Conveniências PS/PSD esquecem as mulheres
Odete Santos sobre a lei do aborto e o referendo
«Avante!» de Fevereiro de 1997

 

No PS é manifesta a existência de "graves problemas internos já que há quem nesse partido não se importe em manter a lei que temos «como guarda nocturno da sua boa consciência», não se importando com o sofrimento das mulheres portuguesas", declarou ao "Avante!" a deputada comunista Odete Santos num comentário a propósito do anúncio na semana transacta pela direcção do Grupo Parlamentar do PS de que vai propor a realização de um referendo no caso de os projectos sobre a lei do aborto, em debate no próximo dia 20, serem aprovados no Parlamento.

Interpretando esta postura dos responsáveis da bancada socialista como um exercício de realidade virtual, Odete Santos começa por estabelecer um paralelo entre este episódio e um outro de idêntico sentido ensaiado pelo PSD, recordando a propósito que o PCP opôs-se desde o início ao referendo proposto pela bancada laranja, porque foi manifesto, desde logo, que este Partido pretendia apenas resolver problemas internos, usando assim os graves problemas sociais das mulheres portuguesas em proveito partidário.

O facto de só ter proposto o referendo mais de meio ano depois de o PCP ter apresentado o seu projecto de lei em Junho de 1996, significa ainda, no entender da parlamentar comunista, que o PSD jogou com o tempo, estudando o momento político que mais convinha aos seus interesses partidários. Mais uma vez sem ter em qualquer conta os problemas das mulheres portuguesas.

Quanto à pergunta que o PSD apresentou para o referendo, garantiu Odete Santos, não diz respeito a nenhum dos projectos de lei em apreciação na Assembleia da República, ou seja, a pergunta «não sendo por razões médicos concorda em que o aborto seja livre», sugerida pelo PSD, diz respeito a uma iniciativa legislativa que ninguém apresentou.

Com efeito, como tratou de explicar Odete Santos no seu depoimento ao nosso jornal, ser livre o aborto teria tradução na eliminação do crime do Código Penal. Donde resultaria que deixaria de haver lei, e cada mulher poderia fazer a IVG como e onde quisesse: na parteira, no médico, em casa, em csa da vizinha, mesmo nas mais precárias condições para a sau saúde.

Ora, acrescentou, não é isto que o PCP propõe. O PCP propõe que seja despenalizada a conduta da mulher grávida que, nas primeiras 12 semanas faça a IVG em hospital ou em estabelecimento de saúde para tal oficialmente reconhecido. Isto não é a liberalização do aborto. Porque continua a ser punido o aborto feito fora destas condições.

O que se pretende com o referendo é, por conseguinte, na opinião da deputada comunista, apurar a moral maioritária da sociedade portuguesa. Desenvolvendo o seu ponto de vista, assinala que, na verdade, quando, para se justificar o referendo, se diz que se trata de um problema de consciência, os que assim falam não estão a referir-se ao problema da consciência da mulher que num momento dramático da sua vida se vê forçada a interromper a gravidez.

Quando o PSD e o PS dizem que se trata de um problema de consciência para defender o referendo - observa -, referem-se à consciência dos outros, que não da mulher, e o que querem saber é se a consciência dos outros se sobrepõe ao foro íntimo da mulher, à consciência desta. Isto é: o que aqueles partidos pretendem é colocar em jogo, na praça pública, a consciência individual da cada mulher, dos muitos milhares que recorrem ao aborto clandestino.

Opondo-se determinantemente à exposição do foro íntimo das mulheres e entendendo que este é um problema da sua consciência, não da consciência dos outros, Odete Santos conclui que nesta matéria não há que determinar qual a moral maioritária, porquanto, diz, não se trata de um problema moral.

Acresce que nem todos os factos imorais são considerados crimes, sublinha a nosso interlocutora, antes de lembrar que foi fácil descriminalizar o incesto; foi descriminalizado o adultério. Talvez porque aí também os homens eram réus...

Mas agora que se quer descriminalizar, e apenas parcialmente, o aborto, onde são vítimas e rés as mulheres, quer-se, com o referendo, apurar qual o sentido da moralidade dominante, exclama Odete Santos, que faz igualmente notar que para além de não ser isso que está em causa, pois nem todos os factos imorais são crimes, a verdade é que o Direito Penal moderno, o Direito Penal dos Estados de Direito Democrático, não consagra as regras morais da sociedade.

E acrescentou: Impor a cada indivíduo a moralidade dos outros é próprio dos Estados autoritários.

Os Estados de Direito Democrático, ao contrário, têm um direito penal fundado na tolerância que não pode impor a ninguém a moralidade dos outros, as convicções religiosas dos outros, as convicções filosóficas dos outros.

Um Estado de Direito Democrático não pode ameaçar as liberdades individuais com penas de prisão suportadas nas moralidades ou nas concepções de vida dos outros.

Assim, se se trata de um problema do foro íntimo da cada mulher, não há que perguntar aos outros se em nome da sua moralidade as mulheres devem continuar a ser obrigadas ao aborto clandestino sob a ameaça de penas de prisão.

A parlamentar do PCP é ainda da opinião que não sendo por conseguinte um problema de consciência dos outros cidadãos, muito menos se trata de um problema de consciência de cada deputado, argumento que tem surgido para justificar o referendo.

Nesse sentido, para Odete Santos os deputados devem, porque não estamos perante problemas morais mas perante problemas sociais, resolver os graves problemas sociais das mulheres portuguesas. Os deputados devem saber que a lei humana, nomeadamente a lei penal, nem sempre coincide com a lei moral, como até o afirmaram os Doutores da Igreja Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.

E para ilustrar o que acabara de afirmar Odete Santos cita o exemplo de Sandra O' Connor, uma mulher conservadora nomeada como juiz para o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América por Reagan, que, na sua perspectiva, teve a envergadura moral para, numa sentença em que se apreciava a insconstitucionalidade de uma lei restritiva da IVG (em 1992), afirmar a insconstitucionalidade das restrições.

"Homens e mulheres de boa consciência - disse Sandra O'Connor - podem discordar, alguns seguramente discordarão sempre, àcerca das implicações morais de pôr termo a uma gravidez, mesmo no primeiro trimestre. Alguns de nós (os juízes) como indivíduos consideram o aborto ofensivo dos nossos mais elementares princípios de moralidade, mas isso não pode determinar a nossa decisão. A nossa obrigação não é impor o nosso próprio Código moral".

Uma opinião compartilhada pela deputada do PCP que, em jeito de remate à conversa, deixa ainda expresso um desejo: que a decisão dos deputados seja determinada pelos dramas das mulheres portuguesas, nomeadamente as das classes mais desfavorecidas, a quem é negado o direito a uma maternidade feliz.