestino, correm riscos para a vida e saúde, e há muitos casos de mulheres que tiveram gravíssimos casos nessas "abortadeiras".

Isto quer dizer que hoje há uma Lei que diz que a mulher é criminosa, mas a realidade é que milhares e milhares de mulheres fazem o desmancho. E nem elas se acham criminosas, nem a sociedade as condena. Pelo contrário, quando uma mulher vai fazer o desmancho, há sempre pessoas solidárias, que a acompanham e ajudam.

O que o referendo pergunta é se estas mulheres devem ser consideradas criminosas, quando façam a I.V.G. nas condições referidas. Quem disser SIM, acha que não devem ser consideradas criminosas.

E, quem disser NÃO acha que devem ser criminosas. Mas eu pergunto: quem diz NÃO acha que as mulheres devem ir para a cadeia? Vão responder que não? Então pergunto: por que votam NÃO? Sabem perfeitamente que os desmanchos vão continuar a ser feitos tal como sucede hoje com a lei em vigor, que considera que há crime, mas não querem as mulheres na cadeia. Então votem SIM, que é para isso que ele serve!

Isto é o que está em discussão. Mas alguns querem antes uma discussão terrorista, com ameaças. O bispo de Viseu e alguns padres estão a envergonhar o país e este debate. Em vez de serenidade e tolerância, levantam a voz para dizerem verdadeiras barbaridades. O próprio cardeal-patriarca D. Policarpo já condenou tais métodos com clareza.

Dá para perguntar, a esses terroristas antidespenalização, porque é que aceitam o aborto quando há risco para a mulher, ou quando há grave malformação do feto. Pior ainda, por que é que o aceitam quando há violação? Aí o nascimento podia ser perfeito!

E a última pergunta que registo: afinal o que querem? Querem milhares e milhares de mulheres nas cadeias? Olhem que as mulheres que fazem desmanchos fazem-nos por graves razões da vida, que muitas vezes têm a ver com o nascituro, se aparecesse naquela altura. E fazem-nos com desgosto, através de uma dolorosa e difícil decisão.

O que se vai fazer é o que já fazem 13 dos 15 países da União Europeia. E, certamente, não são países de assassinos!